Oh! Como eu queria tanto parecer um anjo!

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anjo

“Todos os homens morrem, mas nem todos vivem.”

WILLIAM WALLACE

Tinha nove anos de idade e andava na 3ª classe. Agora diz-se, pomposamente, 3º ano do 1º ciclo! Soa mais fino, mas é a mesma coisa ou ainda pior! Naquele tempo qualquer aluno na 3ª classe sabia de cor a tabuada. Hoje, os alunos não sabem a tabuada, nem mesmo exibindo o diploma do 12º ano. A minha professora era natural de uma povoação próxima de Fátima, tinha o nome de Glória, dela preservo a imagem como sendo uma jovem mulher de ancas bem nutridas, dona de um corpo do tipo ginóide, vestida com uma saia justa que lhe cingia as generosas formas, ao mesmo tempo que lhe travava a liberdade e ligeireza do andar. Uma camisola de malha de um amarelo-torrado, que não me sai mais da memória, completava a toilette! Guardo, também, uma história desses tempos que, durante algum tempo, atormentou o meu coraçãozito de criança. Sempre que me vem à memória rio-me, no entanto, nem sempre assim foi! Tive de crescer para poder compreender que nem sempre as coisas obedecem à nossa vontade, aos nossos desejos. Aprendi, portanto, que para melhor sobreviver há que me rir das minhas desventuras! Esta história teve origem quando num belo dia foram distribuídos por todos os alunos uns cadernos diários, em cuja capa figurava uma fotografia da nossa escola!

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Ali estava o magnânimo, defronte dos meus olhos! Branco, imaculado e a cheirar a novo! Toda eu tremelicava de ansiedade para pegar na caneta de tinta permanente e deitar-me à escrita naquelas folhas virgens e apetitosas! Nessa altura já gostava de escrever e desembaraçava-me bastante bem, à custa da familiaridade com a língua, desenvolvida nas leituras de publicações de cowboys e outras fantochadas! Fiquei exultante quando a professora anunciou que iríamos fazer, a tão desejada estreia, com um ditado. Gostava de fazer ditados, raramente tinha erros. Para mim ter zero erros, eram favas contadas! Antecipadamente sentia já o doce gosto da glória! Todavia, o resultado não poderia ter sido mais inesperado! Surpreendida e sem querer acreditar no que os meus olhos viam, na primeira página do meu precioso caderno diário, de uma forma gritante, escrito a vermelho, tinha sido anotado pela professora – dez erros e a frase “ Falta de atenção”. Era sobejamente reconhecido pela professora, que este meu desaire, assentava tão-só num desastrado excesso de confiança! Mas nem mesmo assim tive direito à salvação!

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Digam o que disserem e pode vir ter comigo o mais pintado argumentar o contrário, que eu demonstro-lhe sem qualquer dificuldade que, naquele tempo, os bons resultados conseguidos pelos alunos, tinham sempre a sua origem num clima de terror e medo incutido pelos professores! Quem não aprendia a bem, aprendia à bruta! A régua, como uma verdadeira mestra, impunha a ordem! O professor até podia ser um qualquer merdoso! A régua era quem verdadeiramente mandava! A confirmar esta triste verdade foi o meu castigo, aplicado sem dó, sem piedade! Dez reguadas! Tantas, quantos os erros! Cinco em cada mão, bem repuxadas! Entretanto outra jovem professora tinha entrado em cena, vinda de outra sala, apareceu para uma visita à colega, sentada no parapeito de uma soalheira janela, assistia curiosa ao malhar da régua sobre tão tenras mãozitas. Chegou a minha vez de penar! Lá se levantou da cadeira esta amargurada criança direita ao máximo suplício da dor e da vergonha! Sim! Vergonha! Porque  todos se riam, divertidos! Há sempre quem sinta prazer no sofrimento dos outros! Até eu me ria, gostosamente, quando eram os outros, meus colegas, os supliciados! Ainda mal me tinha sentado de novo na cadeira, com as mãos em fogo, mas aliviada, por tão mau momento já ter passado, quando mais uma vítima já se dirigia ao improvisado cadafalso, amargando da sua sentença! Ouço então as inopinadas palavras que, por longo tempo, me arrastariam para um poço de infinita dor e incompreensão!

– Não batas nessa que parece um anjo! Apelou, pesarosa, a colega da minha professora! Oh, Deus! Como me senti! A minha mágoa bateu fundo! No mais fundo que era possível existir dentro de mim! Não foram as reguadas que mais me laceraram! Mais reguada, menos reguada! O que mais me compungiu foi o facto de ninguém ter dito de mim – Não batas nessa que parece um anjo! Teria sido feliz, tão feliz! De boa vontade me sujeitaria ao dobro das reguadas, para ter esse prazer! Que bom que seria parecer um anjinho! Olhei inquiridora para a minha colega, tentei perceber porque se parecia ela com um anjo e eu não! Vi uma miúda de pele muito branca, grandes olhos e um cabelo preto azeviche e mais nada! Tal como eu não tinha asas, nem auréola! Anos mais tarde teria eu uns doze anos quando, perante umas fotografias minhas, percebi porque naquele azarado dia, ninguém foi capaz de me ver como um anjo! Nem podiam!

No lugar de um cabelo caindo sobre os ombros, em profusos cachos e anéis ou mesmo umas trancinhas e carrapitos rematados por fitas e laçarotes, usava o cabelo à rapaz, muito curto e cortado à pedrada, de tal modo incerto, que parecia ter sido alvo de furiosas tesouradas ao acaso! Não posso afirmar que estava vestida, porque isso pressupõe alguma organização! Direi antes que tinha roupa em cima de mim, não interessava o quê! As pernas! Bem as pernas, eram uma dor de alma, magras e completamente escalavradas, joelhos e canelas pareciam um mapa, minadas de cicatrizes, arranhões e nódoas negras provocadas pelas minhas brincadeiras de miúda que não temia subir fossem árvores ou penedos! Ao ver-me assim, a imagem que se formou na minha mente foi que eu parecia uma boneca de trapos, daquelas em tão mau estado, pelos tombos e rebolões que já nenhuma criança as quer para brincar! Sorri com ternura e logo ali, naquele instante, fiz as pazes com o mundo!

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