“A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada.”
José Saramago
E no rescaldo dos ataques terroristas em França, eis que me ocorreu ao espírito elaborar um post com um excerto do livro Alabardas de José Saramago, o meu escritor preferido, no qual consta uma subtil mensagem de compaixão pelo próximo, ou melhor, uma homenagem à coragem de alguns, sempre poucos, infelizmente, que ousaram fazer guerra à guerra.
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“No fim da vida, que porta lhe restava então por fechar no edifício da sua obra, no seu percurso pelas facetas do mal e do erro humano?
Que urgência sentia?
Satisfazê-la seria talvez a incumbência atribuída ao seu novo livro, que decidiu chamar inicialmente «Belona S.A.»; mais tarde, em dezembro de 2009, «Produtos Belona, S.A.»; e, finalmente, «Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas».
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As circunstâncias não lhe permitiam sentar-se diante do computador e dar continuidade ao romance, mas a sua cabeça mantinha-se agarrada à história e a dar-lhe voltas.
Tinha coisas para dizer.
A ideia germinal provinha de uma velha interrogação que inquietou Saramago: a razão de não se conhecerem greves na indústria do armamento. A essa matriz associou mais tarde um acontecimento de que teve notícia e que lhe causou uma grande comoção: durante a guerra civil espanhola, uma bomba lançada contra as tropas de Frente Popular na Estremadura não explodiu, devido a um acto de sabotagem, tendo-se encontrado no seu interior um papel com uma breve mensagem redigida em português:
«Esta bomba não rebentará».
Inicialmente, o romancista atribuiu a informação a André Malraux, julgando que a notícia constava do livro «A Esperança». Rapidamente desfez a confusão, sem conseguir determinar a fonte concreta do acontecimento. Nas páginas de Malraux encontrou, no entanto, o apoio de que necessitava para avançar com o seu objectivo. No dia 1 de setembro de 2009, aludia a este equívoco no seu arquivo de notas: «A memória enganou-me, o episódio não está recolhido em «L’Espoir». Nem em «Por Quem os Sinos Dobram» de Hemingway. Li-o em qualquer parte, mas não me recordo onde. Tenho a sorte de Malraux fazer no seu livro uma referência (brevíssima) a operários de Milão fuzilados por terem sabotado obuses. Para o meu objectivo é quanto basta.»
O episódio de Milão dava-lhe cobertura suficiente como «pé» para abrir caminho ao «tratamento ficcional do tema». O resto acrescentá-lo-ia a imaginação. Planeava os traços gerais do livro e procurava suportes em que apoiá-los e em materializar a ideia, uma vez que a sua intenção parecia ser clara desde o princípio.
Os episódios de sabotagem de armamento, ligados a mensagens de encorajamento para as fileiras republicanas, não são desconhecidos das páginas da literatura espanhola nem de jornais da época como «Milicia Popular». O testemunho literário mais mencionado é dado por Arturo Barea em «La Llama», o terceiro volume da trilogia «La Forja de un Rebelde». Um projéctil lançado sobre Madrid não explode; depois de desmontada a espoleta por um artilheiro, encontra-se no seu interior uma tira de papel, manuscrita em alemão, onde pode ler-se:
«Camaradas. Não temais. Os obuses que eu carrego não explodem. Um trabalhador alemão.»
Operários espanhóis, alemães, italianos e portugueses arriscaram-se sabotando armas na Guerra Civil e incluindo mensagens solidárias de encorajamento, recebidas em variadíssimos pontos da geografia espanhola: Madrid, Jaén, Alicante, Sagunto, Cáceres, Badajoz…
Saramago comoveu-se com os gestos fraternais ocorridos em Milão e Espanha, particularmente com este último, cujo bilhete fora transcrito na sua língua materna.
