Regressões

Publicado por: Milu  :  Categoria: FLAGRANTES DA VIDA, Regressões

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O que já fiz não me interessa. Só penso no que ainda não fiz.” (Pablo Picasso)

“Não voltes ao lugar onde foste feliz”, diz-nos a sabedoria popular. Confesso que, não foram poucas as vezes que já dei por mim, a desejar voltar aos lugares onde pretensamente fui feliz. E isto, apesar de bem entender, que o passado quer tenha sido bom ou mau, deve ficar lá atrás, de preferência bem enterrado, porque só assim se poderá abraçar o presente e o futuro sem amarras. Tudo tem o seu tempo próprio.

Mas o que é muito fácil de dizer nem sempre é fácil de fazer. Eu que o diga: ocasionalmente um simples evento do meu dia a dia, pode fazer espoletar na minha memória uma passagem de vida, que me faz mergulhar em pensamentos e conjecturas.

Um dia destes, desloquei-me a Lisboa com alguns propósitos, e um deles foi visitar o Centro Comercial Colombo. Sabe-se lá porquê, durante a viagem, assomou-me à memória a vez em que fui ao Amoreiras Shopping Center. Fui lá almoçar. Lembro-me que comi lulas.

Andava numa lua de lulas. Recentemente, tinha ido jantar a uma casa de fados lá em Lisboa e jantei umas lulas que me tinham sabido pela vida. Não sei se foi do ambiente à luz das velas, se das fadistas e das desgarradas, ou do vinho tinto, que me afogueava a cara, o certo é que foi um dia histórico para o meu bem-estar. Daí que nesse memorável dia a que fui a Lisboa e almocei no Amoreiras, tivesse optado por tal iguaria.

E o que fui eu fazer a Lisboa? Ora bem, fui fazer um exame na Faculdade de Direito para ingressar no Ensino Superior! E esta, hã?

Decorria o ano de 1986. Alguém me tinha informado que havia uns exames que se denominavam “ad hoc” (actualmente M23), através dos quais, se poderia ingressar no Ensino Superior.

Por essa altura eu também estudava, frequentava o Ensino Secundário e decidi de imediato dar um salto quântico e de uma assentada entrar no Ensino Superior. Ora se há outros que o fazem, que são capazes, por que não eu??

E assim fiz. Pelo meio do meu entusiasmo lá consegui arrastar comigo uma outra pessoa conhecida que também fez o exame, foi quem me deu boleia e até me ofereceu o almoço. Nunca mais soube dessa pessoa. Mas o que aconteceu comigo dá para contar aqui uma história.

Já dentro da sala, começámos por fazer uma prova de português, que me correu lindamente. No meu percurso como estudante sempre fui uma boa aluna a Português. De mais a mais, eu até andava nessa altura a estudar e tinha a matéria toda muito fresquinha. Safei-me bem na interpretação do texto e na gramática.

Mas, há sempre um mas! Havia também uma prova específica. Estas provas normalmente são constituídas por dois temas. Um dos temas versava sobre os linces da Serra da Malcata e o risco de extinção da espécie. Tinha lido há poucos dias um artigo precisamente sobre este tema, na revista Selecções do Reader’s Digest, uma grande revista, não pelo tamanho pois é uma revista pequena, mas grande pelo conteúdo, que costumava aparecer lá por casa. Alguém as comprava. Poderia ter feito uma prova brilhante! Lembrava-me perfeitamente do que estava descrito nesse artigo da revista, mas, vá-se lá saber porquê, que capricho foi esse do destino, que me impeliu para optar pelo outro tema, que se intitulava assim: “Relações entre a Arte e o Poder”. Vocês, que lerem isto, estão a ver a cena, não é?

De início tinha umas ideias, ou julguei que as tinha, e para lá as desenvolvi. Mas depressa esgotei o pequeno filão. A certa altura, eu já estava declaradamente a inventar, pois tinha de escrever um determinado número de linhas. Como andava num processo de libertação da catequização, da igreja e da religião, deu-me para enveredar pelo ramo da arte sacra e o poder aliado à igreja, sei lá que mais fui buscar aos recônditos do meu cérebro! Inventar parece fácil mas não é! O que me causa espanto é que, em qualquer momento, poderia ter optado pelo outro tema. Como me lembrava de tudo, num instante fazia outra prova. Mas alguma coisa, a mão do diabo, sei lá, me empurrou para ali!

Nunca soube o resultado do meu exame. Na altura achei que não valia a pena. Na minha ideia não teria sido aprovada por ter feito uma má prova específica. Para além disso, tinha um currículo de merda. Nenhum professor iria dar acesso ao Ensino Superior a uma maria ninguém. No entanto, mais tarde, um pormenor me intrigou: a pessoa que me informou sobre a existência dos exames “ad hoc” também fez, logo sabia como ter acesso aos resultados e terá visto inclusive os meus.


Por que será que nunca me falou sobre os resultados? Por que nunca me perguntou ou me incitou a ir saber o resultado? Teria eu tido uma nota positiva e essa pessoa não, e isso incomodou-a? Já ninguém me tira da cabeça que eu até fui aprovada! Pensando bem, eu se fosse professor catedrático até aprovava só para conhecer quem tinha escrito semelhantes coisas.
De qualquer das formas, uma coisa sei, ainda que tivesse sido aprovada não me encontrava com condições para deixar tudo e ir viver para Lisboa. Fi-lo mais tarde, pouco tempo depois, mas por outros motivos. E, pronto, mergulhada nestas cogitações, lá fiz a viagem até Lisboa.