Viver no efémero

Publicado por: Milu  :  Categoria: FEMINISMO, Viver no efémero

 

“Começamos a existir como menino ou menina.”

Alice Marques

 

Com este post, pretendo trazer mais  um contributo para o processo da libertação da mulher, para o qual é necessário compreender a realidade que nos rodeia, com os seus  processos sociológicos e os esquemas mentais que se foram formando ao longo dos séculos da existência da humanidade.

E, mais uma vez, insisto na questão de  género e suas implicações. Por exemplo, aos homens basta-lhes serem bem sucedidos. Pode-se ser velho, careca e pançudo que isso são pormenores que não lhe lascam o mérito. Já uma mulher, por muito mérito que possa ter, dificilmente consegue escapar de ser julgada pelo seu aspecto.

Muitas vezes, as capacidades de uma mulher são obscurecidas pelo julgamentos que insistentemente são feitos ao seu aspecto físico. Cito apenas um exemplo: Manuela Ferreira Leite, uma mulher com um percurso de vida interessante, que soube mover-se muito bem «num mundo de homens», quantas vezes não vimos nós ser apupada com desprezo, de velha e feia? Pois… à mulher não basta ser bem sucedida e inteligente para ser respeitada, para ser tida em consideração, para ser distinguida, tem também de ser bela e jovem toda a vida…

E o que fazer quanto a isso?

Começando por nos respeitar a nós próprias.

Embora eu defenda que toda a mulher (e homens!) deva cuidar de si e da sua imagem, para se sentir bem e em forma, também defendo que não se enverede pelo exagero. Há que saber envelhecer. Saber exigir o respeito, manter-se  bem informada, ter personalidade e orgulho em si mesma.

Para corroborar estas minhas palavras nada como este vídeo de Madona, uma mulher inspiradora.  Porque só as mulheres a sério, que ousaram desafiar o estabelecido, me servem de inspiração.

 

Os excertos que se seguem, que tão bem elucidam o jugo a que as mulheres são submetidas, foram retirados do livro intitulado “Mulheres de Papel”, da autoria de Alice Marques, um trabalho desenvolvido no quadro de uma tese académica, que incidiu sobre duas revistas femininas Máxima e Cosmopolitan. Estas revistas são escritas por mulheres, destinam-se a um público leitor maioritariamente feminino, tratam de assuntos especificamente femininos, como a moda e a beleza, ou temas ditos femininos, como a cozinha e os trabalhos domésticos.

 É ler e reflectir. Só se ganha quando se aprende.

“É seguro que desde o momento em que somos sabidos como um ser com sexo biologicamente definido, começamos a ser socializados/as para nos tornarmos o que se espera que sejamos, de acordo com o sexo que temos inscritos no corpo. À nossa chegada já está tudo preparado para nos receber como um forte rapagão ou uma linda menina” (Marques 2004: 14).

“Muitos estudos sobre revistas femininas publicados na última década dão conta da deslocação, a partir dos anos 60, da temática tradicional família e casa, nas revistas para mulheres adultas, ou relações amorosas e casa, nas revistas para adolescentes, para a temática da cosmética e moda. Se tivermos em conta que a maior percentagem deste conteúdo temático são anúncios, demonstra-se assim que é na adolescência que o mito da beleza começa a transformar as adolescentes em consumidoras dos produtos da aparência” (Marques 2004: 38).

“(…) as revistas femininas apresentam-se saturadas da crença em que o principal valor das mulheres é a preservação dum corpo eternamente jovem (Marques 2004: 39).

“ (…) faz sentido concluir que se as mulheres precisam de se afirmar essencialmente pelo que parecem é porque aquilo que dizem ou fazem não é suficientemente válido. É fácil perceber porque se tornam as revistas femininas alvo da crítica feminista. Produtos únicos da cultura de massas das mulheres esperar-se-ia que transmitissem não as imagens estereotipadas das mulheres e dos seus corpos, mas sim imagens positivas que correspondessem à diversidade e riqueza de acção das mulheres, a partir das quais raparigas e mulheres modernas modelariam os seus comportamentos. Tornar as preocupações com a aparência e as relações amorosas ou familiares no must dos valores femininos é claramente uma distorção” (Marques 2004: 63).

