Nas mãos da turba

Publicado por: Milu  :  Categoria: Nas mãos da turba, PARA PENSAR

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“Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”

José Saramago

Como se já tudo o que foi dito do ex Primeiro Ministro de Portugal, José Sócrates, não fosse suficiente para mitigar o ódio da turba, eis que surge a notícia de que o livro que escreveu não foi ele foi outro.

Assim, para ilustrar o que pode acontecer quando predomina a cegueira,  trago-vos o seguinte excerto do livro intitulado “O Mestre da Vida” da autoria de Augusto Cury.

 

“Dois Herodes Violentando Jesus”

 

“Quando Herodes recebeu Jesus, ficou extasiado. Conhecia a sua fama. Os seus feitos incríveis tinham chegado aos seus ouvidos. Todavia, nunca vira o mestre.

Imaginem a cena.

Na vida de Jesus passaram dois Herodes, o pai, chamado de o Grande, e o filho, chamado de Antipas. O pai queria matá-lo e o filho iria agora julgá-lo. O pai perseguira-o fisicamente e o filho iria torturá-lo psicologicamente. O pai considerava-o uma ameaça, e o filho, um falso rei.

Herodes, o Grande, não conseguiu matá-lo, mas Herodes Antipas conseguiu matar João Baptista, o seu precursor. Pelo capricho de uma mulher, Antipas mandou matar impiedosamente aquele que veio anunciar Jesus, a voz que clamava no deserto e endireitava as veredas dos humanos para que eles pudessem receber o filho do Altíssimo.

Herodes Antipas admirava João Baptista, mas, por fim, mandou decapitá-lo, mostrando a sua face violenta. Pilatos também admirava Jesus e, no entanto, condenou-o à morte na cruz. 

Na política, a consciência é esmagada por interesses ocultos.

A vida humana vale pouco nas mãos desses homens. Para eles, o ser humano, principalmente o de baixa posição social, não tinha história, não chorava, não sonhava, não amava, nem desfrutava do espectáculo dos pensamentos e das emoções. Era como se nem todos pertencessem à mesma espécie. 

Na realidade, todo o ser humano possui um mundo a ser descoberto. Só não  enxerga isso quem vê os outros apenas com os olhos físicos.

“Uma Paciência Ilimitada”

Jesus sabia que Herodes, o Grande, tentara matá-lo em criança. Mais que isso, tinha consciência de que ele sacrificara inúmeras crianças inocentes na tentativa de eliminá-lo. Sabia ainda que Herodes Antipas também tinha morto um grande amigo seu, aquele que o apresentara ao mundo. Era por esse homem que Jesus estava sendo julgado.

Os judeus estiveram na presença de Herodes acusando Jesus de conspirar contra o império (Lucas 23:10). Queriam que Herodes tomasse a atitude que Pilatos não tomara. Mas, por ter ouvido falar sobre os feitos sobrenaturais de Jesus, o governador da Galileia estava desejoso de vê-lo fazer um dos seus milagres. Pressionou de muitas formas o Mestre da Vida para que desse um espectáculo. Mais uma vez Jesus encontrava-se entre a liderança judaica e a autoridade romana.

Se nos lembrássemos das crianças que morreram e do assassinato de um amigo, o que faríamos em lugar do mestre?

Jesus nada fez.

Ante os apelos de Herodes Antipas para que os divertisse, manteve um frio silêncio. Não trocou uma palavra com o governador da Galileia. Devia estar a lembrar-se das espadas sacrificando as crianças, das lágrimas inconsoláveis das mães. Devia estar a lembrar-se do amigo degolado.

Como Herodes não conseguiu o espectáculo que desejava, armou um circo e colocou Jesus como personagem principal da sua devassa. Mandou vesti-lo com um manto brilhante e estimulou os seus soldados a ridicularizá-lo.

Mais uma vez, se tivéssemos o poder que Jesus demonstrou ter, o que faríamos com Herodes se ele nos humilhasse? Provavelmente tê-lo-íamos destruído. Mas Jesus, o mais dócil e amável dos homens, mais uma vez se calou.

O Mestre da Vida reforçou as preciosas lições que já dera. Não usou da violência contra os seus inimigos. No auge da dor, recorreu à ferramenta do silêncio. Sabia proteger-se, não deixava que a chacota daqueles homens lhe ferisse a alma. Os seus inimigos não imaginavam que, com o seu silêncio, ele os estimulava a pensar. 

