Mentes estreitas

Publicado por: Milu  :  Categoria: Mentes estreitas, SOCIEDADE

 

“Tudo aquilo que não podemos incluir dentro da moldura estreita de nossa compreensão, nós rejeitamos.”

Henry Miller

  1. “Vou disparar relâmpagos quentes para dentro de ti, incandescer os teus ovários. O teu Sylvester já está com ciúmes? Sente algo, é? Sente os vestígios da minha piça grande? Afastei um pouco as margens. Passei os refegos a ferro. Depois de mim, podes foder garanhões, touros, carneiros, patos, são-bernardos. Podes enfiar sapos, morcegos, lagartos no recto. Podes cagar arquejos, se quiseres, ou dedilhar uma cítara pelo umbigo. Estou a foder-te, Tania, para que fiques fodida de vez.”
  2. “e a tua tia sabes de que tem cara de puta, sabes o que é, uma mulher tão porca que fode com todos os homens e mesmo que tenha racha para foder deixa que lhe ponha a pila no cu” ou “fazem amor pelo cu porque não têm racha, enfiam coisas no cu percebes… maricas é meter coisas no cu… nem querem saber de terem uma pila.”

“Nem tudo o que parece é”. Foi este adágio popular que me ocorreu, conforme fui seguindo as postagens e comentários feitos no Facebook a propósito do Pano Nacional de Leitura.

Ambos estes excertos, que eventualmente terão sido chocantes para algumas pessoas, foram retirados de obras de autores diferentes. O segundo excerto foi retirado da obra “O nosso reino” da autoria de Valter Hugo Mãe e consta  do Plano Nacional de Leitura, que foi recomendado para alunos do 7º, 8º e 9º ano.

Caíu “o carmo e a trindade” no burgo, porque ai os ouvidos virgens das criancinhas. Criancinhas já com idades, seguramente, entre os 12 e 15 anos, com todo o acesso à rede da Internet, onde poderão ver e ler de tudo, caso a sua liberdade não esteja travada, mas se estiver,  podem  ver e ler através do telemóvel de algum colega, quanto mais não seja.

O que aconteceu foi  que este excerto de Valter Hugo Mãe foi retirado de um contexto onde tinha uma determinada significância. Lido no livro, em fluxo, tem um certo cabimento, lido assim, fora de um contexto, assume o aspecto de uma brutalidade gratuita. Fica-se com a impressão de que o livro é pouco recomendável e o seu autor também não deverá ser grande coisa, porque quem escreve deste jeito não tem nada de mais interessante para dizer.

Esta mesma impressão terá sido causada aos leitores (as) que leram o primeiro excerto neste post. No entanto, o excerto apresentado foi retirado do livro “Trópico de Câncer” da autoria de Henry Miller. Um autor que dispensa apresentações.

Ler Miller é mergulhar no que é a vida.

A vida não é nenhuma ladainha. Tem  momentos de beleza, se tem, mas também tem momentos em que é bruta e porca. Neste livro, “Trópico de Câncer“, podemos ver, por exemplo, o que é a vida de alguém sem dinheiro a viver numa grande cidade. O que é deambular por sítios baratos. Como pensa, e o que pensa,  um homem esganado com fome. Podemos ver o que é a verdade. Aquela verdade que todos vêem mas que ninguém quer ver.

Curioso foi verificar que os mais acintosos na crítica a esta escolha para o Plano Nacional de Leitura, que desdenharam o livro em causa e seu autor, sem conhecer nem um, nem outro, quando confrontados com o facto de haver obras célebres, com conteúdo sexual explícito, de autores notabilizados, tiveram o desplante de considerar que essas obras, sim, são literatura!   É por isto, por esta forma de pensar, que em Portugal se homenageiam  os mortos, já que enquanto vivos estão mais a jeito para serem abatidos.

Também me apercebi que houve pais, quando lhes foi dito que crianças desta idade já não são assim tão pueris, que já não terão nem os olhos nem os ouvidos assim tão virgens, que foram capazes de afirmar a pés juntos, que sabem tudo o que os filhos fazem.

Recomendo-lhes eu que tenham mais tento. Que se reportem ao tempo em que foram crianças. Foram assim, tão panhonhas? É que ter uma educação com regras e bons princípios, não implica que se tenha de ser um, ou uma, panhonha. Pelo contrário: uma criança bem saudável é aquela que arde em curiosidade e parte para a descoberta.