“A participação, então diminuta, das mulheres na produção dos media permitiu concluir que as imagens estereotipadas [das mulheres] reflectiam os valores masculinos, dominantes na sociedade” (Marques 2004: 63).

“(…) qualquer que seja a perspectiva sobre o papel dos media na vida das mulheres, seja o de agentes socializadores ou de mediadores de representações partilhadas, o que deve pôr-se em causa é o constrangimento dos papéis activos das mulheres e a omnipresença do corpo-aparência, porque este reducionismo é um insulto à capacidade das mulheres, que, como pessoas, acedem e agem com competência nos papéis socialmente valorizados, ainda predominantemente desempenhados por homens” (Marques 2004: 64).

“As imagens e textos sobre moda e beleza nos meses de verão confirmam a hipótese do corpo da mulher como corpo para ser visto. Nenhuma delas [revistas] apresenta imagens de corpos que encorajem a exibição dos seios nus, prática muito restringida a certos grupos sociais nalgumas praias portuguesas. Esta ausência de mais nudez feminina pode ser entendida na perspectiva de que não há verdadeira libertação do corpo, porque o corpo exibível é um corpo que raras mulheres têm, assumida designadamente por Le Breton  e Baudrillard. Em sentido oposto, Jean-Claude Kaufmann, num trabalho sociológico sobre exibição dos seios nus em praias francesas, defende claramente que mais nudez deve ser entendida como parte da «epopeia do corpo livre» e que a mulher está na vanguarda deste movimento porque era mais  espartilhada que o homem e porque o movimento geral da libertação do corpo se mistura com o da emancipação enquanto sexo dominado.

Os homens e mulheres que frequentam as praias e observam ou exibem os seios, interrogados pela equipa de kaufmann, são unânimes: os seios nus têm a ver com a emancipação da mulher, com a sua libertação sexual. Contudo, esta liberdade de mostrar uma parte do corpo com valor erótico, que kaufmann interpreta como «instrumento de afirmação de si, tanto ao nível pessoal como das mulheres em conjunto, corporal e socialmente emancipadas», só é tolerável desde que os seios «sejam belos, não demasiado grandes nem flácidos». Isto é, o valor erótico depende do valor estético. A reforçar esta ideia há as «idades do nu» que se prendem com o valor de feminilidade dos seios.

A sua exibição pode terminar aos 30 anos, ou mesmo antes.

Com o fim  da juventude, a beleza perde o brilho.

As mulheres sentem-se envelhecer, a inquietação de parecer mais jovem começa. Ano após ano, em cada Verão, os seios são perscrutados, avaliados: grandes, flácidos, descaídos, sem graça. Há que esconde-los, não exibi-los. Escreve Kaufmann: «A praia é cruel nos seus julgamentos estéticos: a idade em particular é aqui factor de exclusão ainda mais forte do que na sociedade ordinária (…) porque os seios nus dão mais visibilidade à juventude e beleza».

Esta percepção do que pode ser exibido é o  resultado do carácter normativo da beleza. O sociólogo francês sustenta o valor da norma na construção da realidade social, a crueldade dos julgamentos  estéticos, a estigmatização da velhice. No fundo, a posição que o autor torna pública é que, sendo absurdo negar  os progressos já alcançados na liberdade e emancipação,

 

 

a beleza, quando colocada num patamar tão inacessível – não se fica sempre jovem, não  se mantém para sempre um corpo firme -, não liberta as mulheres. Pelo contrário, oprime-as” (Marques 2004: 83-84).

 

 

“(…) como sustenta Kaufmann, «só a elite da elite da juventude e da beleza tem verdadeiramente todos os direitos: todos os outros devem posicionar-se e aprender os seus limites»” (Marques 2004: 112-113).

“Naomi Wolf e Susan Faludi estão entre as feministas da nova geração, que continua a denunciar o complexo industrial da moda-beleza como responsável, pelo impasse na luta das mulheres pela igualdade. Os seus livros estão repletos de dados objetivos que confirmam  como os media, através da saturação de imagens da beleza idealizada, contribuem para que as mulheres vivam cada vez mais ansiosas com a aparência.

