
“A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e sim em ter novos olhos.”
Marcel Proust
Depois do ataque de 11 de Setembro de 2001 aos Estados Unidos, muito se ouviu falar de Osama bin Laden. Mas, quantos de nós sabem quem foi verdadeiramente, e quantos de nós conhecem os contextos que deram à luz o místico guerreiro? No post de hoje, disponibilizo um excerto da obra que por ora tenho em mãos, no qual é possível perceber porque se disse que os Estados Unidos, ao serem atacados daquela forma, estavam afinal, a beber do seu próprio veneno. Seja como for, de uma coisa podemos ter a certeza, que os principais países intervenientes nestas lutas têm todos os seus telhados de vidro, todos jogaram a coberto dos bastidores, todos têm a sua quota parte da responsabilidade na instabilidade da paz mundial.

“À semelhança dos companheiros e soldados do Profeta, bin Laden queria unir o Corão e a Espada – ou o Corão e a Kalashnikov – numa grande cruzada islâmica para libertar o Médio Oriente dos «nazarenos e dos judeus». Osama é uma personagem estranha, radical, enigmática, uma espécie extrema e oriental de herói romântico, à Balzac ou à Stendhal. Como é que o 17º filho de um self-made man iemenita se pôde tornar chefe da Internacional Islâmica e inimigo número um do Ocidente?
O patriarca da família, Mohamed bin Laden, fora-se sucessivamente divorciando das suas mais de vinte esposas , de modo a nunca ultrapassar a quota de quatro, permitida pela lei corânica. Fabulosamente rico, mesmo para os níveis sauditas, Mohamed fizera fortuna na construção e obras públicas em Meca, onde os monumentos históricos iam dando lugar aos grandes edifícios. O jovem Osama teve a infância e a adolescência de um filho de família rica e andou na Al Thager Model School, não longe do Mar Vermelho, um dos melhores colégios de Jeddah, frequentado por príncipes e outros membros da família real, mas também por plebeus abastados, como os bin Laden.
A Al Thager («O Paraíso», em árabe) fora fundada com o apoio da Casa Real, do então príncipe e depois futuro rei Faiçal, homem de espírito modernizante. Ensinava-se Inglês, Matemática, Ciências e Estudos Religiosos. Entre os professores havia alguns adeptos da Irmandade Muçulmana, expatriados religiosos que tinham sido perseguidos pelos ditadores progressistas do Egipto e da Síria, e a quem os sauditas acolhiam por simpatia ideológica. Para os governantes sauditas, que viam no pan-arabismo secular o inimigo principal das monarquias religiosas do Golfo, justificava-se esta protecção. Foi um destes professores exilados, um sírio, que iniciou Osama e outros companheiros nos estudos islâmicos, constituindo um grupo de oração e reflexão pós-escolar.
Osama era então um jovem alto e bem constituído, praticante de judo. Os membros do grupo começaram a adoptar os modos e estilos tradicionais, imitando o profeta Maomé: deixaram crescer a barba, usavam túnicas largas e calças pelo tornozelo. Seguiam o rigorismo dos Irmãos Muçulmanos, aliado ao purismo wahabita. Além do cumprimento estrito dos preceitos, preocupava-os a restauração e a imposição da Lei Corânica em todo o mundo islâmico através do activismo político-religioso.
Na Universidade Rei Abdul-Aziz, de jeddah, Osama foi um estudante aplicado e escrupuloso na prática islâmica, suplantando os companheiroa influenciados pela Irmandade: jejuava às segundas e quintas (excedendo o exigido) e não se interessava por mulheres, ainda que tivesse casado aos 17 anos com uma sobrinha mais nova. A mãe, Hamida Ibraim, era a 11ª esposa de Mohamed e o jovem bin Laden, ainda que partidário da poligamia, criticava os sucessivos casamentos e divórcios do pai. Osama viria a casar-se cinco vezes e a ter 20 filhos, mas sem que repudiasse nenhuma das esposas.
