“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.”
Rosa Luxemburgo
Mais um pouco de História, desta feita sobre as mulheres do Renascimento, um movimento cultural, económico e político que surgiu na Itália do século XIV, consolidado no século XV e que se estendeu até o século XVI por toda a Europa. O Renascimento teve origem na Itália devido ao florescimento de cidades como Veneza, Génova, Florença, Roma, entre outras. Estas cidades, enriquecidas com o desenvolvimento do comércio no Mediterrâneo, deram origem a uma rica burguesia mercantil que, no seu processo de afirmação social se dedicou às artes, juntamente com alguns príncipes e papas.
Ora, o verdadeiro objectivo deste post é, mais um vez , demonstrar através da leitura dos excertos aqui transcritos, retirados do livro “A Mulher do Renascimento”, do terrível infortúnio que era ter nascido mulher: a eterna culpada.
Antes de prosseguir, não posso deixar de apontar um pormenor: há algum tempo, numa conversa, fiquei a saber que há quem não goste do que escrevo ou do que publico ultimamente neste meu espaço.
Dizem-me que estou sempre a enaltecer a mulher…
Mas eu entendo que o que estou a fazer é tão só a estudar a História das Mulheres, numa continuada procura do fundamento das assimetrias de valor entre homens e mulheres. Na verdade, o que me move nesta minha saga é a curiosidade e, consequentemente, o prazer da descoberta, o entendimento. Gosto de perceber porque é que determinadas coisas são de uma maneira, quando até poderiam ser de outra, bem diferente…
Exemplo:
Leia-se este pequeno trecho imediatamente a seguir e reflicta-se…
Pois que, reflectir, é mais uma das palavras de ordem deste blog.
No citado trecho está plasmada a forma como pensamos… que os meninos ou rapazes são fortes, grandes e têm força. E que as meninas ou raparigas são bonitinhas, queridas e têm coisas bonitinhas. É assim mesmo que fazemos! Por muito que nos custe aceitar temos a cabeça cheia de preconcebidos, de ideias socialmente construídas, tão firmemente arreigadas que nem conseguimos ver mais além.
“Um mesmo bebé era vestido ora de azul ora de cor de rosa e mostrada a pessoas adultas. Nunca foi dito o sexo da criança. Mas quem a via presumia que era rapaz ou rapariga pela cor da roupa que trazia vestida. Quando vestido de azul, o bebé fazia os adultos dizerem coisas como «Que choro tão forte que ele tem!». «Como me aperta o dedo com força!», «Que grande rapaz que ele é!». Quando vestida de rosa, a criança fazia com que as pessoas que a viam dissessem: «Que bonitinha!», «Que querida!», «Que olhos tão bonitos que ela tem!». Sem nos darmos conta, acabamos por fazer distinções entre os sexos até no modo como tocamos nas crianças, na forma como as acariciamos. É inconsciente, mas não deixa de ficar gravado para sempre.“
Lígia Amâncio (2001) in Marques(2004)
“A maioria das mulheres do Renascimento foi mãe. A maternidade definiu as suas vidas e ocupou a maior parte dos seus anos. A partir dos vinte e cinco anos na maioria dos grupos sociais, a partir da adolescência nos círculos mais elevados, experimentaram um ciclo de parto e aleitamento e novamente parto. As mulheres pobres davam à luz cada 24 a 30 meses. Os intervalos entre os nascimentos eram regulados pelo período de lactação, que impedia mais gestações com alguma eficácia. Quando a criança era desmamada, uma gestação nova podia tomar lugar. As mulheres ricas tinham ainda mais filhos que as pobres. Como as mulheres ricas não cuidavam das suas próprias crianças, em breve concebiam outra vez depois de cada nascimento” (King, 1994: 14).
“Uma fertilidade elevada era do interesse da família abastada, cuja capacidade para prevalecer «contra as poderosas forças da morte» requeria pelo menos um herdeiro masculino sobrevivente. Como no caso da inglesa Lady Verney, ainda no século XVII, a capacidade da esposa para dar à luz herdeiros era «a sua única contribuição indispensável» para a família” (King, 1994: 14).
