Na senda do islão

Publicado por: Milu  :  Categoria: ISLÃO, Na senda do islão

O mestre disse a um dos seus alunos: Yu, queres saber em que consiste o conhecimento? Consiste em ter consciência tanto de conhecer uma coisa quanto de não a conhecer. Este é o conhecimento.” (Confúcio)

Venho com este post, intitulado “Na senda do islão”, inaugurar uma nova categoria no meu blog destinada a um breve estudo do islão. Confesso que não é um assunto pelo qual nutra um grande interesse, no entanto, considero importante ter pelo menos algumas noções, um conhecimento ainda que básico, que possa permitir ou melhorar a compreensão de alguns fenómenos sociais contemporâneos. Assim sendo, este é o primeiro post de um conjunto que já está na forja. Quem estiver na mesma situação que eu, sem saber nada mas com vontade de alargar os horizontes, poderá a partir de agora seguir o meu blog e aprender comigo. Boas leituras!

“O islão é um caso único entre as mais importantes civilizações ou religiões mundiais. Há aproximadamente quatro séculos, no fim da Idade Média, o Velho Mundo continha quatro civilizações superiores cultas, cada uma com a sua religião ou grupo de religiões. Em consequência da história dramática do período subsequente, três delas secularizaram-se indubitavelmente, embora não de um modo uniforme ou completo. A tese sociológica dominante, segundo a qual nas sociedades industriais ou em vias de industrialização a religião perde muito do seu anterior controle sobre os homens e a sociedade, é, em linhas gerais, correcta. Tanto a extensão como a natureza da laicização, que está longe de estar completa, variam muito, para não falar das ocasionais contracorrentes notórias. Por tudo isto, seria difícil negar a tendência global para a secularização.

No entanto, existe uma excepção óbvia: o mundo do islão. O domínio do islão sobre as populações dos territórios em que é a religião principal não diminuiu de modo algum nos últimos cem anos e, em certos aspectos, chegou a reforçar-se vincadamente. Além disso, o domínio não se restringe a certas camadas da sociedade; não pode dizer-se que se manteve apenas entre as classes inferiores, os camponeses ou as mulheres. O seu poder é tão forte entre as classes dominantes e urbanas e as elites culturais como entre os segmentos menos favorecidos da população. É tão vincado nos regimes tradicionalistas como nos regimes empenhados no radicalismo social.

O Ocidente só se apercebeu do fenómeno a partir da revolução iraniana, que foi realmente a sua manifestação mais espectacular, apesar de não ter sido porventura a mais típica. Existe actualmente uma tendência para designar este fenómeno por «fundamentalismo», embora o termo seja passível de induzir em erro. No Ocidente são «fundamentalistas» as pessoas que protegem uma interpretação antiga e sobretudo literal da doutrina da sua fé contra as tentativas de a reinterpretar como metafórica, simbólica, social, funcional, e assim sucessivamente. Estas reinterpretações pretendem tornar a religião mais agradável e digerível pelo espírito moderno. O fundamentalismo tão generalizado no mundo muçulmano também condenaria indubitavelmente estas depurações edulcorantes, mas não é esta a fronteira em que é mais activo. A área de disputa em que mais se faz sentir é uma velha divisão no interior do islão, presente há muito, embora nem sempre formalmente reconhecida, entre aquilo a que se pode chamar cultura erudita e cultura popular do islão. Na verdade, o fundamentalismo opõe-se ao agnosticismo estrangeiro ou à reinterpretação expugnadora, mas também, se preocupa profundamente com as distorções populares do islão, com as superstições ilegítimas e com os enquistamentos rituais.

A melhor forma de descrever e também de explicar o vigor persistente do islão é em termos desta velha polaridade entre o alto e o baixo islão. Devemos começar pelos papéis de cada um deles na sociedade tradicional muçulmana, isto é, no mundo muçulmano antes do impacto brutal do Ocidente, que se fez sentir em diferentes momentos e em diferentes regiões entre os séculos XVIII e XX.

O islão não dispõe formalmente de clero. Não faz a separação oficial entre a igreja e a sociedade, tal como não separa formalmente a igreja do Estado. Não possui, ao contrário do que se tem dito de outras civilizações, um centro exemplar que forneça o ideal aos homens, quer numa instância política, quer religiosa. De facto, se alguém possui tal papel no islão, são os eruditos, os teólogos-juristas, os ulemás, que, no entanto, não constituem uma casta ou estrato sacramentalmente segregado: podem apenas reivindicar erudição, familiaridade com o ideal social/legal registado nas escrituras e, por conseguinte, a capacidade e a vontade de o praticarem e desenvolverem, e nada mais. Quanto à autoridade política está mais encarregada de zelar pela aplicação da lei divina do que de a exemplificar específica ou paradigmaticamente e menos ainda de a criar. Tal como os outros, deve observá-la, mas não constitui por inerência a sua fonte nem a sua norma.

É evidente que esta linha assume uma grande importância numa religião escrituralista, numa fé que sustenta que a mensagem divina é acessível à humanidade, literalmente, através da escrita. Também é importante numa religião que defende que a verdade divina não é apenas uma questão de doutrina sobre a natureza do mundo, mas também, e talvez em primeiro lugar, uma questão de leis muito pormenorizadas sobre a condução da vida e da sociedade. Como sublinhou o orientalista Michael Cook, o islão combina o teocentrismo do cristianismo com o legalismo do judaísmo. O resultado é uma matriz legal de ordem social, mas que está acima do simples poder e da autoridade política. (…) Muito antes da formulação dos ideais modernos da separação de poderes e de uma constituição política, o islão possuía efectivamente uma versão religiosa de ambos: a legislação era distinta do executivo, porque a divindade se tinha antecipado, e a própria religião estava acima de toda a lei constitucional da sociedade” (GELLNER, 1995: 29-32).