Governados pelo ódio, deixaram de aprender a lição.

Não temos a habilidade de proteger as nossas emoções como fez o Mestre da Vida. Detonamos facilmente o gatilho da agressividade contra os que nos frustram. Não matamos fisicamente, mas sim psiquicamente aqueles que nos ofendem ou decepcionam.

Os tímidos voltam a sua agressividade contra eles mesmos, deixam-se esmagar por sentimentos de culpa, não suportam errar, permitem que o lixo social invada o território da sua emoção. A nossa paciência tem limite, a nossa trégua tem condições, mas a tolerância de Jesus era ilimitada.

Usando a Dor do Mestre Para a Reconciliação Política”

Infelizmente, nos bastidores da política há muitos acordos e acertos ocultos. Às vezes a miséria serve de excelente oportunidade para que alguns políticos se promovam. Se a miséria for extirpada, muitos deles serão afastados do cenário social. As exceções ficam com os políticos que respeitam a arte de legislar e governar.

Além de não serem justos no julgamento de Jesus, Pilatos e Herodes Antipas fizeram acordos políticos para um acerto de bastidores. Pilatos governava a Judeia; Herodes Antipas, a Galileia. Pilatos e Herodes governavam regiões vizinhas, mas não se entendiam, envolvidos em intrigas e contendas. Como fazer esses dois políticos reconciliarem-se? Pilatos, esperto, procurou agradar ao seu vizinho usando o famoso réu como mercadoria.

Herodes brincou com o destino do mestre, empregou-o como objecto de diversão e assim aplacou a ira de Pilatos. Lucas relata que ambos se reconciliaram usando como instrumento a dor daquele que jamais lançou mão do sofrimento dos outros para obter qualquer vantagem. A política saiu apaziguada, mas a justiça, maculada.

Jerusalém Desperta e Começa a Ver Uma Cena Inacreditável”

Eram entre sete e oito horas da manhã. Jesus seria crucificado às nove. Diversas pessoas viram uma cena espantosa. Jesus saiu de casa de Herodes inchado, cheio de hematomas, cambaleante e vestido com um manto espalhafatoso, e foi em direção à Fortaleza Antónia, onde se encontrava Pilatos.

A notícia inacreditável já havia começado a espalhar-se desde a primeira caminhada até Pilatos e a segunda até Herodes. Muitas pessoas foram para as ruas. Agora, ao verem Jesus a sair da casa de Herodes, os rumores espalharam-se como fogo. Jerusalém começava a despertar para o que estava a acontecer. Descobriram que até os seus discípulos o tinham abandonado. 

Os habitantes de Jerusalém, bem como os milhares de homens e mulheres que vinham de lugares longínquos para ver Jesus, ficaram chocados. Não podiam crer que o mais forte e brilhante dos homens estivesse tão frágil e solitário. Não era possível que aquele homem único que ressuscitara mortos estivesse a morrer.

A fé das pessoas ficou profundamente abalada. A possível revolta para defender o mestre deu lugar ao espanto. Não conseguiam recompor-se e muito menos culpar o sinédrio, pois quem estava à frente do julgamento era o poderoso Império Romano.

Jesus caminhava em direção a Pilatos. Para os seus inimigos, o sofrimento do Mestre era um espectáculo de sarcasmo; para os que o amavam, um espetáculo de dor. Eles morriam por dentro ao vê-lo sofrer.

Os discípulos não dormiram. Passaram a noite acordados, chorando por ter abandonado o seu amado mestre, angustiados por saber que ele estava a ser mutilado pelos seus inimigos. O desespero de Pedro era grande. Contou para os outros que o mestre tinha sido barbaramente espancado e que ele o negara três vezes. Ninguém sabia o que fazer. O mundo parecia desabar sobre eles. Foi uma noite inesquecível.

“Trocado Por Um Assassino: As Chicotadas e a Coroa de Espinhos”

Ao conduzir Jesus de volta à Fortaleza Antónia, Pilatos reúne os principais judeus e diz que não achara no réu crime algum, nem tão pouco Herodes, pois tinha-o devolvido. Portanto, o governador dispôs-se a soltá-lo. E, para aplacar-lhes a ira, disse que o açoitaria.

