“Não acredito que existam qualidades, valores, modos de vida especificamente femininos: seria admitir a existência de uma natureza feminina, quer dizer, aderir a um mito inventado pelos homens para prender as mulheres na sua condição de oprimidas. Não se trata para a mulher de se afirmar como mulher, mas de tornarem-se seres humanos na sua integridade.“
Simone Beauvoir
Se em vez de um Bolsonaro, homem, candidato a Presidente do Brasil e ora já eleito Presidente, tivesse sido uma candidata, mulher, e que apresentasse um discurso misândrico, revelando aversão e desprezo pelas pessoas de sexo masculino, acredito piamente que esta candidata não teria almejado nem um só voto de um eleitor.
O que seria de esperar. Pois era o que faltava, os homens votarem naquela que se já se aprontava para vir a desempenhar um papel de carrasco do seu sexo. Compreensível.
Contudo, a realidade prega-nos partidas. Um candidato a Presidente de um País fez toda a sua campanha eleitoral à base de um discurso miserável, que entre outras alarvidades proclamadas primou pela ofensa às mulheres, e eis que muitas destas, não só lhe depuseram na urna o seu voto como ainda se dedicam a defendê-lo encarniçadamente, algo que facilmente podemos constatar lendo os comentários que proliferam na rede social o Facebook. Chega a causar dó…
Como se explica, então, esta dissonância de pensamento, de acção, entre os homens e as mulheres?
Para que um fenómeno aconteça, há sempre um conjunto de factores que o sustenta, mas neste caso, um deles é de importância capital, está na base de todos os outros, e até poderá ser o único factor: A internalização ou interiorização dos valores masculinos, processo cuja compreensão ainda não está acessível à vasta maioria das mulheres.
Tristemente, a mulher ainda não percebeu, em pleno século XXI, o que é a liberdade de se ser…
Chegou um momento solene deste meu post, o de dar voz ao sociólogo Pierre Bourdieu, mestre na questão da dominação masculina:
“A dominação masculina está tão arreigada em nosso inconsciente que não a percebemos mais, tão de acordo com nossas expectativas que até nos sentimos mal em questioná-la. Mais do que nunca, é indispensável destruir as evidências e explorar as estruturas simbólicas do inconsciente androcêntrico que sobrevive nos homens e nas mulheres.”
“Nunca deixei de me espantar diante do que poderíamos chamar o paradoxo da doxa (…) que a ordem estabelecida, com suas relações de dominação, seus direitos, seus privilégios e suas injustiças, se perpetue em definitivo tão facilmente, deixando de lado alguns acidentes históricos, e que as condições mais intoleráveis de existência possam parecer frequentemente aceitáveis e até mesmo naturais.”
“Sempre vi na dominação masculina, e na maneira pela qual ela é imposta e suportada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, efeito do que chamo de violência simbólica, violência doce, insensível, invisível para suas vítimas (…).”
E para reforçar esta denúncia da submissão, da opressão sobre a mulher, eis um texto retirado da obra “As Damas do Séc. XII. Lembrança das Antepassadas”, 2º volume, da autoria de Georges Duby, que nos mostra que a mulher já foi uma moeda de troca usada nas negociatas pelos membros da sua própria família.
“(…). Tal era na verdade o voto do pai de família, inserir o conjunto da sua progenitura no tecido social, as raparigas pelas núpcias – ou, mais exactamente, pela maternidade legítima, já que uma mulher, nesse tempo, não tinha verdadeira utilidade, nem sequer existência social, enquanto não fosse mãe -, os varões armando-os cavaleiros.
Mas não, porém, pelo casamento. Com efeito, os chefes de família que temessem ver o património ancestral fragmentado após a sua morte, dividido pelos filhos dos seus rapazes, tinha relutância em permitir que mais que um constituísse família. (…). Mas até então os dadores de rapazes tinham tido o melhor papel, o de escolher entre tantas raparigas em oferta. Escolhiam os partidos mais vantajosos, quer o melhor sangue, quer o dote mais chorudo, indo a sua preferência evidentemente para as primogénitas, desprovidas de irmãos e de tios, que dessem esperança de vir a herdar. Acontecia as mulheres assim ligadas a inferiores pelo seu pai ou irmão protestarem.
João de Marmoutier, para embelezar a história dos condes de Anjou, ao narrar dois séculos de atitudes e medidas que observava em seu redor, imagina os amargos de boca de uma orfã, a filha de um conde do Gâtinais. Quando este morreu, o rei de França, seu suserano, ofereceu menina e herança ao camareiro-mor da casa condal, homem de sua confiança.
Ela recusou, protestou.
Era indecente, queixava-se, «atirar-lhe para cima» um marido de tão medíocre condição. O rei entregou-a à sua esposa e a rainha tratou de meter nos eixos a recalcitrante.
Quase sempre, porém, as raparigas passavam de uma casa para a outra sem abrirem a boca.
Tinham-lhes ensinado que deviam obedecer e a maior parte das prometidas eram muito novas.
As duas parentelas, habitualmente, concluíam o pacto muito antes de elas serem núbeis: a filha do conde de Namur tinha apenas um ano quando Henrique da Champagne, após a cerimónia de esponsais, a levou para sua casa, aliás para esquecer tudo quando se apresentou um partido mais lucrativo.
O caso destas crianças mostra com crueza para que servia o casamento, porque é que as raparigas se tornavam damas,
o que eram elas para os homens:
corpos dados, tomados, mantidos de reserva pela qualidade do seu sangue,
postos de parte quando já não havia mais a tirar deles” (DUBY, 1995: 47-48).
Bibliografia
DUBY, Georges. (1995). As Damas do Séc. XII. 2. Lembrança das Antepassadas. Teorema. Lisboa.