O Reverso da Medalha

Publicado por: Milu  :  Categoria: O Reverso da Medalha, PARA PENSAR, Sem categoria

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“Há três métodos para ganhar sabedoria: primeiro, por reflexão, que é o mais nobre; segundo, por imitação, que é o mais fácil; e terceiro, por experiência, que é o mais amargo.”

Confúcio

E já agora que cresce em Portugal a população chinesa, assim como o investimento chinês, faz-se pertinente que estudemos um pouco da sua cultura. Quem é que nunca ouviu falar sobre a política do filho único implantada em 1979/80 na China?

Pois bem, as implicações e consequências dessa lei que bem serviu o país, conforme se pensou nessa altura,  estão aqui bem descritas neste post, constituído por um excerto retirado do livro “CHINA, a escalada do DRAGÃO”, da autoria da investigadora Renata Pisu. Aviso desde já, que se trata de um cenário algo inquietante! Um pouco à semelhança do estado da demografia em Portugal, só que neste caso, não é pela escassez de mulheres, mas antes pela escassez de população jovem. As consequências desta emigração forçada que aconteceu com os portugueses não tardarão… Portugal foi espoliado de duas formas. A primeira espoliação foi na sua população jovem. A segunda nos filhos que dela nascerão…

“As crianças chinesas são geralmente mimadas, meninos bonitos que não têm nem irmãozinhos nem irmãzinhas porque são, como manda a lei, «filhos únicos», ou melhor, «Pequenos Imperadores». Mandam na mamã e no papá e têm à disposição quatro avós que estão dependentes deles e lhes fazem todas as vontades. Já não usam aquelas calças cómicas com um buraco na parte detrás, tão úteis em tempos, quando à China ainda não tinham chegado as fraldas de usar e deitar fora, bastava que, para uma «repentina necessidade» ou mesmo para a «grande necessidade» (em chinês diz-se exactamente assim, e compreende-se logo do que se trata), o pequeno se acocorasse no chão e… pronto, estava feito.

Em Pequim, no Inverno, os rabinhos dos meninos ficavam vermelhos e duros por causa do frio cortante e já estavam bem preparados para uma eventual palmada. Agora já não: Os Pequenos Imperadores vestem jeans macios, camisolas da moda e ninguém lhes ousa dar palmadas no rabo porque quem manda são eles. Meninos mimados, como foi dito. E é preciso acrescentar que se se obrigam todos os casais a só terem um filho, é lógico que lhe dêem carinho, que o mimem.

Assim, a partir de 1980, ou seja, quando entrou em vigor a lei do «filho único», as crianças chinesas passaram a ser as mais mimadas do mundo. E teme-se que venham a ser ainda mais mimados os filhos dos filhos únicos que estão por nascer: de «déspotas», como foram os seus pais e as suas mães e que hoje já se encontram em idade de procriar, não poderão nascer senão outros déspotas, não importa se machos ou fêmeas.

Na China, em geral, preferem-se os machos às fêmeas mas não nas cidades. Não em Pequim ou em Xangai onde ter uma rapariga e amá-la, mimá-la, adorá-la, idolatrá-la e vesti-la como uma boneca é, pelo contrário, considerado um sinal de abertura mental. Por outro lado, nos campos ainda se espera que seja macho, e a lei, que no início era muito rígida, acabou mais tarde por vir a conceder aos japoneses que tivessem mais filhos, no máximo três, caso os dois primeiros fossem fêmeas. Mas não quatro, cinco, seis, como acontecia na época de Mao que não queria sequer ouvir falar em controlo dos nascimentos, convencido de que «quantos mais formos, melhor».

Uma vez em Pequim, pouco depois de ter entrado em vigor a lei do filho único, encontrei um jovem pai que transbordava felicidade por todos os poros: empurrava um carrinho de bebé daqueles tradicionais, de madeira, e estavam lá dentro dois pimpolhos quem nem um ano tinham, dois machos, gémeos. Todos o olhavam com inveja, muitos o felicitavam: dois machos de um só golpe, aquele homem era verdadeiramente um dragão!