Os judeus não aceitaram o veredito de Pilatos. Solto, o fenómeno Jesus tornar-se-ia um perigo para os líderes da religião judaica. Perante a coação dos judeus que se opunham à sua libertação, Pilatos usou um precedente cultural para libertá-lo. Na Páscoa judaica era costume o governante romano soltar um preso estimado pela população. Tal atitude expressava a benevolência do império para com o povo. 

Como era Páscoa, Pilatos propôs soltar um criminoso. Mateus relata que o governador deu-lhes a seguinte opção: Barrabás ou Jesus (Mateus 27:17). Havia na proposta de Pilatos duas intenções. A primeira era seguir a sua consciência e soltar Jesus, pois considerava-o inocente. A segunda era provocar os judeus, dando-lhes uma opção vexatória. Barrabás era um assassino, matara alguém da sua própria gente. Se tivesse assassinado um soldado romano, já estaria morto, crucificado.

O sinédrio, portanto, teria de decidir: ou soltaria um assassino ou o carpinteiro de Galileia. Pilatos pensou que os líderes judeus certamente concordariam em soltar Jesus. Contudo, para seu espanto, eles não apenas optaram por soltar Barrabás como instigaram a multidão para que o escolhesse (Mateus 27:20).

Preferiram um assassino ao poeta da vida.

Preferiram alguém que derramara sangue do seu próprio povo àquele que arrebatava as multidões e as conclamava a amar os seus inimigos.

O Mestre da Vida foi preterido pelos especialistas em Deus.

Desconsideraram a sua história, a ternura com que tratava os miseráveis e os feridos da alma.

A liberdade de Barrabás colocava em risco a vida de algumas pessoas, mas a do carpinteiro colocava em risco as convicções e as verdades dos líderes de Israel. Tentaram conter as chamas de Jesus Cristo, mas não conseguiram. Mesmo torturado, humilhado e trocado por um assassino, ele incendiou a história.

(…)

“Um Assassino Ovacionado”

(…) a pequena multidão dentro da casa de Pilatos reagia à libertação de Jesus. Influenciada e instigada pelo sinédrio, ela gritava: «Barrabás! Barrabás”». Nunca um assassino foi ovacionado desta maneira. Os homens gritavam a plenos pulmões para que Pilatos soltasse Barrabás. 

Há um grande número de pessoas que não têm intimidade com a arte da dúvida, por isso nunca se questionam a si mesmas nem duvidam dos pensamentos daqueles que admiram. Assim, não desenvolvem a sua consciência crítica. Defendem com convicção ideias que nunca foram suas, e sim introduzidas por outros. Talvez alguns dos que clamaram pela crucificação de Cristo fossem seus admiradores dias antes. Mas, depois da sua prisão, deixaram-se facilmente manipular pelos fariseus.

Aqueles que reagem sem pensar serão sempre um joguete nas mãos dos mais eloquentes.

O mais amável dos homens ouviu o clamor dos que o trocavam por um assassino.

Jesus, naquele momento, sentiu o ápice da discriminação, uma discriminação igual ou maior do que a que muitos judeus experimentaram na Segunda Guerra Mundial.

(…)

Qualquer um serviria para ser trocado pelo amável Mestre da Vida. Uma pessoa poderia cometer o crime hediondo mais repulsivo e, ainda assim, o sinédrio rejeitaria Jesus e aclamaria tal criminoso. Para os fariseus, o Mestre dos Mestres era indigno de estar vivo

Barrabás saiu da banalidade para a aclamação, da clandestinidade para o heroísmo. Jesus permaneceu em silêncio. Não desesperou nem se indignou com tal rejeição. O Mestre da Vida usou a ferramenta do silêncio para nos ensinar a não cair nas armadilhas da emoção e a não gravitar em torno do que os outros pensam ou falam de nós.

“A Violência das Chicotadas”

Se lermos atentamente, palavra por palavra, vírgula por vírgula, o procedimento de Pilatos nos quatro evangelhos, teremos a impressão de que ele funcionou como um cirurgião que abria o coração dos fariseus, infetado pelo orgulho e pela arrogância.

Após ouvir o clamor da troca fatídica, Pilatos ficou convicto de que a cúpula judaica queria a morte do nazareno a qualquer preço e não descansaria enquanto ela não se concretizasse.

Inconformado, o governador não cedeu. Não admitia que aqueles homens controlassem a sua própria consciência. Então, em vez de crucificá-lo, preferiu flagelá-lo com açoites. Pilatos, que aparentemente parecia defender Jesus, mostra aqui a sua face sanguinária. Indignado com o sinédrio, descarrega a sua ira no réu. O homem Jesus que sangrava no rosto sangraria agora nas costas.