Ao contrário de muita gente,  considero até que este excerto de Valter Hugo Mãe, assim, brutal, e mesmo desprendido de contexto, pode contribuir para  educar os adolescentes.  Para lhes mostrar o que é a misoginia. Para lhes mostrar como é que o homem foi ensinado a pensar a mulher. Para tal, basta fazer um cruzamento entre a leitura destes excertos, obscenos e brutais, com excertos de obras sobre a História das Mulheres. Como farei neste post, por exemplo.

A misoginia é a repulsa, desprezo ou ódio contra as mulheres. Esta forma de aversão mórbida e patológica ao sexo feminino está directamente relacionada com a violência que é praticada contra a mulher. A misoginia é a principal responsável por grande parte dos assassinatos de mulheres, também conhecido por feminicídio. Configura-se através de agressões físicas e psicológicas, mutilações, abusos sexuais, torturas, perseguições, entre outras violências relacionadas directa ou indirectamente com o género feminino.

O menosprezo pelas mulheres está de tal forma interiorizado, naturalizado, que muitas das mulheres nem reparam, nem dão por ele. Mas esse menosprezo, essa desconsideração, está presente nos nossos dias revestido das mais diversas roupagens.

Vejamos o que nos conta a obra Mulheres Portuguesas, para perceber o desprezo com que se tratava a mulher. O que era a vida das mulheres. O  ambiente em que viviam. O jugo a que eram submetidas. E os resquícios que ainda resistem nos nossos dias.

Os excertos que se seguem, cuja leitura recomendo vivamente, foram retirados da obra “Mulheres Portuguesas” da autoria de Irene Flunser Pimentel e Helena Pereira de Melo. Consultar a bibliografia no final do post.

“A mulher no Código Penal de 1886”

Ou seja, a mulher sob a batuta da lei

“A punição do crime de infanticídio (causar intencionalmente a morte de uma criança no acto do seu nascimento ou nos oito dias subsequentes) é menor se tiver sido «cometido pela mãe para ocultar a sua desonra, ou pelos avós maternos para ocultar a desonra da mãe». O crime do aborto, quer tenha sido ou não consentido pela mulher grávida, é em regra severamente punido (com pena de prisão até oito anos), podendo, no entanto, a pena ser muito atenuada se a mulher tiver cometido o crime «para ocultar a sua desonra»” (Pimentel & Melo, 2015: 113).

“A honra da mulher, que se não for respeitada leva à desonra de toda a família, em particular do marido, é o bem jurídico fundamental protegido por todas as normas penais em matéria de crimes sexuais. Como salienta Lopes Praça:

«A mulher que perde a sua honra fica para sempre maculada. O mundo não conhece reabilitação para esta falta. Para a desonra passar em julgado na opinião pública é desnecessária a evidência. A verosimilhança faz a prova plena. Perdesse, muito embora, a mulher a sua honra em virtude de violências nada importa; a sua mancha subsistiria, e o véu da vergonha nunca se lhe levantaria das faces (…) Para tornar a desgraça da mulher mais profunda, a sua queda, como a da nossa mãe Eva, é solidária e comunicativa para pais, maridos, e filhos, para a família toda»” (Pimentel & Melo, 2015: 113).

“Para, por exemplo, ocultar a desonra da filha que tenha engravidado a mãe pode fazer crer que a criança que nascer é sua filha e não sua neta (…)” (Pimentel & Melo, 2015: 113).

(…).

“O Código regula também, com pormenor, o crime de adultério, estabelecendo, como referimos, um regime muito diferente consoante o criminoso seja o marido ou a mulher. A prática do crime de adultério pela mulher é, como referimos, severamente punida pelo legislador penal: com pena de prisão de dois a oito anos ou, em alternativa, com degredo temporário. Pelo contrário, a prática do mesmo crime pelo marido só é punido no caso extremo de este ter »manceba teúda e manteúda na casa conjugal» e, mesmo assim, como também dissemos, com uma pena incomparavelmente mais leve (Pimentel & Melo, 2015: 114).

(…).

“Aludindo à diferente penalização do crime de adultério, Ana de Castro Osório Salienta:

«(…) a mulher casada podia sofrer todas as afrontas, todos os vexames, duma poligamia mal disfarçada, que não tinha o direito de se queixar, como se para ela a consciência e a justiça não existissem! (…) a mulher casada não tinha o direito de pôr os olhos fora da sua própria casa, devendo antes fechá-los com submissão e paciência, como a favorita legítima do senhor, a quem tudo era permitido  sem desdouro. Para ela toda as responsabilidades; para ele todas as vantagens e regalias» (Pimentel & Melo, 2015: 114).