Calcula-se hoje que a política do filho único tenha salvo a China e o mundo do pesado fardo de mais de trezentos milhões de pessoas para sustentar, e não de certeza para acarinhar e para mimar.

Nas grandes cidades costeiras, onde o bem-estar se difundiu rapidamente a níveis semelhantes – se não mesmo superiores – aos do Ocidente, as crianças têm tudo e querem tudo. Já não se contentam com brinquedos feitos com fios de erva, com pedaços de papel dobrado, com papagaios, com ventoinhas coloridas: querem e dão-lhes playstations. Eles fazem exigências e os pais satisfazem-lhes todos os caprichos. Debicam permanentemente batatas fritas, guloseimas, bolinhos; fazem as festas de anos no MacDonald’s e as autoridades sanitárias já lançaram o alarme: a maioria destes Pequenos Imperadores sofre de obesidade. Em contrapartida, as crianças dos campos, sobretudo as meninas, ainda padecem de fome.

Os Pequenos Imperadores, estes déspotas citadinos, são a elite da qual dependerá o futuro do país. Constituem um fenómeno novo na China, um fenómeno que preocupa os sociólogos e os psicólogos que defendem que duas – dentro em breve três – gerações de filhos únicos destruirão o sistema social e a teia das relações familiares; limitam a esfera afectiva, fazem empobrecer a língua.

Em chinês cada grau de parentesco tinha – na teoria ainda tem – um nome característico, irmão maior, irmão menor, irmã maior, primeiro primo da parte materna, segundo primo da parte materna, tia irmã do pai, tia irmã da mãe. Cada familiar tinha um nome específico, dos parentes mais chegados aos mais longínquos, cada ligação sanguínea tinha o seu ideograma característico. Uma riqueza linguística e uma hierarquia de afectos que na China sempre foi respeitada porque a família tradicional sempre foi uma família alargada.

Depois vieram as crianças sem irmãos e sem primos, que nunca hão-de ter um cunhado ou uma cunhada ou mesmo uma tia ou um tio, porque o papá é filho único e a mamã também. Mas têm a sua playstation. É esta a felicidade de um mundo que se está a globalizar?

Seja como for, a política do filho único está para ser abandonada e talvez então as mulheres possam pôr no mundo o número de filhos que lhes apetecer e quando quiserem, sem que o Estado controle o número de nascimentos.

Deixarão de acontecer casos monstruosos como o de uma operária de Xangai que em Abril de 2004 foi condenada a dezoito meses de «reeducação pelo trabalho». Em 1988, Mao Hengfeng, é este o seu nome, não obstante o facto de se encontrar em vigor a lei do filho único, desejava e deu à luz um segundo filho e por isso foi despedida da fábrica de sabão onde trabalhava. Iniciou então um procedimento legal, que durou quinze anos, para fazer valer o seu direito ao trabalho e, entretanto, engravidou outra vez. O juiz tinha prometido emitir uma sentença favorável à sua reintegração caso acedesse em abortar. A senhora Mao abortou mas ainda assim foi condenada a trabalhos forçados por ter infringido a lei do filho único.

Nos últimos tempos têm-se levantado na China muitas vozes contra este excesso de planificação familiar. Os demógrafos do Instituto de Pequim defendem que a uma liberalização económica deve corresponder uma liberalização global, um laissez-faire, extensível também ao quarto e à cama. Defendem também que o empreendedor privado, que assume os seus riscos económicos e é considerado responsável pelas suas próprias acções, não pode ser condenado quando se trata de procriar.

«Não existe indivíduo numa sociedade evoluída, moderna, que não saiba calcular por si qual o número de filhos que lhe convém ter para manter o nível de vida que conquistou», defende um demógrafo da Universidade Fudan de Xangai que calcula que por volta de 2010 todos os casais terão direito a pôr no mundo dois filhos.

