“Não te destruas!
Era uma boa mãe,
uma esposa compreensiva
e ao mesmo tempo
uma amante fantástica e ardente,
participava politicamente
e até para o ginásio tinha tempo.
As janelas estavam sempre limpas,
assim como tapetes e toalhas,
o aroma agradável do pão acabado
de fazer em casa e da compota
enchia todo o espaço
quando a ambulância chegou para a levar.”
Lena Holstein, in Alborch (2004: 85)
“Por que razão tantas mulheres que viveram a efervescência dos anos sessenta e setenta chegaram à meia-idade com um tão grande mal-estar?
A subordinação e desvalorização das mulheres transita por esferas muito diversas e utiliza vários recursos. A família e as instituições políticas, económicas, profissionais e educativas gerem práticas que dão origem ao sexismo, ainda que este seja «benevolente». A aspiração a existir como pessoa, e não só como filha, esposa e mãe, torna-se uma reivindicação inconveniente que muitos homens não aceitam, pois querem continuar a encontrar uma imagem de mulher que corresponda às suas necessidades.
Mas que espécie de relação é essa, cuja premissa é a negação de uma das partes?
Se a necessidade que liga um ao outro é natural, não deveria ser suficiente partir desse ponto para construir algo que respeite as exigências de ambos?
Várias teorias explicam o «falhanço» último ou o mal-estar destas mulheres. Entre aqueles que as têm estudado, cabe mencionar Mabel Burin. Uma dessas teorias, especialmente interessante, sustenta que as mulheres conceberam as suas propostas de mudança em condições de isolamento, sem encarar o recurso a buscas colectivas. Isoladas, autoculpando-se se não obtinham os resultados por que ansiavam, impunham-se maiores esforços, colocavam muito alto o nível de auto-exigência e, em resultado disso, emergiam nelas sentimentos de impotência e autodesvalorização quando as metas, forjadas na idade juvenil, não eram alcançadas.
Felizmente, as preocupações que algumas manifestavam, então, de forma solitária e receosa começam a ser abordadas em colaboração com outras mulheres, com um grande número de mulheres, até.
A mudança é importante. A mulher já se encontra em posição de se abrir a uma perspectiva radicalmente diferente quanto à cultura que fez de um sexo a encarnação da fraqueza e do outro a encarnação da força.
No seu despertar, as mulheres descobriram as mulheres, diz Franca Basaglia. É um facto novo na História. Até agora, como foi assinalado, tinham estado isoladas ou divididas e em confronto, e nisso consistia a sua fraqueza, apesar de cada uma se debater com afinco para escapar a uma ordem de valores que a mantinha aprisionada. Trata-se de um achado que relega o antigo interesse pelo homem como único nexo com a realidade e lhes dá impulso para se associarem, para colaborarem e procurarem soluções para os seus problemas, agora sem necessidade de representar, ainda que contravontade, o velho papel, o de serem como devem ser aos olhos deles.
A tomada de consciência feminina – de autoconsciência – é uma tentativa séria de se compreenderem através das outras sem interferência do homem. O que não quer dizer que este seja rejeitado.
Na medida em que estão conscientes das suas forças e as juntam para assumir os seus anseios e esconjurar temores, as mulheres estão a contribuir para esclarecer questões fundamentais que dizem respeito a todos os seres humanos. As mulheres trouxeram à luz do dia uma parte importante dos aspectos negativos de uma sociedade imperfeita, edificada sobre uma concepção restrita das nossas capacidades. Ao contrário dos atávicos temores masculinos, a satisfação das reivindicações das mulheres pode acarretar um estímulo geral para a sociedade.
Pela primeira vez, confrontada com a realidade e com o poder, a mulher tem significado como força social. Em certa medida, dizem, dela pode depender a evolução das coisas.
É frequente recordarem-nos que no século XX a mulher demonstrou que a sua menoridade era fruto de uma inferioridade social favorecida e mantida ao longo de anos.
Agora a mulher entra em cena e pode ser amiga ou inimiga; pode propor algo de novo, conciliando interesses, ou querer vencer. Ainda que, como diz Germaine Greer, passemos tempo de mais à espera de acontecimentos que nunca chegam, confiando receber um apoio e um reconhecimento de que deliberadamente nos defraudam, para muitas de nós as coisas já não são as mesmas. Temos um maior número de escolhas. A mudança fundamental deu-se naquilo que uma mulher pode chegar a ser. Nas últimas décadas percorremos um caminho muito longo. As nossas vidas são agora mais ricas do que eram, mas também são tremendamente difíceis.
As conquistas graduais no plano social manifestam-se também no plano pessoal. Se a mulher, finalmente, não se rende ao receio de perder o que tem e decide sair, consciente do que há de nefasto no seu isolamento, acabará por defrontar-se, ainda que lhe custe, com a pergunta acerca de quem é, como indivíduo e como parte de um colectivo; qual deve ser o padrão das suas relações com outras mulheres – já sem as urgentes e bem-intencionadas solidariedades de resistência dos primeiros tempos – e com o homem; e sobre o que quer fazer de si. E tornar-se-á diferente, incomodamente diferente, sobretudo para a ordem masculina.
(…)
Embora seja evidente, é preciso realçar que, quando a mulher afirma o seu direito a existir e a ser reconhecida como pessoa, como ser para si, está a propor uma nova possibilidade de vida, e não de morte, do outro.
Como diz Bourdieu, sabemos que o esforço para libertar as mulheres da dominação, isto é, das estruturas objectivas que lhes são impostas, não pode avançar sem que os homens, por sua vez, se libertem do sistema que geraram.
Bibliografia
ALBORCH, Carmen. (2004). Mulheres Contra Mulheres? Rivalidades e Cumplicidades. Editorial Presença. Barcarena. pp. 86-89.