A invasão do Afeganistão pelos soviéticos – esses outros inimigos de Deus – foi o ponto de viragem para o jovem bin Laden, o nó que iria mudar toda a sua existência e o mundo. No princípio reinara grande harmonia e equilíbrio entre os vários parceiros da cruzada anti-soviética no Afeganistão. O Congresso Americano, empurrado por Charles Wilson, tomou a iniciativa de multiplicar o financiamento da operação e os sauditas e outros potentados do Golfo pagaram o resto – que era muito, talvez o dobro do que davam os americanos.
Por sua vez, os paquistaneses da ISI (Inter-Services-Intelligence) recebiam e redistribuíam, a seu critério, estes fundos pelos vários movimentos de resistência, que nem sempre se estimavam profundamente, já que tinham diversas origens tribais e diferentes inspiradores e financiadores – dos britânicos aos iranianos. Mesmo assim era uma «boa guerra». Bill Casey negociava com os sauditas a maquiavélica manobra da descida do preço do crude para arruinar os soviéticos, e os operacionais da CIA trabalhavam intimamente com os seus homólogos paquistaneses, profissionais sofisticados, para sabotar o moral das tropas de Moscovo naquela insubmissa província do Império. Entretanto, os mujahedin internacionais batiam-se com coragem suicida no terreno, ao lado dos chefes tribais descendentes dos guerreiros que tinham derrotado os ingleses do Raj.
Tudo parecia ir pelo melhor nos meados dos anos 80. Depois das moralmente duvidosas guerras do Vietname, das promíscuas relações com os ditadores anticomunistas da Ásia e das Américas, a grande democracia americana ajudava um povo de pastores e camponeses livres, escravizados pelos comunistas do Kremlin e pelas elites colaboracionistas do governo fantoche de Cabul. A luta era saudada como justa, nobre e até racional, já que finalmente se vislumbrava uma possibilidade de vitória.
Ossama bin Laden estreou-se nessa boa guerra: primeiro como mecenas de boa vontade, financiando os combatentes do seu bolso, fazendo o vaivém Arábia-Afeganistão, recrutando os islamitas militantes que vinham para o bom combate anti-soviético; depois como comandante, entrando com o seu próprio grupo em operações contra os invasores.
Teria nascido aqui a Al-Qaeda, «A Base», ou, como alguns querem, «a Fundação», fórmula hipoteticamente inspirada no clássico de Isaac Asimov, que bin Laden terá lido.
Esta «boa guerra» do Afeganistão foi o tempo de vésperas de Osama e do núcleo duro dos seus fiéis. Aparentemente era uma guerra clara e simples: os comunistas afegãos tinham tomado o poder através de complots e chacinas sucessivas, tentando «comunizar», ou «modernizar à maneira comunista» o Afeganistão. Para tal, tinham combatido o Irão, violentado os costumes da sociedade tradicional, suprimido impiedosamente os resistentes, assassinando o povo. O recurso às armas fora uma necessidade.
Perante a queda iminente dos seus agentes locais, os comunistas de Moscovo tinham invadido o Afeganistão para os salvar e impor o seu domínio. Aí, com um maciço apoio directo ou indirecto dos países da região e do mundo islâmico, a administração Reagan estabelecera uma aliança com os senhores da guerra locais, indignados com o domínio dos ímpios estrangeiros. Com armas modernas, como os mísseis Stinger e o canhão Oerlikon, os montanheses destemidos seriam invencíveis, passando a derrubar e a destruir com perícia helicanhões M18 e tanques T-72.
Na frente era a harmonia. Nos bastidores, talvez não. Os auxílios aos guerrilheiros – que estavam dispersos por vários movimentos e partidos – vinham de forças externas que iam dos sunitas da Casa de Saud aos xiitas do Irão, do lobby do Congresso norte-americano aos complexos meandros da ISI paquistanesa, movendo agendas e interesses muito diferentes.
Como lidou bin Laden com este complexo de forças e entidades, todas elas dirigidas pelas razões dos respectivos Estados? Como reagiu ele, que se imaginava como um combatente de Deus em estado puro, apelando directamente ao rei saudita para que se libertasse dos aliados americanos? Como actuou o guerrelheiro da fé que, na universidade, bebera os ensinamentos dos Irmãos Muçulmanos directamente de Mohamed Qutb, irmão do dirigente e mártir Sayyid Qutb, e de Abdullah Azzam, um intelectual palestiniano que combatera contra os israelitas?
