“Tudo é precioso para aquele que foi, por muito tempo, privado de tudo.”
FRIEDRICH NIETZSCHE
Agora que estou de férias, assomou-me ao espírito a ideia de vos contar uma brincadeira, com a qual me entretive durante umas férias escolares nos meus tempos de criança. Não sei precisar a idade que teria na altura, mas presumo que não seriam mais de dez anos.
A minha família era constituída pelos progenitores e os seus três filhos. Enquanto os nossos pais trabalhavam ficávamos entregues a nós próprios e, por isso, lembro-me que, principalmente no Inverno e durante as férias escolares, tive muitos momentos em que me senti terrivelmente só, como se o mundo tivesse acabado e por milagre apenas eu tivesse escapado.
O J. F, o meu irmão mais novo, era ainda muito pequenino e por isso estava entregue a uma ama. Já o C, o mais velho, o que mais queria era a rédea solta, para andar aos ninhos e aos pássaros com a fisga, e, quando não, à tareia com outros rapazes da idade dele, que normalmente incluía socos, dentadas e pedradas. Tanto assim era, que um dia levou uma pedrada no olho direito, que lhe afectou a visão definitivamente. Muito embora a lesão não seja perceptível a olho nu, a verdade é que foi suficientemente grave para se ver livre da obrigação de cumprir o serviço militar, situação que muito frustrou a minha mãe, que via na tropa, uma oportunidade de fazer do meu irmão um verdadeiro homem para vida.
Acerca do serviço militar era este o espírito que reinava nos tempos de então. Homem que não fosse à tropa era um homem incompleto.
Pois aqui a menina queria entreter-se a brincar. Fosse com o que fosse. Brinquedos não os tinha, porque antigamente não era como agora, que os filhos nada precisam de pedir aos pais. Estes de bom grado se encarregam de os cumular de brinquedos.
Muitos anos mais tarde, soube compreender que em vez de ter tido brinquedos, eu possuía algo bem mais valioso… Tinha imaginação! Era capaz de inventar brincadeiras com as quais me ocupava dias a fio. Grande parte das vezes sozinha. Esta minha história é disso um exemplo:
Não consigo vislumbrar onde fui buscar tal ideia, mas o certo é que um belo dia chegou, em que decidi brincar às enfermeiras.
Sim. Às enfermeiras.
Muni-me de uma caixa de lata em formato rectangular, a querer imitar o recipiente de inox com as seringas, que habitualmente via na enfermaria do centro de saúde, na qual coloquei um frasco de água oxigenada, outro de tintura de iodo, um saco de algodão e uma agulha de croché. Foi tudo o que pude surripiar lá de casa e que bem servia os meus intentos.
Nesse tempo costumava ir brincar para a casa de um casal de vizinhos, quando eles se ausentavam para ir para uma empresa da qual eram proprietários. Eram umas pessoas bem remediadas de teres e haveres. Tinham prédios a render e dizia-se à boca pequena, que até alguns negócios em Lisboa, tais como uma empresa de táxis e sei lá que mais, que talvez fosse apenas fruto da imaginação da vizinhança, que tanto usavam do costume de alvitrar sobre a vida de cada um.
Assim que os via dentro do carro a passarem o portão de saída do enorme espaço que se compunha de quintais, jardins e logradouros, que rodeavam a moradia, esta menina mal podia esperar!
Era eles a saírem e eu a entrar!
Num ápice de todos me esquecia. Deliciada e expectante mergulhava no imenso mundo das minhas brincadeiras que a minha imaginação alimentava. Ora, se agora era uma enfermeira, havia necessidade, portanto, de ter os meus enfermos. À falta de melhor foram as brancas e gordas galinhas do dito casal.
Depois de entrar na espaçosa capoeira, ajeitava por lá um canto ao meu gosto e, durante toda a tarde, dispunha-me a aplicar com todo o fervor e dedicação, tal como uma enfermeira por vocação, o curativo às galinhas.
Uma de cada vez.
Pegava na agulha de croché e com uma pequena bola de algodão envolvia-lhe a barbela, que de seguida mergulhava no frasco da água oxigenada e, num gesto rápido, que era como já tinha visto dar as injecções, enfiava no cu da galinha. A água oxigenada mais não era do que uma preparação ou um cuidado prévio para o tratamento de choque que se lhe seguiria. Tornava a enrolar outra bola de algodão na barbela da agulha e ensopava-o de tintura de iodo, que mais uma vez enfiava pelo cu adentro do galináceo, que se fartava de dar às asas mas sem sorte nenhuma, pois que, reclamar, de nada lhe valia. Tivesse eu acesso a uma seringa a sério e era ver como elas haveriam de berrar, ou melhor, cacarejar!
Ah, como eu me sentia feliz e realizada!
Levava esta minha brincadeira tão a sério! Escusado será dizer que durante uns tempos, nada mais me interessou. E só desisti, quando um dia por acaso, ouvi a intrigada vizinha a dizer a alguém, que ela e o marido andavam a tentar descobrir, o motivo pelo qual as galinhas tinham ficado com a pele do cu assim, alaranjada.
Por essa altura fiz-lhes um recado, quando isso acontecia eu costumava aproveitar a boleia para por lá me demorar grudada à televisão. Ao chegar a hora do jantar ofereceram-me um prato de canja. Ao olhar para dentro do prato estremeci da cabeça aos pés, temendo que o meu quinhão fosse o cu da galinha. Se isso tivesse acontecido não era motivo para admiração. Antigamente era assim. A pior parte era dada às crianças. Agora fazemos o contrário. Mas até tive sorte, mas só porque, provavelmente, desconfiados da maleita deitaram o cu da galinha aos cães!