“Esta é decididamente uma Idade Média macho. Pois que todos os conceitos que até mim chegam e me elucidam são sustentados por homens, convencidos da superioridade do seu sexo. Só os oiço a eles”.
(Duby, 1988:5) .
Recentemente, o país acordou à gargalhada com as declarações do cardeal-patriarca Manuel Clemente (ler aqui), quando aconselhava a abstinência sexual aos recasados. Não faltou quem, apesar do muito que se riu, se sentisse indignado com esta intromissão na vida privada das pessoas. E na verdade há razão para tal.
Afinal, já não vivemos na Idade Média, quando as pessoas não sabiam ler e, por conseguinte, devido à profunda ignorância, engoliam com gosto todas as patranhas. Actualmente, só conseguirão enganar, que ainda enganam, todos aqueles a quem falta a capacidade de discernimento suficiente para perceber que, tanta obsessão por tudo quanto esteja ligado ao sexo, não pode ser coisa boa. Depois, os casos de pederastia, por sinal bastante abundantes, no seio da Igreja, retiram-lhe a última réstia de autoridade moral para se pronunciarem nestes domínios.
Mas, se bem visto, e tendo em conta tanta moralidade, poderá parecer aos mais desprevenidos, que o casamento é obra da Igreja, que foi esta que terá criado a instituição do casamento, já que tão preocupada com as coisas do sexo, teria que as regular.
Mas é bom saber a verdade e, neste caso, saber a verdade é estar cada vez mais perto da libertação e não ceder a chantagens.
A verdade, então, é que nos primórdios da humanidade, os homens e as mulheres viviam um comércio sexual livre. Ou seja, não havia maridos e esposas, mas antes homens e mulheres e os seus instintos. Quando a humanidade deixou de ser nómada e se sedentarizou, fundando as sociedades e a consequente propriedade privada, o homem sentiu necessidade de ter descendência para lhe transmitir o seu património. Mas como saber quais eram os seus filhos se não tinha uma mulher apenas sua? Convém salientar que, os casamentos tinham como móbil primordial a herança, feitos por interesse económico, sistema de organização social que perdurou por longos séculos.
Primeiramente, as sociedades foram regidas por sistemas matrilineares (organização de família; linhagem na qual só a descendência pela linha materna é levada em conta). Ou seja, uma família podia ter a certeza que os filhos das filhas eram do seu sangue. Quanto aos filhos dos filhos, sê-lo-iam ou não. Para contornar esta dificuldade da consanguinidade, e o homem se tornar senhor da situação, houve então necessidade de garantir um casamento monogâmico.
Para atestar as minhas afirmações basta atentar nos excertos que se seguem que foram retirados do livro «A Idade Média, uma Idade do Homem”, da autoria de Georges Duby, uma obra publicada com o apoio do Ministério Francês da Cultura e da Comunicação.
“O período sobre o qual nos debruçamos assiste por outro lado ao desenvolvimento no Ocidente das fases mais ou menos acerbas de um conflito entre dois poderes, de um confronto de que as fórmulas gelasianas fornecem melhor expressão. Poder profano, escorado pelas «leis», a força daqueles cuja missão é ditar essas leis e fazê-las respeitar, pelos modos de comportamento tradicionais, mas assentando igualmente sobre a disposição das relações de produção, o que faz com que, conforme tudo leva a crer, a história do casamento não seja a mesma nos diversos graus da hierarquia das condições sociais, ao nível dos senhores, por um lado, ao nível dos explorados, por outro.
Poder sacro cuja autoridade anima e sustenta a infatigável acção dos padres para inserir o casamento na totalidade de um projecto de dominação dos costumes e para, neste conjunto, situá-lo no seu justo lugar” (Duby, 1988:11).
“Ao longo desta secular competição, o religioso tende a sobrepor-se ao civil. A época é de uma progressiva cristianização da instituição matrimonial” (Duby, 1988:12).
“Comecemos então por colocar face a face os dois sistemas de enquadramento, que, pelos seus desígnios, são quase inteiramente estranhos um ao outro: um modelo laico, encarregado, nesta sociedade ruralizada em que cada célula se radica num património fundiário, de preservar, ao longo das gerações, a permanência de um modo de produção; um modelo eclesiástico cujo propósito, intemporal, é refrear as pulsões da carne, ou seja, rechaçar o mal, contendo em apertados diques os extravasamentos da sexualidade” (Duby, 1988:12).
“Conservar ao longo das eras o «estado» de uma casa: tal o imperativo que comanda toda a estrutura do primeiro dos modelos. Em proporção variável consoante as regiões e as etnias, as tradições romanas e as tradições bárbaras combinam-se nos materiais de que ele é construído; em qualquer dos casos, porém, ele assenta na noção de herança. O seu papel é assegurar sem perdas a transmissão de um capital de bens (…) (Duby, 1988:12).
“Toda a vertente ascética, monástica, da Igreja cristã, tudo o que a leva a desprezar e a recusar o século, mas também tudo o que, na bagagem cultural que herdou de Roma, liga o seu pensamento às filosofias da Antiguidade inclina-a a condenar o casamento, cujo mal é ser ao mesmo tempo mácula, turbação da alma e obstáculo à contemplação, em virtude de argumentos e de referências das Sagradas Escrituras a maior parte das quais se acham já reunidos no Adversus Jovinianum de S. Jerónimo” (Duby, 1988:16).
“Todavia, posto que os humanos, infelizmente, não se reproduzem como as abelhas, precisando para tal de copular, e, porque entre as ciladas armadas pelo demónio não existe pior do que o uso imoderado dos órgãos sexuais, a Igreja admite o casamento como um mal menor. Ela adopta-o, institui-o e com tanto mais desembaraço quanto o vê admitido, adoptado e instituído por Jesus – mas sob a condição de servir para disciplinar a sexualidade, para lutar eficazmente contra a fornicação” (Duby, 1988:16).
“Para este fim, a Igreja começa por propor uma moral de boa conjugalidade, O seu projecto: tratar de evacuar da união matrimonial essas duas corrupções maiores, a sujidade inerente ao prazer carnal, as demências da alma apaixonada, desse amor selvagem à Tristão que os Penitenciais procuram abafar dando caça aos filtros e a outras beberagens ardilosas. No momento da sua união, não poderiam pois os conjugues ter outra ideia em mente que não a procriação. Deleitem-se nalgum prazer e logo ficam «manchados», «transgridem, diz Gregório o Grande a lei do casamento». E mesmo que tenham permanecido de mármore, devem purificar-se se quiserem depois receber os sacramentos. Que se abstenham de todo o comércio carnal durante os dias santificados, senão Deus vingar-se-á; Gregório de Tours adverte os seus auditores: os monstros, os estropiados, todas as crianças macilentas são, sabemo-lo bem, concebidas na noite de domingo”(Duby, 1988:16-17).
“(…) os padres imiscuem-se pouco a pouco no cerimonial do casamento para lhe sacralizarem os ritos, e especialmente os das núpcias, acumulando em torno do leito nupcial as fórmulas e os gestos destinados a repelir o satânico e a encerrar os conjugues na castidade” (Duby, 1988:17).
Bibliografia
DUBY, Georges. (1988). A Idade Média uma Idade do Homem. Teorema. Lisboa.