Essencialmente falando

Publicado por: Milu  :  Categoria: Essencialmente..., PARA PENSAR

lua e sol

 

“O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses.”

Saramago

 

Saramago. Para mim sempiterno.

 

Poderá parecer aos mais desprevenidos, que este muito curto excerto do livro “Memorial do Convento“, de Saramago, versa sobre um tema menor, e até certo ponto “avacalhante”. No entanto, considero que esta é uma característica importante do autor. Através da ironia e do sarcasmo, Saramago explora as misérias humanas, as nossas fraquezas, expondo-as de uma forma que  torna perfeitamente perceptível o quanto podemos ser tolos. Que somos.

Vejamos:

A  facilidade e a miserável tendência que temos para venerar, fazer vénias, a pessoas que tomamos como  superiores a nós, só porque são detentoras de um estatuto bem considerado na sociedade. É mentira? Querem exemplos concretos?

Escuso-me de os apontar.

Quem é que nunca foi testemunha do afã, com que normalmente todos acorrem para apertar a mão do senhor fulano de tal, que tanto pode ser um presidente de qualquer Câmara, como o senhor director de uma empresa importante, etc?

Nunca se sabe se a aura que envolve essas personagens possa sobrar um pouco para os que se lhe chegam…

Por outro lado, menosprezamos quem pensamos ser um ninguém, ou melhor, quando pressentimos que dali nada nos pode vir que nos sirva. É um chega-te para lá que não te conheço de lado nenhum. Querem exemplos? Para aqueles que tiverem o descaramento de pedir exemplos mando-os eu à gaita, para não dizer para outro lado, porque exemplos destes temos-los todos os dias.

Na realidade, na vergonhosa realidade, ninguém se aproxima de ninguém sem que albergue, nem que seja no mais recôndito de si, algum interesse. Seja ele qual for. Eu sei que isto é chocante, mas é imperioso ter em linha de conta, que a visão do ser humano tem sido idealizada de tal forma, que foi negada a própria essência do Homem. Ou seja, a idealização do Homem e do que deve ser a sua conduta passou a excluir o Homem como ele é. Daí a hipocrisia imperar nos nossos dias.

E como será então o Homem? Todos nós? Ora, como nos mostra Saramago nos seus livros.

Mostra-nos o quanto pessoas bem colocadas na sociedade podem ser boçais, neste livro referido, através do rei e da rainha, principalmente.

E mostra-nos o quão belo pode ser o ser humano através de Baltazar Sete-Sóis e de Blimunda. Dois simples. Dois “ninguéns”.

Mas vamos ouvir Saramago, que  ele é o mestre:

 

“D. Maria terá agora outros e mais urgentes motivos para rezar. El-rei anda muito achacado, sofre de flatos súbitos, debilidade que já sabemos antiga, mas agora agravada, duram-lhe os desmaios mais do que um vulgar fanico, aí está uma excelente lição de humildade ver tão grande rei sem dar acordo de si, de que lhe serve ser senhor da Índia, África e Brasil, não somos nada neste mundo, e quanto temos cá fica.

Por costume e cautela acodem-lhe logo com a extrema-unção, não pode sua majestade morrer inconfesso como qualquer comum soldado em campo de batalha, lá aonde os capelães não chegam nem querem chegar, mas às vezes ocorrem dificuldades, como estar em Setúbal a ver de janela os touros, e sobrevir-lhe sem aviso o desmaio profundo, acode o médico que lhe toma o pulso e procura o sangradouro, vem o confessor com os óleos, mas ninguém sabe que pecados terá cometido D. João V desde a última vez que se confessou, e já foi ontem, quantos maus pensamentos e acções más se podem ter e cometer em vinte e quatro horas, além da impropriedade da situação de estarem a morrer touros na praça enquanto el-rei, de olho revirado para cima, não se sabe se morre ou não, e se morrer não será da ferida, como as que vão rasgando os bichos em baixo, ainda assim de vez em quando se vingando do inimigo, como agora mesmo aconteceu a D. Henrique de Almeida que foi pelos ares com o cavalo e já o levam com duas costelas quebradas.

Enfim, el-rei abriu os olhos, escapou, não foi desta, mas fica com as pernas frouxas, as mãos trémulas, o rosto pálido, nem parece aquele galante homem que derruba freiras com um gesto, e quem diz freiras diz as que o não são, ainda o ano passado teve uma francesa um filho da sua lavra, se agora o vissem a suas amantes reclusas e libertas não reconheceriam neste murcho  e apagado homenzinho o real e infatigável cobridor.

Vai D. João V para Azeitão, a ver se com mezinhas e bons ares se cura desta melancolia, que assim chamam os médicos à sua doença provavelmente o que sua majestade tem é os humores avariados, de que costumam resultar embaraços da tripa, flatulências, entupimentos da bílis, tudo achaques segundos da atrabile, que essa sim, é a doença de el-rei, vá lá que não sofre das partes pudendas, apesar dos excessos amatórios e alguns riscos de gálico, caso em que lhe aplicariam sumo de consólida, remédio soberano para chagas de boca e das gengivas, dos testículos e adjacências superiores.

D. Maria Ana ficou em Lisboa a rezar e depois foi continuar a reza para Belém.

Sem TítuloS

Bibliografia

SARAMAGO, José.(1986). Memorial do Convento. Editora Caminho. 16ª edição. Lisboa. pp. 112-113.