Os soldados de Pilatos saciam assim o seu apetite de traumatizar Jesus. Queriam ver a resistência do homem que fizera milagres impressionantes. As chicotadas eram dadas com um chicote chamado fragum. Esse chicote contém diversas tiras de couro. Nestas tiras, são presos pedaços de ossos ou ferro, de modo que cada chibatada não apenas causa edema e hematoma como também faz feridas.

Os homens açoitaram Jesus com dezenas de chibatadas. A pele abria-se, os músculos intercostais expunham-se. A todos os torturados é dado o direito de gritar, urrar de dor, reagir com ódio, pavor, mas aquele que se propunha a ser o cordeiro de Deus para resgatar as injustiças da humanidade não tinha direito a tais reações.

(…)

Ao vê-lo mudo,  a ira dos carrascos devia aumentar. Batiam mais forte. Queriam conhecer o seu limite. Assim, o homem Jesus reagia com todas as suas forças para suportar o insuportável.

(…)

Havia um mistério no seu martírio. Jesus estava na condição de homem, mas ninguém reagiu como ele no ápice da dor. Uma força incrível sustentava-o. Geria os seus pensamentos e emoções em situações em que era impossível conservar a lucidez. O mestre de Nazaré foi um príncipe no caos.

“Coroado com Espinhos”

Como se não bastasse o tormento sofrido nas casas de Anás, Caifás e Herodes, e as chicotadas impostos por Pilatos, Jesus passou pelo último e mais dramático sofrimento antes de carregar a cruz. Vendo a resistência daquele homem, e sabendo que os judeus o acusavam de querer ser rei da nação, eles vestiram-no como um falso rei. Trajaram-no com um manto de cor púrpura e colocaram sobre a sua cabeça uma coroa feita de espinhos. E para escarnecer ainda mais o «falso rei», deram-lhe como ceptro um caniço de ferro.

Estava pronto o cenário de horror.

Nele começa uma longa sessão de sarcasmo e espancamento. Uma coorte  de soldados – entre trezentos e seiscentos – aglomera-se em torno daquele homem debilitado para se divertir. 

Imaginem a cena.

Jesus estava com o rosto inchado e coberto de hematomas. As suas costas sangravam sem parar. Provavelmente não lhe deram água a noite toda. Estava sedento e com o corpo todo dorido. 

A sua debilidade não comovia os soldados.

Estavam cegos no seu entendimento e no seu humanismo.

Uma análise sociológica do comportamento humano revela que quando as pessoas estão iradas num espaço público, reagem como animais. Se desejam sobressair com os seus escárnios, cada um procura suplantar os demais.

Algumas vão às últimas consequências.

As escrituras dizem que vários soldados se ajoelhavam aos pés dos Mestre da Vida, prestando-lhe uma falsa reverência (Mateus 27:29). Faziam chacota, cuspiam-lhe, agarravam-lhe no caniço e batiam-lhe na cabeça. (…) Talvez esse seja o único caso na história em que uma pessoa tenha passado ao mesmo tempo pelo auge da discriminação e pelo ápice da zombaria e do escárnio. A vida de Jesus pautou-se por extremos impensáveis. Foi exaltado como rei e como Deus e foi humilhado como o mais vil dos homens.

(…)

Os soldados, ao perceberem que Jesus não ia gritar, não ia reagir nem pedir clemência, ficaram impacientes e irritados. Quando lhe bateram com o falso ceptro (Mateus 27:30), uma dor horrível e aguda permeou sua cabeça. Os espinhos cravaram-se no couro cabeludo, uma área intensamente irrigada. Dezenas de pontos hemorrágicos surgiram. O sangue escorria por toda a sua face.

Era o sangue de um homem.

Suportou a sua dor como homem e não como Deus.

À medida que o sangue percorria as reentrâncias da sua face, os soldados esbofeteavam-no com as suas mãos vigorosas. (…) Foi tratado pelos fariseus como escória humana; pelos romanos, como um homem imprestável, um impostor, um falso rei. 

O único que rejeitou o trono político para reinar no coração humano recebeu como recompensa flagelos e açoites.

Como é difícil governar a alma humana!”

