“A fingida caridade do rico não passa, da sua parte, de mais um luxo; ele alimenta os pobres como cães e cavalos.”
Sartre
Ah, como gosto destes cenários…
A caridade, o esplendor da virtude!
Um pequeno excerto da grande obra de Saramago, neste caso do livro “Levantado do Chão”, que tive o prazer de transcrever neste meu, passe a redundância, pequeno pedaço de mundo, que é o meu blog, e que dedico com fervor a todas as senhoras caridosas, virtuosas, jonets do agora e de antanho.
Diz Eduardo Galeano, escritor com mais de 40 livros publicados, que não acredita na caridade. Que acredita, sim, na solidariedade, justificando que a caridade é vertical: vai de cima para baixo, enquanto a solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. Mas eu vou mais além e digo que não acredito nas boas intenções da caridade, tenho más recordações desta figura. A maior parte das vezes dá-se o que já pouco préstimo tem, quase lixo. Por exemplo, roupas que até para esfregões mal serviriam. Talvez fossem de grande utilidade vestidas em cruzes de pau, cravadas na fértil mãe terra, para espantarem os pardais. Quanto à solidariedade, penso que também não é tão isenta como parece. Num acto solidário busca-se paz de espírito, um se tens mais partilha um pouco desse mais com os outros, fica-te bem. Eu entendo, sim, que ajudar os outros é uma questão de JUSTIÇA. É uma obrigação, é um dever!
“Todo o cristão, e que o não seja, há-de ter as suas três refeições por dia, o almoço, o jantar e a ceia, estes nomes ou outros tanto faz, o que é preciso é não estar o prato vazio, ou a tigela, ou, sendo de pão e conduto, sirva este para mais do que simples cheiro. É uma regra tão de ouro como qualquer outra de particular nobreza, um direito humano, tanto de pais como de filhos, para que não tenha de acontecer comer eu uma vez para poderem comer eles três vezes, é certo que mais feitas estas para enganar do que para lhe chegar com o dedo.
As pessoas falam falam, mas não sabem o que é a precisão, dar volta à arca e saber que a última côdea já foi comida ontem, e mesmo assim levantar a tampa uma vez mais, não fosse ter acontecido o milagre das rosas, aliás até ele impossível, porque nem eu nem tu nos lembramos de ter posto rosas dentro da arca, e para isso era preciso apanhá-las, se julgam que as rosas nascem dos sobreiros, bonito seria, tresvariar assim só por efeito da fome, Hoje é quarta-feira, vai ao prédio Gracinda, desta vez o António não vai. São incitamentos à mendicidade, é esta a educação que os pais dão aos filhos, não se me dar a língua um nó quando tal digo, não me cair ela no chão aos saltos como o rabo de um lagarto, assim aprenderia a ter tento nas palavras e a não falar de barriga cheia, que é conversa porca.
Quarta-feira e sábado são os dias em que Deus Nosso Senhor desce à terra consubstanciado em toucinho e feijão frade. Estivesse aqui o padre Agamedes e haveria de clamar heresia, apelar para a santa inquisição, contra nós que dissemos que o senhor é um feijão e um coirato, mas o mal do padre Agamedes está na pouca imaginação, habituou-se a ver Deus na pastilha de farinha triga e nunca foi capaz de o inventar doutra maneira, tirando a barba grande e o olho escuro do Pai, e a barba pequena e o olho claro do Filho, com esta diferença de cores que caso de fonte e de fetos terá havido na sacra história. Mais sabe daquelas transfigurações dona Clemência, esposa e cofre de virtudes desde Lamberto ao último Berto, que às quartas-feiras e sábados preside à composição das esmolinhas, guiando e vigiando a espessura da fatia de toucinho, escolhido o menos entremeado, melhor ainda se só gordura, mais alimenta, passando por escrúpulos de pura justiça a rasoira na medidinha do feijão, tudo pela caridade de evitar as guerras da inveja infantil, Tens mais do que eu, Tenho menos do que tu. É uma cerimónia linda, derretem-se os corações de santa compaixão, nenhuns olhos ficam enxutos, nem os narizes, que é Inverno agora e sobretudo lá fora, encostados ao prédio estão os garotos de Monte Lavre, que vieram à esmola, vede como padecem, e descalcinhos, doridos, olhai como as meninas levantam um pezinho e logo o outro a fugir do chão gelado, poriam os dois no ar se lhes crescessem em vida as asas que se diz teriam depois de mortas se tivessem a sensatez de morrer cedo, e como puxam o vestidinho para baixo, não de pudor ofendido, que por enquanto os rapazes não reparam nessas coisas, mas de ânsia friorenta. É uma fila à espera, cada qual com a sua latinha na mão, todos de nariz no ar, fungando o ranho, a ver quando enfim se abre a janela do andar e a cesta pendurada desce do céu, devagarinho, a magnanimidade nunca tem pressa, era o que faltava, a pressa é que é plebeia e sôfrega, só não engole os feijões frades mesmo assim porque vêm crus.
Põe o primeiro da fila a sua latinha dentro do cesto, eis a grande ascensão, vai e não tardes, o frio rapa ao longo da parede como uma navalha rebarbada, quem é que pode suportar isto, ora suportam todos em nome do que há-de vir, e então surge a cabeça da criada, lá vem o cesto com a latinha cheia ou meia, para ensinar aos espertos ou novatos que o tamanho da lata não influencia a dadora desta catedral de beneficência. Julgar-se-ia que quem viu isto viu tudo. Pois não é verdade. Dali ninguém arreda pé até que o último receba o seu quinhão e o cesto seja recolhido até sábado. Falta que venha dona Clemência à janela, toda recatada em agasalhos, a fazer o seu gesto de adeusinho e bênção, enquanto o fresco e amorável coro infantil agradece em diversas línguas, salvo os dissimulados que mexem os lábios e basta, Ai senhor padre Agamedes, o bem que me faz à alma, e se alguém jurar que de hipocrisia dona Clemência fala, muito enganado está, que ela é que sente a diferença que na alma lhe vai às quartas e sábados, em comparação com os outros dias.
E agora reconheçamos e louvemos a cristã mortificação de dona Clemência, que tendo ao seu alcance, em tempo e meios de fortuna, o conforto permanente e assegurado da sua alma imortal, a ele renuncia não dando toucinho e feijão frade todos os dias da semana, é esse o seu cilício. Além disso, senhora dona Clemência, essas crianças não podem ir mal habituadas para a vida, havia de ser bonito, quando crescessem, aonde é que chegariam as exigências.”
Bibliografia
SARAMAGO, José. (1987). Levantado do Chão. Editora Caminho. 7ª edição. Lisboa. pp. 186-189.