“Nosso Senhor ama os pobres, por isso fez tantos.”
ABRAHAM LINCOLN
Ah, como é bom o descanso! No etéreo, ao lado do divino Criador esteja quem o inventou! O sentimento de descontracção que neste momento me avassala sinto-o como algo de sublime, que tão bem me faz à alma, e que de tão bom, só pode advir dos divinos céus! Os católicos convictos que me perdoem a heresia, estes que têm o sofrimento como ordenança de Deus para a redenção humana. Neste âmbito funciono um pouco ao contrário, é que de Deus só espero o melhor, o mais puro sentimento de leveza e conforto. Um Deus bom não incute sofrimento, mas sim os sentimentos de exaltação, que podemos sentir em momentos especiais. Foi imbuída com este estado de espírito, que me aprestei a sentar-me aqui defronte do meu portátil, o meu confidente destes últimos tempos e falar-vos sobre mim, sobre o que me rodeia e sobre o que me assola ao pensamento. Porque gosto de me debruçar sobre as coisas e sobre elas pensar.
Já aqui vos falei de uma minha prima, que, de certa forma, me acompanhou em importantes fases da minha vida. Principalmente na minha juventude, um tempo em que sinto que tudo vivi ao de leve, sem me deter em nada particularmente, foi como se planasse na paisagem de um mundo que só a mim me era dado ver.
Devido às contingências das nossas vidas, afastámos-nos uma da outra e passaram-se alguns anos em que nem sequer nos falámos. Houve momentos em que senti desesperadamente a necessidade de estar com ela, para poder desabafar e dar vazão aos tormentos da minha alma e às minhas alegrias também. Claro! Até porque sou extremamente emotiva e comunicativa, apenas não o sou com toda a gente, e disso faço questão, ou seja, de permanecer assim. Sabia que só ela, a minha prima, era capaz de me entender, afinal, as duas tivemos um percurso de vida muito comum. Há tanta coisa que só ela é digna de ouvir de mim, no fundo, reconheço que usufruimos ambas de idênticas circunstâncias de vida, quer elas fossem boas, quer fossem más. Para tanto termos em comum, basta-nos as mesmas origens, logo, mais ou menos as mesmas referências. Há algum tempo enchi-me de coragem e procurei-a. Posso dizer que foi um retorno um tanto tímido. Não tinha a certeza até que ponto havia mudado a sua forma de ser e estar no mundo. Ontem, Domingo, estive mais uma vez com ela, passeámos e conversámos muito, acabámos por ir jantar num sítio extremamente simpático, ao qual eu nunca tinha ido, apesar de saber da sua existência e que era muito frequentado por pessoas que sempre conheci. É uma tasquinha no Livramento, uma pequena povoação que fica logo depois das conhecidas curvas de Porto de Mós, que algumas vezes na minha juventude, percorri numa motorizada a altas velocidades, curvando vertiginosamente quase deitada e sem capacete. Era a idade do risco e da asneira, disto nem vale a pena dizer mais seja o que for!… Tomara que o meu filho não leia isto. O que iria pensar de mim, que estou sempre a avisá-lo para os perigos? Afinal, ficaria a saber, que na sua idade fui muito pior que ele, isto é, mais inconsequente.
Na dita tasquinha servimos-nos de uns grelhados e de um jarrinho de vinho tinto da casa, não fiquem a pensar mal, aliás podem ficar a pensar mal, o que me interessa é que me soube divinamente. O vinho! Pois! É nestes momentos de sagrada comunhão com as pessoas que nos são mais próximas, que nos apetece exorcizar os fantasmas da alma , rindo-nos não só com as jocosas lembranças dos bons momentos passados, mas também, das nossas fraquezas e aflições cujos efeitos mais ou menos dolorosos, o tempo se encarregou de amenizar na nossa memória. E foi assim que a minha prima me contou uma das suas experiências de criança, que não me fez rir, aliás, fiquei até bastante séria!
Quem sempre viveu nas grandes cidades talvez não faça ideia do que significa o dia do Pão por Deus. Mas, para todos os outros, especialmente para os pobres, o dia do Pão por Deus é um dia em cheio. Logo de manhãzinha, pelas oito horas, há que sair de casa munido com uma saca de pano, sozinho ou inserido num grupo de outras crianças, que sempre é mais divertido, toca de bater às portas e accionar campainhas para pedir o Pão por Deus, que tanto pode ser em dinheiro como em guloseimas. Eu adorava andar a pedir Pão por Deus. Assim que enchia a saca logo cuidava de ir a casa despejar todo o seu conteúdo para dentro de um alguidar. Ele eram bolos, ele eram broas, ele eram rebuçados e até peças de fruta variada, castanhas, nozes e figos secos, que não apreciava por aí além. Fruta tinha eu quanta queria, não faltavam quintais de vizinhos para “assaltar”. E quanto aos figos secos e as nozes, não são de forma alguma coisas que façam luzir o olho a uma criança. Mas o meu pai gostava! Por isso dava-lhos prazenteira, para ele fazer os casamentos, isto é, o meu pai colocava uma noz dentro de um figo seco, que comia gostosamente.
Ficava contente que o meu pai gostasse daquele pouco que eu tinha para lhe dar, porque eu gostava de lhe dar coisas. Pelo menos nesta altura, no dia do Pão por Deus, eu tinha conseguido ter alguma coisa para lhe dar, e ele não se fazia rogado. Descia lá do alto do altar-mor da autoridade paterna, para também ele ser uma criança, nem que fosse por uns escassos instantes. Mas o mais apetecido da criançada era e será sempre o “el cantante”. Para os miúdos, nada era melhor do que uma mão cheia de moedas a tilintar umas contra as outras. Actualmente parece haver alguma tendência para deixar de se dar dinheiro, defendem alguns adultos, com ares de grandeza e superioridade moral, que não será aconselhável, visto que não se sabe que destino pode ter.
Pois a minha prima recorda-se que deixou de ir pedir Pão por Deus, precisamente porque não estava para se sujeitar à humilhação de ser menosprezada em relação ao grupo de crianças, que acompanhava no exercício desta tradição. É que se apercebeu, que as pessoas antes de darem fosse o que fosse aos miúdos, tinham o costume de perguntar a cada um deles de quem eram filhos.
– Tu és de quem?
Conforme a importância ou proeminência social dos progenitores assim era dada uma correspondente quantia em dinheiro. Por conseguinte, havia uns que juntavam mais dinheiro do que outros, conforme a sua ascendência familiar. Os que fossem oriundos de famílias humildes e pobres, que é a mesma coisa que dizer, filhos de ninguém, como era o caso da minha prima, eram os que menos dinheirito angariavam! A minha prima, ainda tão menina, pôde assim descobrir o quão baixo e miserável pode ser um ser humano, porque o adulto que assim procede é um sabujo! E tantos assim, que se cruzam nas nossas vidas, meu Deus! Também me recordo de uma minha professora ter o costume de adoçar as suas maneiras, sempre que se dirigia a uma miúda cuja mãe era quase analfabeta, mas que tinha uma pequena loja onde comercializava artigos de mercearia e hortaliças, onde lhe calhava passar sempre que, saída das aulas, percorria o caminho de casa. A sabujice tinha um propósito, um especial propósito, por assim dizer… Sempre lhe valia uns descontos nas compras.
No próximo post tenho intenção de contar uma situação que ilustra na perfeição o quanto uma criança pobre pode ser marginalizada em relação a outra criança cujos pais não sendo ricos, faziam vida de ricos, e por isso o pareciam. Já naquele tempo não era preciso ser, bastava parecer. Até lá!