Em Portugal, a agenda feminista não tem incluído estes debates. Por sua vez os media celebram alegremente a moda e a beleza das passerelles, orgulham-se das manequins nacionais que desfilam para os costureiros de renome. Qualquer debate sério sobre o que estas imagens podem fazer às mulheres reais causaria por certo uma total estranheza. As mulheres são assim e ponto final! E no entanto, o trabalho das mulheres portuguesas para aparecerem belas e elegantes é igualmente castigador. Porque inclui na receita um ingrediente fundamental: juventude.

Por isso, independentemente de todo o trabalho e dinheiro gastos na aparência, cruzamo-nos diariamente com mulheres que personificam esse sonho falhado. Envelhecemos, irremediavelmente envelhecemos. A moda, sobretudo pelo que esconde, fornece apenas um «alibi» temporário.

Mas não há muitas possibilidades de escolha de atitudes face à moda: podemos odiá-la, porque a vemos como uma forma de escravidão e apesar disso não lhe resistimos; podemos ser-lhe indiferentes, que é seguramente a posição mais difícil, porque o sistema actua contra as que estão fora de moda, fazendo-as parecer obsoletas em cada estação; podemos vivê-la obsessivamente, fanaticamente e sentirmo-nos muito felizes com isso” (Marques 2004: 116-117).

 

Bibliografia

MARQUES, Alice. (2004). Mulheres de Papel. Representações do corpo nas revistas femininas. Livros Horizonte. Lisboa.

 

Tirania consentida

Publicado por: Milu  :  Categoria: FEMINISMO, Tirania consentida

 

“Aquele que percorre os seus próprios caminhos aí não encontra ninguém. Ninguém o vem ajudar na sua tarefa: perigos, surpresas, maldades e tempestades, tem de ultrapassar sozinho tudo o que o assalta. É que ele tem de fazer o seu próprio caminho…”

Nietzsche, Aurora in Carvalho (2012)

O post de hoje é uma subtil abordagem à ditadura da beleza e da juventude, que é inegavelmente imposta às mulheres e que configura, inevitavelmente, uma forma de as oprimir. É um facto, por demais evidente, que reparamos e criticamos muito  os países cuja cultura impõe às mulheres o uso da burca, por outro lado, custa-nos a ver, a nós mulheres ocidentais, que a cultura em que vivemos nos exige que sejamos sempre jovens e belas, sob pena de passarmos a ser alvo do menosprezo, independentemente das qualidades que possamos ter.

No livro “Mulheres de Papel” da autoria de Alice Marques, podemos ler que  Simone Beauvoir notou que «ao longo da história, à mulher coube o papel de corpo, com tudo o que lhe é peculiar. Em contraste os homens classificaram-se a eles próprios como a ideia pura, o uno, o todo, o espírito absoluto» (Marques, 2004: 29).

E ainda que «da experiência das mulheres como cuidadoras do corpo, do seu corpo e dos corpos dos outros, resultou, segundo Dinnerstein, que as limitações da carne tornaram-se domínio das mulheres» (Marques, 2004: 29).

É ainda desta autora o  excerto que foi retirado do já citado livro, que a seguir se apresenta. É esta a triste realidade que nos esforçamos por não ver, mas que é bem real e está reservada para todas nós, a não ser que se morra jovem… algo que presumo ninguém querer…

há uma assimetria simbólica: os homens são mais valorizados por aquilo que fazem e as mulheres por aquilo que parecem.

Alice Marques

 

“À entrada do pavilhão principal da Arco 2000, um painel com oito fotografias de  100 x 80 cm transforma a galeria «Espacio Minimo» num campo de visão máxima. Dezenas de mulheres e homens acotovelam-se e empurram-se, num vaivém de aproximação-afastamento, para captar, em pormenor ou em plano geral, a obra que o fotógrafo Erwin Olaf mostra nesta feira de arte.

