“Em consequência de todos os casos de segregação na educação, no trabalho, na sociedade, cada personalidade se reduz a metade – e muitas vezes menos – do seu potencial humano”.
Kate Millet in Groult (1976)
Retirado do livro “Assim seja (ELA)” da autora francesa Benoîte Groult, grande figura da literatura feminista. Relatos impressionantes! Nem o Diabo, essa pretensa figura do mal, se lembraria de ser tão perverso…
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“A propósito, vocês sabiam que no Iémen, na Arábia Saudita, na Etiópia, no Sudão, se excisavam as garotas? Que no Egipto, sob o nome de «khifâddh, todas as raparigas do campo e de um grande número das da cidade são ainda submetidas a esta mutilação sexual? Que é frequente na Guiné, no Iraque, na Jordânia, na Síria, na Costa do Marfim, entre Dogons da Nigéria, e obrigatória em numerosas tribos africanas?
Vocês sabiam que nas múmias do sexo feminino encontradas no Egipto , país que se vangloria de uma civilização liberal, se vê que a todas amputaram o clítoris? Sim, incluindo Nefertiti e Cleópatra?
Que em 1881 a proibição desta prática sangrenta pelos missionários católicos da Abissínia provocou uma tal revolta por parte dos indígenas do sexo masculino que o papa teve de enviar uma delegação especial encarregada de examinar a questão no local?
Foi contudo em vão, pois os Abissínios ameaçaram-nos de que nunca mais consentiriam em baptizar as filhas, e a Igreja, preferindo as almas aos órgãos sexuais, escolheu baixar-se e «reconhecer a necessidade da operação».
E, finalmente, vocês sabiam que, para completar o aprisionamento das mulheres, vários povos no Sudão, na Somália, na Núbia, no Jibuti, a Etiópia e também na África Negra acrescentam à clitoridectomia, que sem dúvida lhes parece insuficiente, um achado original, a infibulação, que garante ao futuro marido, ao preço de um açaimo vulvar muito doloroso, a «novidade» da sua jovem esposa?
Não, vocês não sabiam.
Ou antes, pensavam muito vagamente que era um hábito dos tempos bárbaros, já em desuso.
Ninguém o sabe porque ninguém fala disso.
São histórias de órgãos femininos, portanto sem importância.
Cada um faz o que quer da sua mulher, da sua casa, do seu camelo, não é assim?
Ninguém tem nada com isso.
Na Unesco, calam-se pudicamente: não se vão pôr a falar de clitóris em doutas assembleias! Ah, se estes povos cortassem o polegar ou o nariz às mulheres poderiam indignar-se… Entre os exploradores, os etnólogos e os grandes repórteres, finge-se acreditar numa pitoresca tradição religiosa e só discretamente evocam as cerimónias de iniciação dos jovens. Nas associações femininas quase não se fala dessas coisas. O útero, os ovários, quando em funcionamento, são órgãos de reprodução. Mas essa coisita unicamente votada ao prazer, é indecente. E como é inútil para o homem e para a procriação, é necessário portanto ignorá-la ou destruí-la.
Foi o que se fez.
Os manuais de anatomia nunca a mencionaram até ao século passado e a palavra só tarde apareceu no «Petit Larousse». O mesmo aconteceu na Índia ou na Pérsia; os famosos tratados de amor cuja reputação erótica é notável jamais fazem alusão ao prazer clitoriano.
(…).
Desde Alexandria a Cartum, e nos países vizinhos, a ablação efectua-se cerca dos sete anos. A riquíssima enervação desta zona dá à intervenção um carácter extremamente doloroso. A paciente, deitada no chão, deve estar presa por mulheres que lhe conservam as pernas separadas e tentam evitar os esticões das pernas quando do corte do nervo dorsal do clitóris. Este corte deve ser grande «porque uma excisão limitada não constitui suficiente garantia para a desvergonha das raparigas». (Não se pode confessar mais claramente que se trata na realidade, à sombra de um rito religioso, de suprimir toda a possibilidade de prazer na mulher).
Nenhum instrumento adequado, nenhum auxílio médico, nenhuma anestesia.