Osama lera as principais obras do mártir Qutb e nelas colhera a sua concepção do mundo e uma geopolítica do conflito determinada por uma cosmovisão religiosa. Para Sayyid Qutb, o partido de Deus, o dos verdadeiros crentes, enfrentava neste mundo o partido de Satã, que se confundia com o Ocidente materialista, que humilhava e corrompia os muçulmanos através da exportação das suas ideologias, costumes e mercadorias. Mas o Ocidente só podia fazê-lo com o auxílio de muçulmanos corrompidos, os das elites reformadoras, das monarquias decadentes e das ditaduras modernizantes. Também para Qutb era determinante a distinção entre o Islão, Casa de Deus, Casa da Paz, e o não-Islão, Casa da Guerra, o mundo judaico-cristão.
Embora não entrando em hostilidade directa com o Ocidente, o ensino dos wahabitas , com o seu rigorismo ortodoxo e o seu policiamento das consciências e dos costumes, contribui para esta atitude agressiva.
Com Sayyid Qubt, Osama acreditava que os cristãos e os judeus queriam conter e submeter a renascença islâmica e eram um alvo a abater. Mas a síntese entre a teoria e a doutrina política, Osama encontrá-la-ia noutro dos seus professores, Abdullah Azzam. Depois do Egipto e da Jordânia, Azzam fixou-se em Jeddah; mais tarde foi para Islamabad, no Paquistão, sempre leccionando, e em 1984, estava em Peshawar, onde Osama o voltava a encontrar.
Azzam elaborara uma teoria e uma estratégia para para a nova Jihad: a luta contra os soviéticos era a maior das lutas dos crentes, do partido de Deus. Os fundos sauditas, do Reino e de particulares, como o próprio bin Laden, sustentavam em parte essa luta, mas deveriam também financiar todo um esforço cultural e social de doutrinação junto dos exilados e refugiados. Azzam era o editor de uma revista dos afegãos no exílio, também chamada Al-Jihad.
A luta contra os soviéticos é um dever prioritário dos bons muçulmanos, mas há outros inimigos e outras batalhas; na Palestina, na Somália, nas Filipinas, na Ásia Central Soviética. Lá onde houvesse crentes oprimidos que sofressem o domínio dos infiéis, aí deveriam estar os seus irmãos, os outros membros da Umma, a fim de lhes prestarem auxílio.
A Peshawar, onde se encontram Azzam e Osama, afluem milhares de voluntários islâmicos, de «combatentes da causa de Deus». Registaram-se na central de voluntários , vindos dos mais recônditos pontos da terra. São eles que vão ser treinados no uso dos Stinger para abaterem os M18 e os SUKOI soviéticos, para lhes emboscarem os comboios militares e lhes aterrorizarem os jovens recrutas, com os seus costumes de guerrilheiros primitivos. São eles os aliados objectivos do «Grande Satã», americano na luta com o «Grande Satã» soviético.
Quando os soviéticos retiram pelo Khyber Pass, na sua primeira derrota desde a ofensiva alemã do Verão de 1941, bin Laden, segundo os ensinamentos de Azzam, quer continuar a guerra noutras frentes. E como Azzam estava demasiado ligado aos interesses e à Realpolitik dos seus financiadores sauditas para seguir esse caminho, é o multimilionário fanático, o místico guerreiro das grandes batalhas metafísicas entre o Islão e a Casa da Guerra, quem vai travar essa luta. E agora tem experiência, conhece a logística e a frente da guerra e já pensou a estratégia, já planeou as operações, já matou ou mandou matar, já viu morrer.
É um chefe prestigiado, tem companheiros prontos a segui-lo, criou uma reputação. Do mesmo modo que combateu os soviéticos ateus, combaterá os nazarenos americanos, amigos dos judeus e cúmplices dos árabes que desprezam a leis de Deus” (PINTO, 2015: 131-137).
Bibliografia
PINTO, N. Jaime. (2015). O Islão e o Ocidente. A Grande Discórdia. D. Quixote. Alfragide.