Por agora só têm este direito os casais constituídos por um homem e uma mulher que sejam ambos filhos únicos. Este tipo de casais está a aumentar porque os filhos únicos nascidos nos anos 1980 e 1990 – período em que a adopção desta política permitiu conter o crescimento da população dentro de limites considerados aceitáveis – encontram-se hoje ou casados ou em vias de o fazer. Mas esta política provocou, todavia, muitos excessos. Houve muitas ingerências públicas na vida privada dos cidadãos: desde abortos impostos mesmo se no sexto mês de gravidez, a esterilizações forçadas, ao controlo dos ciclos menstruais das mulheres em idade fértil (levados a cabo pelos diligentes voluntários dos Comités de bairro), e à cobrança de multas e de taxas para quem tivesse infringido a lei.

A política do filho único teve também outras consequências, sobretudo a nível psicológico. «Nós não fazemos ideia do que seja ter um irmão ou uma irmã», disse-me uma rapariga de vinte anos. «Eu tenho nove tios e tias mas o meu filho não vai ter nenhuns e isso vai afectá-lo e, certamente, vai ter influência na sua maneira de ser».

Mas hoje se se casar com um homem que também seja filho único esta rapariga poderá ter dois filhos: ao primogénito chamarão «gege», ao «maos» novo «didi» se forem ambos machos; se a mais velha for fêmea será «jiejie», a mais nova será «memei».

Agora que os filhos únicos estão a constituir as suas famílias poder-se-ia verificar um novo boom de nascimentos. Mas tal não parece vir a acontecer e no Instituto Demográfico de Pequim estão tranquilos: declaram que nas grandes cidades se está próximo do crescimento zero; que estudos recentes demonstram como, mesmo na China, um maior bem-estar corresponde a uma planificação espontânea dos nascimentos e que a política do filho único já está a provocar os seus desastres, como a preponderância de machos devido aos abortos selectivos e a predominância da população envelhecida. Assim faz sentido abandonar esta política ainda que os chineses continuem a ser muitos – mais de mil e trezentos milhões – e que anualmente nasçam outros vinte milhões. Os demógrafos não se atrevem a fazer previsões.”

[Pesadelo]

 

“No entanto parece estar a compor-se um quadro negro: encontrar mulher, montar casa, casar… Sonhos, ilusões. Na China explodiu o pesadelo demográfico, faltam raparigas, o que num país onde se regista um aumento vertiginoso daqueles que a lei abarca sob a designação comum de «crimes sexuais» – e que vão do estupro ao adultério, das violações de mulheres à bigamia, da pedofilia à homossexualidade – é um facto que se arrisca a colocar em crise a estabilidade social.

Deste modo, ao mesmo tempo que a imprensa popular mas principalmente as telenovelas (que passam todas as noites em trezentos milhões de televisores) contam detalhadamente palpitantes histórias de amor procurando sobrepor a máscara da ilusão à realidade, mais de vinte milhões de jovens machos estão, assim como assim, destinados a não encontrar uma mulher. E dentro de cerca de vinte anos, este número duplicará porque não há, de facto, um número suficiente de fêmeas na sua faixa etária, foram suprimidos à nascença o ainda em embrião.

Na China o extermínio de mulheres intensificou-se principalmente quando, como consequência da política do filho único, se difundiram as ecografias: se é macho tem-se o filho, se é fêmea aborta-se. No início dos anos 1990, o governo proibiu aos médicos que revelassem o sexo do feto, mas criada a lei, foi encontrado o engano: o médico não fala, sorri se o pequeno é macho, torce o nariz se é fêmea, mímica facial que toda a gente conhece e sabe interpretar.

Mas isto não se passa só com os recém-nascidos: há poucos anos um camponês de Hunam desejava ter um filho macho, mas já tinha uma filha de quatro anos e então atirou-a a um poço, colocou-lhe uma pedra em cima e sentou-se à espera que a pequena já não desse sinais de vida. Foi condenado apenas a cinco anos de prisão e a pena demonstra suficientemente bem qual é a mentalidade corrente em relação a este assunto, mesmo entre aqueles que administram a justiça. De certeza que este homem é agora pai de um belo rapazinho, concebido mal ele saiu da prisão: um rapazinho que quando crescer, viverá num país sem mulheres.