No melhor dos casos, no Egipto, não há nos campos mais de mil médicos para dezoito milhões de habitantes! As mulheres que praticam a excisão fazem-no com uma faca curva ou uma navalha, que devem estar muito bem afiadas no momento da incisão feita ao longo das ninfas porque os corpos cavernosos são resistentes. A intervenção deve ser minuciosa para evitar os golpes dos utensílios operatórios, as matronas aconselham os emplastros de excrementos de animais. Não é necessário ter cursado medicina para sabermos que os tétanos; a infecção urinária ou a septicemia não são raros.
Quanto ao períneo das sobreviventes, torna-se terreno de uma esclerose dificilmente dilatável e que se rasga com facilidade quando dos partos… que são numerosos. Além dos casos mortais, o «dejecto» do ritual inclui também as vítimas de uma consequência particularmente atroz da excisão, o desenvolvimento de um nevroma no ponto de corte do nervo clitoridiano. O menor toque na região desencadeia dores terríveis «semelhantes» às sentidas nos cotos de alguns mutilados.
(…)
Em África, entre os Nandis, a mulher que pratica a excisão liga, na véspera da operação, uma urtiga ao clítoris de cada rapariga, a fim de que, inchado ao máximo, a cabeça daquele seja fácil de agarrar com uma pinça, o que lhe permitirá aplicar o tição de madeira sagrada no órgão a destruir. «De cada vez que um clítoris é destruído, as mulheres mais idosas gritam de alegria. A mãe e as irmãs da iniciada aproximam-se e empurram-na para que dance apesar da hemorragia abundante…» (Eros Negro, de Boris Rachlewitz).
A cicatrização leva duas a três semanas, ao fim das quais a rapariga possuirá um sexo bem limpo, «purificado» (a palavra é de um filósofo árabe).
Para os maníacos da posse não era ainda suficiente. «Uma das mais crapulosas baixezas engendradas pelo espírito humano» a excisão pode ser acompanhada de uma garantia complementar: a infibulação. Antes de se casar, a mulher não tem necessidade da vagina. É portanto lógico obturá-la por meio de uma «operação não muito má», como afirma um jornalista do Cairo, um homem evidentemente. Quem poderá falar melhor acerca da clitoridectomia do que um jornalista macho? «E, ao mesmo tempo, desembaraçar-se-á do clítoris as ninfas que o tapam inutilmente».
No Jibuti, onde todas as raparigas são cosidas, eis como Alain Benoist descreve o «fechar» de uma adolescente:
«O clítoris é arrancado previamente; faz-se depois um novo corte nas paredes dos grandes lábios, de maneira a reduzir as dimensões da vulva à metade do orifício vaginal. Em seguida, aproximam-se as paredes em carne viva mantendo as feridas em contacto com uma resina ou, na selva, atravessando os lábios com espinhos de acácia. Por trás, deixa-se um orifício minúsculo para a passagem da urina e do sangue, e que se procura ter aberto durante a cicatrização utilizando um talo de bambu. A paciente deverá ficar ligada desde as ancas até aos joelhos durante o período de quinze dias».
Imaginamos o calvário que constitui esta cicatrização, as dores que a passagem da urina deve provocar, a obrigação de dormir e de caminhar com uma almofada entre as coxas para não comprimir a vulva inchada, cosida grosseiramente e que se tornará numa cicatriz horrenda.
Na noite de núpcias bastará cortar a ligadura de garantia em presença do marido. A jovem esposa, que em geral tem apenas doze ou quinze anos, é de novo aberta com uma navalha antes da passagem do esposo, a quem é recomendado o uso dos seus direitos várias vezes por dia nos primeiros tempos a fim de evitar que a ferida feche. Quando do primeiro parto, será igualmente necessário separar à faca os grandes lábios, endurecidos pela prega cicatricial. Não é difícil imaginar o que para estes seres assim torturados pode representar o amor. Além disso, não fica por aqui: a operação pode ser repetida a pedido do esposo depois de um nascimento ou por ocasião de uma viagem” (pp. 68-73).
(…).
Tudo se passa como se a servidão do sexo feminino não dependesse da opressão em geral, mas representasse simplesmente a maneira que cada povo tem de colocar a mulher «no seu lugar» em sociedade” (p. 88).
Bibliografia
GROULT, Benoîte. (1976). Assim seja (ELA). Bertrand. Amadora. pp. 68-88.