Os eruditos, muitas vezes provenientes dos meios urbanos e enraizados na burguesia comercial das cidades, projectam uma visão correspondente da fé: escrituralista, normativa, puritana, literal, sóbria, igualitária, anti-extática. É provável que este estilo religioso seja natural em homens de temperamento estudioso e corresponda também aos valores e estilo de vida da classe urbana comercial de que são oriundos” (GELLNER, 1995: 32).

Seja como for, um estilo religioso deste tipo não corresponde às inclinações e necessidades naturais de outros segmentos bastante mais amplos da população. Por exemplo, não corresponde aos gostos e necessidades da população rural, grande parte da qual se administrava autonomamente até há bem pouco tempo por intermédio das estruturas do parentesco ou de unidades tribais locais. Estas populações rurais são geralmente analfabetas e têm pouca inclinação ou aptidão para devotarem o tempo livre à aprendizagem da teologia ou da jurisprudência . (…). A instituição mais característica do islão rural era o culto dos santos, que diferia, no entanto, do culto de santos, por exemplo, da margem católica do Mediterrâneo, já que os santos eram geralmente personagens vivas, executando serviços em pessoa (…). No catolicismo era possível abordar os santos mortos por intermédio de sacerdotes vivos. No baixo islão os santos estão (ou estavam) vivos e de boa saúde, eram sacerdotes” (GELLNER, 1995: 32-33).

(…). “Enquanto a burguesia próspera procurava no escrituralismo uma confirmação do seu estilo de vida confortável, as classes inferiores procuravam mais na religião extática um escape para a sua situação miserável. As duas teorias mais polulares da religião apresentá-la-iam como ópio ou como uma norma: os dois aspectos não são totalmente compatíveis. Os abastados inclinam-se para uma norma, enquanto os miseráveis necessitam de uma droga” (GELLNER, 1995: 33).

“A erudição e a piedade sóbria podem ajudar a reforçar a burguesia mais abastada no usufruto de uma situação privilegiada, mas não consolarão os menos afortunados, que, por sua vez, recorrem a mediadores e fornecedores de êxtase e que proporcionam um consolo mais palpável e um meio de fuga mais excitante. Por conseguinte, a variante da cultura popular serve não só os rústicos, isolados nas suas unidades de parentesco e necessitando de que as mesmas tenham práticas e rituais exteriorizados, mas também os membros mais pobres da população urbana” (GELLNER, 1995: 34).

“Não devemos dar a ideia de que as duas variantes da fé foram sempre clara e explicitamente definidas, separadas com nitidez, e que se defrontaram numa oposição total. Isso seria uma deformação grosseira da situação. Tudo era contínuo, as transições eram graduais e os limites ambíguos e nebulosos” (GELLNER, 1995: 34).

(…) Os dois sistemas interpenetravam-se, constituindo durante a maior parte do tempo uma simbiose perfeitamente amistosa” (GELLNER, 1995:33).

(…) “No entanto, sob as condições modernas, as regras do jogo mudaram. O Estado colonial e pós-colonial possuía tecnologia militar, de comunicações e de transportes que, a longo prazo, minou e destruiu a autonomia dessas unidades rurais, auto-administradas, que anteriormente desafiavam com êxito o Estado central em toda a região árida. A sociedade estava agora politicamente centralizada e era, de facto, governada a partir do centro, que impunha, assim, um sistema económico unificado. Havia uma atomização geral da sociedade, transformada pela explosão demográfica, pela urbanização e pelo domínio urbano, e uma mobilidade imensamente acentuada” (GELLNER, 1995: 35).

“Nestas circunstâncias, os antigos santos-mediadores perderam muitas das suas funções (embora não todas): já não eram necessários para mediarem os grupos sociais, porque os próprios grupos tinham sido liquidados. (…). A população urbanizada ou de algum modo «destribalizada» e «desruralizada» aspirava a viver segundo os ideais urbanos, ávida de ratificar a sua promoção do estatuto de atraso e de ignorância rústicos para a sofisticação e correcção urbanas, por intermédio da prática de um estilo de fé mais orientado para o cumprimento das regras do que para a invocação dos santos” (GELLNER, 1995: 35-36).

(…). Como o emprego de mediadores já não era eficaz nem autorizado, era conveniente ter em consideração a velha proibição da mediação. Desaparecida a tentação, a observância das normas eruditas tornou-se fácil e atraente. O puritanismo e o fundamentalismo tornaram-se símbolos da sofisticação urbana” (GELLNER, 1995: 36).

“Isto constitui o mecanismo básico dessa transferência maciça de lealdade do culto dos santos para uma variante escrituralista e fundamentalista do islão. Esta é a essência da história cultural do islão dos últimos cem anos. O que antes tinha sido realização ou privilégio de uma minoria, uma forma de fé praticada por uma elite cultural, transformou-se agora numa forma de definir a sociedade como um todo” (GELLNER, 1995: 36).

BIBLIOGRAFIA

GELLNER, Ernest. (1995). Condições da Liberdade. Trajectos. Gradiva. Lisboa