Ao mesmo tempo, proporcionavam-lhe material de escrita valioso, afim à sua velha preocupação sobre as fábricas e o comércio de armas, sobre ausência de greves no sector e os conflitos éticos subsequentes. Os ingredientes traziam e energia e carácter narrativo, mas também densidade de contraste moral, moldando-se escrupulosamente ao seu objectivo derradeiro de denúncia, embora no fim não tivesse podido concretizá-lo.
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Saramago considerava que «a literatura é o que faz inevitavelmente pensar». Concebeu o romance como um exercício de acção intelectual, um método para programar cenários verbais de pensamento e, por conseguinte, um veículo para reflectir. As suas ficções pensavam e faziam pensar, até se afirmarem, metaforicamente, como uma espécie de ensaios com personagens. A ênfase nas ideias e nos valores aparece ligada à sua produção desde o início, aloja-se na raiz da sua atitude e motivação literárias:
«Sou um escritor um pouco atípico.
Só escrevo porque tenho ideias»,
repetiu em diversas alturas. De modo que a sua obra se ergue como um marco narrativo monumental, decidido a reflectir sobre o mal e o erro contemporâneos, atento aos desvios do ser humano, afectado, definitivamente, pelas múltiplas variantes da inumanidade que nos fustigam. A partir de «Ensaio sobre a Cegueira», continuou a perscrutar e a iluminar essas zonas de sombra que atingem e deterioram a dignidade humana, penetrando na consciência e nas formas de relação do sujeito tardo-moderno.
Juntamente com o apelo ao pensamento, o seu compromisso intelectual recusava a indiferença e a apatia moral. Ainda hoje ecoam a sua denúncia severa e a sua exigência de um regresso à ética, a necessidade de protagonizar uma insurreição da virtude num contexto de decadência, um princípio que aplicou com ousadia nos seus textos.
«Dei-me conta, nestes últimos anos, de que estou à procura de uma formulação da ética: quero expressar, através dos meus livros, um sentimento ético da existência, e quero expressá-lo literáriamente», reconheceria em 1996.
Esse rearmamento moral, confrontado com a resignação do espírito, devia contribuir para desenvolver a condição humana e, em sua opinião, teria de ancorar-se no comportamento quotidiano, na vida diária: «Quando dizemos o bem e o mal… há uma série de pequenos satélites desses dois grandes planetas, que são a pequena bondade, a pequena maldade, a pequena inveja, a pequena dedicação… No fundo, é disso que é feita a vida das pessoas, ou seja, de fraquezas, de debilidades...» De uma maneira ou de outra, alertava para a necessidade de o nosso tempo adoptar um «sentido ético da existência», uma mobilização que passava por sublinhar a coerência individual e interiorizar as relações de respeito, apoiada num axioma tão básico como universal:
não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.
Que porta insistia então fechar?
Que urgência sentia?
Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, o último fôlego de José Saramago, pretendia inscrever-se nesse espaço delimitado por pensamento e ética: um romance de ideias com uma forte componente de reivindicação e provocação , um derivativo de filosofia moral para a consciência dos seus leitores, tomando como argumento o mundo inóspito e lacerante da produção e do uso de armas.”
“Todos os países, quaisquer que sejam, capitalistas, comunistas ou fascistas, fabricam, vendem ou compram armas, e não é raro que as usem contra os seus próprios naturais” (p.39).
“Burilar a frase é o mais importante nas comunicações entre os humanos” (p. 61).
“A prudência manda que no passado só se deva tocar com pinças, e mesmo assim desinfectadas para evitar contágios” (p. 62).
“Saramago refugiava-se na escrita. Estava a fechar portas e restavam-lhe coisas por dizer. Teria tempo suficiente para as expor?” (p. 86).
“Essa era, talvez, a última porta que lhe urgia fechar ou abrir, conforme se queira ver: a da responsabilidade moral do indivíduo” (p. 103).
“Quem são os bons?”
“Quem são os maus?!
Bibliografia
SARAMAGO, José. (2014). Alabardas. Porto Editora. Porto. pp. 87- 101.