“Mais uma vez, o bem jurídico protegido por estas normas é o da honra, sobretudo a do marido, ofendida pelo comportamento sexual da mulher quando esta estabelece uma relação extraconjugal. O comportamento do marido, quando agride a mulher ou o amante, é considerado socialmente quase aceitável – como escreve Lopes Praça:

«A queda da mulher não só a enlameia aos olhos de quantos a conhecem, mas dissolve todo o amor que alentava a família. O amor paternal, fraterno, conjugal e filial transforma-se em ódio insanável, em desprezo irremediável. O pai tem matado a filha, o irmão a irmã, o marido a mulher, o filho a mãe. E a opinião pública olha todos estes crimes com indulgência. Os criminosos dizem aos tribunais: “Sentia em mim a imperiosa necessidade de desafrontar a minha honra.” E os tribunais atenuam a pena, ou os absolvem.» (Pimentel & Melo, 2015: 114).

“O Código pune igualmente, no capítulo intitulado «Dos crimes contra a honestidade», outros crimes sexuais praticados fora do casamento: o estupro, a violação e o rapto. Estes crimes são delineados tendo em atenção vários factores: se a mulher solteira é ou não virgem (e, logo, «honesta» ou «desonesta»), a sua idade e a violência com que são cometidos” (Pimentel & Melo, 2015: 115).

(…).

“No caso de violação, o legislador não distingue entre mulher «virgem» ou «não virgem» nem maior ou menor de dezoito anos. Porém, na aplicação da lei pelos tribunais, estes factores serão tidos em conta, enquanto preconceitos dominantes na sociedade portuguesa de finais do século XIX, para a determinação da pena aplicável no caso concreto. Como salienta Lopes Praça a propósito da prática judicial em matéria de crimes sexuais, à data:

«Até mesmos os funcionários encarregados do cumprimento da lei, eivados dos preconceitos públicos, facilitam a impunidade dos sedutores (…)»” (Pimentel & Melo, 2015: 115).

(…).

«Perdoa-se ao mancebo a imoralidade e os extravios da juventude; na mulher punem-se essas irregularidades como crimes irreparáveis. Daí o pesar sobre as meninas uma desconfiança de ferro. A mulher não só deve ser imaculada, mas tratar-se de modo que até o contrário nos pareça impossível. Com que razão os princípios de moralidade, à luz dos quais são julgadas as meninas, hão-de ser relaxados na sua aplicação ao procedimento masculino? (…)»” (Lopes Praça, 190) in (Pimentel & Melo, 2015: 116).

“Afigura-se-lhe deste modo indispensável que «os legisladores se pronunciassem severa e abertamente em favor do desafrontamento das mulheres tão severamente punidas pelo seu crime, e contra o sedutor, que a opinião pública proterva e desmoralizada, em lugar de punir exalta, aplaude e até inveja» (Lopes Praça, 190) in (Pimentel & Melo, 2015: 117).

Sinopse

Valter Hugo Mãe em “o nosso reino”:

“Delicadíssima história de uma criança em torno da ansiedade por uma resposta de Deus. Retrato de um Portugal recôndito ao tempo da Revolução dos Cravos que nos conta como em lugares pequenos as ideias maiores são relativamente intemporais e o que acontece ignora largamente o tempo exacto do mundo.
O belo livro de estreia de valter hugo mãe é uma fulgurante prova de imaginação e beleza. Entre a profunda ternura e a difícil aprendizagem da vida, cada dia é um esforço para que se prove a existência do milagre de se ser alguém.”

CRÍTICAS DE IMPRENSA

“Há uma nova presença importante na ficção portuguesa contemporânea. Falo de valter hugo mãe, que surge agora, numa escrita mágica, suave-cruel, entre paraíso e inferno, com o seu romance o nosso reino.”

Urbano Tavares Rodrigues

“A narração do autor é quase que um sussurrar de lembranças, o resgatar de um tempo vivido entre o temor e a confiança nos valores divinos. Mas esse falar deixa às vezes de ser sussurro (…) quando a linguagem se torna menos mansa e lógica, para então enfurecer-se, tornar-se deliberadamente incongruente e torna-se alquimia verbal.”

Ferreira Gullar, Prefácio

“Ou muito me engano (…) ou o romance o nosso reino, de valter hugo mãe, é uma das maravilhas, deste final de ano. (…) É uma fenda no céu. Uma ventania.

Francisco José Viegas

Bibliografia

MÃE, H. Valter.(2016). o nosso reino. Porto Editora.

MILLER, Henry. (2008). Trópico de Câncer. Editorial Presença. Barcarena. pp. 10.11.

PIMENTEL, F. Irene. MELO, P. Helena. (2015). Mulheres Portuguesas. Clubedoautor, S.A. Lisboa