 

Bibliografia

CURY, Augusto. (2011). O mestre da vida. Livros D’hoje. Alfragide. pp. 107-122.

A superação

Publicado por: Milu  :  Categoria: A superação, PARA PENSAR

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“Seja persistente. Supere obstáculos diariamente. O mundo costuma ser cruel com aqueles que desistem.”

Jufras Menhal

“Todos temos uma criança alegre, curiosa, vivaz dentro de nós, mas poucos a deixam respirar. Devemos pensar como adultos, mas sentir, ser curiosos e aventurarmo-nos como uma criança. Quem asfixia a sua emoção envelhece no único lugar que deveria ser sempre jovem. 

O ser humano moderno tornou-se um gigante na ciência, mas é um frágil menino na sua psique. É seguro quando o mundo o aplaude, mas é fragilíssimo quando é vaiado. Aprende ferramentas para lidar com o sucesso, mas não tem instrumentos para lidar com os fracassos.

Generais com armas quiseram conquistar a tranquilidade. Reis com ouro quiseram conquistar a serenidade. Celebridades com fama quiseram conquistar o sentido da vida. Não entenderam que as funções mais nobres da inteligência se conquistam quando aprendemos a caminhar nas trajectórias do nosso próprio ser. 

Reconhecer as nossas debilidades, entrar em contacto de maneira nua e crua com as nossas mazelas e misérias não é apenas um passo fundamental para oxigenarmos a inteligência, reeditarmos a nossa memória e superarmos os nossos conflitos, mas também para encontrarmos as águas de descanso, para bebermos das fontes mais excedentes da tranquilidade. Quem esconde o rosto de si mesmo bebe na fonte da ansiedade e leva para o túmulo os seus conflitos.

Sem riscos, os poetas não escreveriam poesia, as crianças não seriam criativas, os cientistas não seriam inventivos, os empresários não seriam empreendedores, os amantes não partiriam para o terreno inóspito da conquista. Sem riscos, não conheceríamos o sabor das derrotas nem o paladar das vitórias. Não erraríamos, não choraríamos, não pediríamos desculpas, não teríamos necessidade da humildade no nosso cardápio intelectual. Sem riscos, seríamos conquistados e não conquistadores.”

Bibliografia

CURY, Augusto. (2011). Mentes Brilhantes. Mentes Treinadas. Livros d’Hoje. Alfragide. p. 97.

Instinto de defesa feminino

Publicado por: Milu  :  Categoria: Instinto de defesa..., PARA PENSAR

mexerico

 

“De tudo que existe, nada é tão estranho como as relações humanas, com suas mudanças, sua extraordinária irracionalidade.”

Virginia Woolf

“É costume afirmar-se que, enquanto os homens são, amiúde, responsáveis por violência física, as mulheres conseguem ferir-se umas às outras de um modo indirecto, como, por exemplo, condenando outra mulher ao ostracismo, evitando-a, excluindo-a sem explicações, mantendo-a afastada de um grupo sem que ela saiba porquê ou tornando-a alvo de mexericos e comentários malévolos (achamos que o mexerico não tem de ser maldoso, embora Marcela Lagarde considere que, em geral, é fruto da misoginia. A seu ver, trata-se de uma prática política dos oprimidos, o exercício de um poder menor pelos que não têm poder, uma manobra de deslocação por parte das que se encontram em espaços depreciados, das poucas que chegam, a conta-gotas, um pouco mais acima, pelo menos através da palavra).

Outro aspecto do assunto em análise é a violência juvenil, e é frequente aludir-se à influência de programas de televisão e filmes violentos… Na União Europeia, um estudo recente do Observatório Europeu sobre a violência escolar dá conta de um constante assédio nas aulas, de uma acumulação de pequenas violências que permitem reforçar o poder de uns sobre outros. E recentes estudos nos EUA vão ao ponto de detectar uma forma nova de crueldade não física, a chamada «agressão relacional», tão expandida nas escolas. As meninas, dizem, sempre tiveram camarilhas e hierarquias, sempre bisbilhotaram e excluíram. Rapazes e raparigas intimidam os colegas, exigem adesões e provas de toda a espécie para se poder entrar no «clube». 

As adolescentes, as raparigas, sentem necessidade de pertença, são mais expressivas e precisam mais de intimidade interpessoal do que os rapazes; gostam de ter uma «melhor amiga» com quem conversar e, para isso, constituem-se em grupinhos de duas ou três, muito restritos, com relações intensas e exclusivas, diz Chesler. A aceitação ou rejeição revestem-se de grande importância e, por vezes, a selecção é muito dura, bem como as provas de fidelidade.