São fotografias de oito mulheres, a rondar os 70-80 anos, em cenários e poses de «top-models», às quais o artista deu nomes como Claudia S., Cindy C., Linda E., entre outros.

O painel exerce uma força de atracção e repulsa,

desconcerta pela ambiguidade dos significados, que o título da obra «Mature» acentua.

Espelho da verdade do corpo decadente,

da corruptibilidade da carne, a que a encenação e a pose acrescentam:

como é esplendorosa a decadência!

Mas a coragem de assumir as marcas do tempo, o corpo impiedosamente envelhecido, contra a norma socialmente valorizada e esteticamente correcta do corpo jovem, liso e perfeito, transforma aquelas fotografias em signos perturbadores. Desafiando os olhares, aquelas fotografias dizem a cada mulher:

tu, que és bela porque o tempo ainda não corrompeu a juventude e a lisura do teu corpo, serás irremediavelmente assim.

Queremos desviar o olhar, quebrar o espelho do futuro. Nalguns rostos notam-se os embaraços do desconforto face ao corpo, enquanto vozes sussurram comentários diversos:

que velhas desenvergonhadas! Que lata! É preciso muita coragem!

Da vergonha já sabemos. O que desafia a norma transforma-se em estigma.

É a coragem que importa reter.

Qualquer que tenha sido a intenção com que aquelas mulheres quiseram exibir-se e dos significados com que o artista pretendeu dotar as fotografias, ao aparente despudor daquele existir para o olhar dos outros acresce uma mensagem que pode transformar a visão dos corpos decadentes numa grande lição de vida.

É de vidas que trata aquele painel.

Biografias longas, cujas experiências se lêem naquelas imagens.

Contra a norma e contra o mito, os corpos envelhecem.

Porque o tempo é o grande escultor.

E é essa a história que têm para contar” (MARQUES, (2004: 9).

 

Bibliografia

CARVALHO, D. Alberto. (2012). Antropologia da Exclusão ou o Exílio da Condição Humana. Porto Editora. Porto. p. 7.

MARQUES, Alice. (2004). Mulheres de Papel. Livros Horizonte. Lisboa. p. 9.

 

 

 

 

Castidade, Silêncio e Obediência

Publicado por: Milu  :  Categoria: Castidade,..., FEMINISMO

 

“É difícil libertar os tolos das amarras que eles veneram”

Voltaire

 

Tal como já disse anteriormente noutros posts, já faz tempo que decidi dedicar-me aos Estudos sobre a Mulher. Interessava-me saber, para perceber, se a mulher é assim tal como a conhecemos, ou se foi moldada e, neste caso, moldada de acordo com vontades que lhe eram alheias.  Em boa hora o decidi fazer. Agora já estou na posse de informação que me permite encaixar muitos factos, e afirmar com certeza de que a mulher, a mulher que eu sou, a mulher que todas são além de mim, foi forjada de uma forma incisiva e sistemática pelo sistema patriarcal, que é a mesma coisa que dizer, por uma ordem que regula e organiza a sociedade. Ou seja, quando nascemos, a nossa matriz original, única, que nasce connosco, vai sendo progressivamente substituída por uma matriz construída de acordo com interesses estabelecidos, através de uma educação que à boa maneira da linguagem portuguesa se diz “com rédea curta”. Consequentemente, já não chegaremos a ser aquilo que poderíamos ter sido. É claro que o homem também é submetido ao mesmo processo, ao homem também é exigido que se porte de acordo com um padrão no qual a trave mestra é o conceito da  virilidade. Daí a frase “um homem nunca chora” porque chorar é coisa de mulher, de piegas, de fracos. Contudo, com a mulher foi bem mais grave: foi durante séculos mantida na ignorância – porque o ignorante,  aquele que não sabe, não percebe, também não alcança… Para que tal se tornasse possível, a mulher foi remetida para a domesticidade e, ao mesmo tempo, dificultado o seu acesso aos estudos.

Castidade, silêncio e obediência – eram estes os pilares da educação da mulher. Embora muito tenha sido conquistado, a  mulher continua a não ter voz. E obedece demais..