Infelizmente, episódios semelhantes a este são da ordem do dia e encontram-se relatados nas páginas dos tablóides. Hoje, contudo, a desproporção entre os sexos alarmou os demógrafos chineses que calculam que em 2020 existirão na China entre trinta a quarenta milhões de jovens solitários, não «ricaços« inclinados, quem sabe, a experiências amorosas particulares, mas deserdados destinados a serem perdedores na competição social e, consequentemente, incapazes de encontrar uma mulher a não ser que a raptem de uma aldeia miserável.

Para a maioria dos jovens machos em excesso, sobretudo caso pertençam aos extractos mais pobres da população, a dificuldade de constituir família é agravada pelo facto de dezenas de milhares de pessoas abandonarem continuamente os campos para procurarem trabalho noutros lugares, prática que se tornou comum desde os anos 1980, ou seja, desde a abertura da China à economia de mercado.

Ainda por cima deu-se o caso de homens e mulheres se deslocarem – e ainda se continuam a deslocar – não juntos, mas em direcções opostas: as mulheres para as fábricas das cidades costeiras, os homens para os grandes estaleiros de obras públicas das regiões do interior. O fenómeno destas migrações atípicas que criaram concentrações anormais, por género, foi estudado pela Academia das Ciências de Pequim. À cidade costeira de Guandong, por exemplo, afluíram nos últimos dez anos duzentas mil mulheres de outras províncias, enquanto a população local conta com apenas quatro mil homens. Aqui existem demasiadas mulheres ao passo que noutras zonas se contam trezentos, quatrocentos mil solteiros e poucos milhares de mulheres.

Ainda assim, não obstante o facto de já serem visíveis os perigos e os horrores de um país sem mulheres, continuam-se a matar as raparigas. Se as mulheres que escapam à morte no útero fossem ao menos bem tratadas… mas isso não acontece: na China regista-se a mais alta percentagem de suicídios entre a população feminina, cinco vezes superior à média global.

Porquê?

E por que razão se suicidam sobretudo as mulheres em idade de casar, isto é, as raparigas entre os quinze e os vinte e quatro anos?

Talvez estivessem à espera de que os tempos fossem outros, e que ser mulher já não significasse, como antigamente, ser escrava. Isto é o que se lê na imprensa chinesa que se começa timidamente a interessar pelo fenómeno destas mortes voluntárias, muito numerosas nas zonas rurais, onde se registam noventa e três por cento dos suicídios femininos. O facto de as mulheres beberem frequentemente insecticida para acabarem com a sua vida leva a que os sociólogos de interroguem, mas até hoje ninguém parece ter ainda encontrado respostas convincentes. Tanto mais que todas as telenovelas, o ópio que o regime distribui noite após noite para pintar de cor de rosa os pesadelos das pessoas, apresentam sempre personagens femininas vencedoras, que podem escolher a vida e o marido que querem porque (e esta é a mensagem que o ecrã procura difundir como se fosse realidade) só agora, graças à economia de mercado, as mulheres governam realmente «metade do céu», como Mao tinha dito. Mas se na altura isto não era verdade, também não o é hoje.

Deste modo, num país onde males antigos se juntam novos males, assiste-se a uma masculinização da sociedade, destinada a ver triunfar apenas uma metade do céu, um céu sem mulheres que participem a governá-lo, um céu onde se fazem anunciar tempestades e aguaceiros.

Hoje os pobres jovens começam a conformar-se de que nunca terão uma mulher. «Devem habituar-se a conviver com o castigo que lhes foi infligido por causa dos erros cometidos pelas gerações que os precederam», escreve uma revista de Pequim. Não se especifica qual seja este castigo: viver num país sem mulheres?

E para a mulheres, então, qual é o castigo?

Talvez seja continuarem a viver num país que é seu inimigo.”

Bibliografia

PISU, Renata. (2008). CHINA a escalada do DRAGÃO. Quidnovi. Lisboa. pp. 231-237.