Más, malignas, maliciosas… Mais de uma vez discutimos o assunto ou vimos filmes que abordam a crueldade na infância – entre eles, entre elas -, o medo da exclusão, o anseio de sobressair, o recurso à força física nos rapazes, as atitudes mais sibilinas das raparigas, as vinganças, traições, exclusões… Antigamente, comentava-se num grupo de mulheres, fazíamos pouco desporto, falávamos muito e ríamos. Praticávamos a troça «cruel» ou podíamos ser objecto dela – olhares, cochichos, a moda, os rapazes… As raparigas de hoje têm uma educação mais audiovisual e famílias mais plurais, geralmente interessam-se mais pelos estudos e pelo desporto, dão mais importância à liberdade, sentem menos repressão, mas também, porventura, uma agressividade mais manifesta, mais física. Os rapazes continuam a ser importantes, e elas, menos afectadas, mais abertas, mais directas, avançaram muito em vários domínios, tornaram-se mais desenvoltas.

Destaquemos algumas reflexões de Phillys Chesler, que, no seu último livro, resultado de mais de vinte anos de investigação, lembra as conclusões de recentes estudos sobre a hostilidade de mulheres para com outras mulheres. Enquanto os homens são agressivos de um modo directo e dramático, as mulheres embora não sejam, directa e fisicamente violentas, são agressivas de um modo indirecto, e o objecto da sua agressão, ou seja, as vítimas, não são os homens, são as mulheres e as crianças... Em diferentes zonas do mundo – Europa, América do Norte, Austrália… -, mostram preferência pela agressão verbal, insultando, fazendo troça, ameaçando, excluindo, impedindo que se travem amizades, censurando, caluniando.

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Chesler cita outra especialista, Gloria Cowan, quando afirma que os dados indicam que as mulheres hostis com outras mulheres não gostam de si e têm uma fraca auto-estima, ao contrário das mulheres que não são hostis (cruéis), as quais, de um modo geral, se mostram mais optimistas, se sentem mais satisfeitas com a sua vida e em maior harmonia com o seu corpo. 

(…)

Nos EUA, quando os jovens passam do ensino primário para o secundário, sofrem uma enorme confusão; saem de um ambiente de atenção e cuidado e perdem interesse pelos estudos, para concentrarem os seus esforços na procura de aceitação pelo grupo social. Esta passagem é especialmente dramática no caso das meninas, uma vez que, por tradição, necessitam de um relacionamento com maior intimidade emocional. As relações entre meninas são a chave da sobrevivência, mas também da destruição, afirma R. Wiseman.

(…)

As mulheres são sujeitos passivos das mais diversas violências. A violência foi exercida sobre as nossas mães e exerceu-se sobre nós: fomos submetidas a tentativas de controlo para que correspondêssemos ao modelo de mulher tradicional, materializadas em agressões verbais e chantagens emocionais quando não fazíamos o que se esperava de nós – mecanismos que, no seu conjunto, serviram para desenvolver a culpa. A violência provoca sentimentos de desvalorização que perduram muito tempo, às vezes para sempre.

(…)

A autoviolência, esse mecanismo de autodestruição, tem diversas manifestações. (…). Há uma autoviolência física que se traduz em não sabermos cuidar de nós, em nos entregarmos a uma actividade profissional desmedida, em ignorarmos os sinais de fadiga, em cairmos em dependências. Então, o corpo somatiza e protesta. E há também uma autoviolência psíquica, simbólica, tão prejudicial ou mais do que a primeira, com múltiplas manifestações, entre elas o adiar de forma crónica a nossas necessidades próprias ou ignorá-las, ou manter relações afectivas dolorosas, degradantes. A autoviolência é negação e auto-exclusão. A falta de controlo de emoções intensas, como a ira, o rancor, o ódio, é a nós que prejudica, em primeiro lugar. Exercemos a autoviolência quando não nos permitimos o são egoísmo, pois pode haver um egoísmo positivo, não culpabilizante, como é aquele que se traduz no cuidado connosco.

Bibliografia

ALBORCH, Carmen. (2004). Mulheres Contra Mulheres. Rivalidades e Cumplicidades. Editorial Presença. Barcarena. pp. 140-144.