Ah! Mas a História ainda é o melhor Juiz, leia-se portanto:

 

Conceitos (definição).

 

Sociedade Patriarcal

A sociedade patriarcal é uma forma de submissão (subordinação) das mulheres de acordo com os papéis desempenhados por elas, bem como aqueles desempenhados pelos homens na reprodução da espécie. Em consequência, tem-se a dominação masculina sobre o feminino.

 Dominação masculina
“A dominação masculina está tão arreigada em nosso inconsciente que não a percebemos mais, tão de acordo com nossas expectativas que até nos sentimos mal em questioná-la. Mais do que nunca, é indispensável destruir as evidências e explorar as estruturas simbólicas do inconsciente androcêntrico que sobrevive nos homens e nas mulheres. Quais são os mecanismos e as instituições que realizam o trabalho de reprodução do eterno masculino? É possível neutralizá-los para liberar as forças de transformação que eles conseguem obstruir?” (Bourdieu).

Sempre vi na dominação masculina, e na maneira pela qual ela é imposta e suportada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, efeito do que chamo de violência simbólica, violência doce, insensível, invisível para suas vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias simbólicas da comunicação e do conhecimento ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento” (Bourdieu).

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“A Mulher do Renascimento”

 

Como eram educadas as mulheres?

 

“Tanto as mulheres como os homens pobres não recebiam qualquer educação formal, embora muitos homens e algumas mulheres fossem treinados em certos ofícios. Porém, as mulheres das classes médias e alta eram iniciadas numa cultura feminina específica, pela qual eram ensinadas a desempenhar as tarefas do lar, seguindo um programa que acentuava a costura e a fiação, o silêncio e a obediência. A leitura era útil, mas deveria ser limitada a bons livros: obras de devoção e os títulos mais são os de Dante, Petrarca e Boccaccio. Era duplo objectivo da educação para estas mulheres: primeiro, guiar a jovem no sentido de desenvolver os traços de carácter mais adequados ao casamento patriarcal; segundo, treiná-la naquelas funções mais úteis para a economia doméstica” (King, 1994: 172).

“As cidades onde a educação das mulheres for negligenciada, avisou o humanista Juan Luis vives, aludindo a Aristóteles; Xenofonte e Platão, «estão privadas da maior porção de felicidade»… As jovens deveriam ser ensinadas a ler, para que, livres da ignorância pudessem aproximar-se dos autores mais sérios da sua civilização: os Evangelhos, os Actos dos Apóstolos e as epístolas do Novo Testamento, bem como os livros históricos e moralistas do Antigo Testamento; os santos Cipriano, Jerónimo, Agostinho, Ambrósio, João Crisóstomo, Hilário e Gregório; também Boécio, Fulgêncio, Tertuliano e até Platão, Cícero e Séneca. (…). Este ousado humanista, que durante a sua carreira desafiaria o monopólio escolástico da educação universitária e provaria a responsabilidade do estado laico na assistência aos pobres, abre assim a porta à educação séria das mulheres”  (King, 1994: 172).

“Ao mesmo tempo, Vives parece fechar a porta que abrira. Embora a mulher devesse aprender a ler a nível elevado, o âmbito e o propósito da educação a atingir por esse meio são severamente limitados. Insinua o que Jean Jacques Rousseau declararia, com concisão característica, quase três séculos mais tarde , no início da era moderna: «Deve aprender muitas coisas , mas apenas aquelas que lhe for útil saber.»”  (King, 1994: 172).

(…) E as tarefas domésticas não devem ser negligenciadas: a jovem deveria aprender «juntamente com as letras, a fiar tanto a lã como o linho, duas artes que a famosa idade de ouro e a época da inocência ensinaram à posteridade, muito úteis na economia doméstica…»”  (King, 1994: 173).

Assim, a educação prevista por Vives para a jovem do Renascimento não cultivaria a sua mente, mas encorajaria a sua obediência aos deveres e virtudes familiares. Os homens devem fazer muitas coisas no mundo e, assim, devem ser amplamente educados; mas à mulher apenas se pede alguma educação. (…). Torna a questão explícita: deve ser introduzida nos estudos literários, mas apenas em alguns: «os seus estudos deveriam ser aqueles que moldam a moral e a virtude; os estudos da sabedoria que ensinam a melhor e mais santa forma de vida. Recomendo que não se preocupe com a retórica; uma mulher não precisa dela; o que uma mulher precisa é probidade e prudência; não é impróprio uma mulher estar calada; o que é horrível e abominável é ser caprichosa e portar-se mal… Quando aprender a ler, colocai nas suas mãos os livros que melhoram a moral, e quando aprender a escrever, não lhes deis versos baixos…, mas um dito sério ou uma pequena passagem, sábia e sagrada, tirada das sagradas Epístolas ou dos escritos dos filósofos, que quando copiados repetidamente aderem mais à mente». A ignorância de tais preceitos é, como sempre tem sido, a ruína das mulheres: «a maioria dos vícios das mulheres nesta nossa época e em épocas anteriores… é produto da ignorância, pois nunca lêem nem ouvem aqueles ditos e conselhos excelentes dos Santos Padres sobre a castidade, a obediência, o silêncio, os adornos e tesouros das mulheres” (King, 1994: 174).

“Se os tesouros das mulheres são a castidade, o silêncio e a obediência, a castidade é o mais importante de todos: é a preocupação particular da mulher; armada com a sua virtude, está suficientemente instruída” (King, 1994: 174).

“Passados dois séculos e meio, o criador do liberalismo económico europeu, Adam Smith, admirava ainda este aspecto da educação feminina: é-lhes ensinado o que lhes é útil saber, «e nada mais lhes é ensinado». Cada elemento da sua educação tem um propósito claro: «ou para aumentar a atracção natural das suas pessoas, ou para formar as suas mentes na reserva, na modéstia, na castidade e na economia; para as tornar, ao mesmo tempo, aptas a serem donas de casa e comportarem-se convenientemente nessa situação».” (King, 1994: 174).

“Em todos os cenários da educação feminina – na própria casa da jovem ou noutra, na escola ou no convento, estes eram os comportamentos necessários e suficientes da educação feminina: conselhos de castidade, silêncio e obediência, e a aquisição de conhecimentos sobre as artes têxteis e outros ligados à economia doméstica. (…). A habilidade das mulheres nestas tarefas equipara-se a um quase monopólio do comércio associado à produção de tecidos e à manufactura de vestuário, como se viu, até que a estrutura das corporações, largamente masculinas, se intrometeu nessa área durante os séculos do Renascimento” ( King, 1994: 175).

A aprendizagem da costura e da fiação desempenhava assim um papel relevante na educação das raparigas. No início do século XIV, Francesco de Barberino elogiou tais actividades em desfavor da leitura: as filhas de mercadores têm que aprender muitas tarefas caseiras e não se devem preocupar com a leitura: as filhas da classe trabalhadora deveriam saber coser e fiar, cozinhar e cuidar dos outros membros da casa. Uma geração mais tarde, Paolo de Certaldo incentivou os chefes de família a vigiarem atentamente as mulheres nas suas casas, assegurando-se de que estivessem sempre ocupadas em qualquer trabalho, para evitarem o ócio – perigoso para todos, mas especialmente para as mulheres. «e não parecerá tola e não se dirá que saiu da floresta; e não sereis amaldiçoado por a ter criado assim»” ( King, 1994: 175).

 

“«Vosso pai, que era um filósofo natural, não era de opinião que as mulheres piorassem ao educar-se. Pelo contrário, como sabeis, teve grande prazer ao ver vosso interesse para aprender.»; «Vossa mãe, porém, que tinha as habituais ideias femininas sobre o assunto, queria que passásseis o vosso tempo fiando, como as outras mulheres, e impediu-vos de fazer mais progressos e de penetrar mais profundamente na ciência e estudo durante a vossa infância.» “Pizan 1975, 875 (2.36) in ( King, 1994: 193).

 

Bibliografia

King, L. Margaret. (1994). A Mulher do Renascimento. Editorial Presença. Lisboa.