“A necessidade de preservar a família e conservar a riqueza levava assim as mulheres de classes dominantes a serem férteis. (…) Isabel de Aragão, esposa do rei Filipe III e mãe de Filipe IV, «o Justo» deu à luz em 1268, 1269 e 1270; neste último ano morreu, grávida de seis meses. Henriqueta Maria, rainha do rei Carlos I de Inglaterra, esteve grávida quase sem interrupção de 1628 a 1639. (…) A florentina Antonia Masi, que morreu em 1459 com 57 anos, tinha dado à luz 36 filhos, nove varões sobreviveram-lhe” (King, 1994: 15).
“Dar à luz é ao mesmo tempo o privilégio e o fardo da mulher” (King, 1994: 15).
“Só 20 a 50% dos europeus ocidentais podiam esperar sobreviver à infância” (King, 1994: 18).
“Onde ocorriam nascimentos ilegítimos, os regulamentos feudais cobravam impostos às mulheres consideradas culpadas, e as cidades aprisionavam ou baniam as mulheres condenadas por fornicação. Estas eram penalidades suficientemente severas para punir a mãe, mas não tão pesadas, talvez, como a real responsabilidade de uma criança indesejada, que era apenas sua” (King, 1994: 20).
“O infanticídio era a maior causa, depois da feitiçaria, para a execução das mulheres do Renascimento, e muitas bruxas eram acusadas também de infanticídio. O peso da acusação do infanticídio recaía sobre a mãe solteira, que da morte do filho era considerada culpada, enquanto a vítima mais provável da fúria contra as bruxas era ao mesmo tempo mulher e velha. «A lei e a consciência da Europa… canalizaram a sua força sobre mulheres idosas e mães solteiras»” (King, 1994: 21).
“A acusação de mulheres nestes casos marca, portanto, perversamente o início da emergência das mulheres como criminosas e como indivíduos legalmente responsáveis” (King, 1994: 21).
“Na Metz do século XV, a acusada de infanticídio era queimada num poste onde se pregava a mão culpada, enquanto à volta do pescoço se lhe dependurava uma tábua com a imagem da criança assassinada” (King, 1994: 21-22).
“As mulheres, com muito poucas excepções, eram catalogadas em termos das suas relações com o ideal feminino de virgindade e o pesadelo da sexualidade” (King, 1994: 34).
“As filhas, que constituíam aproximadamente metade dos bebés nascidos das mães do Renascimento, entravam no mundo indesejadas. Dante referiu o terror que assaltava o pai quando do parto resultava uma rapariga” (King, 1994: 35).
“«Crianças do sexo masculino são geradas de uma semente mais quente e seca e as do sexo feminino de uma mais fria e húmida; pois há muito menos força no frio do que no calor e, igualmente, na humidade do que na secura; e é essa a causa porque demora mais tempo para uma rapariga se formar no ventre do que um rapaz.» Preguiçosas mesmo «in utero» as raparigas eram geralmente consideradas produto de concepções «inferiores». A percepção da sua inferioridade era acompanhada de deficiências nos primeiros cuidados. Não eram saudadas nem noticiadas” (King, 1994: 36).
“Desde que nascia, a perspectiva do dote ameaçava a mulher: ela representava perda potencial mais do que ganho potencial. O dote dado pela família da noiva à do noivo, só ultrapassando a oferta matrimonial do noivo no século XII, aumentou consideravelmente durante os séculos seguintes e atingiu o máximo no Renascimento. Nessa época de florescimento cultural único, o contrato matrimonial atingiu o seu extremo de monopolaridade: a família da noiva entregava filha e dote, dinheiro e enxoval; a família do marido assumia uma responsabilidade limitada pela manutenção da esposa e viúva” (King, 1994: 37).
“As mulheres sem família, seduzidas ou violadas, tinham que se defender sem ajuda. Vulneráveis, tais mulheres pertenciam sobretudo às classes sociais mais baixas e estavam culturalmente mal preparadas para apresentar formalmente as suas queixas. Uma compensação ordenada pelo tribunal (ou doada por um benfeitor) poderia sustentá-las na condição de solteiras e sem possibilidade de contrair matrimónio ou até ultrapassar o facto da «sverginità» e permitir-lhes o casamento. Estas variações de norma, onde a fornicação era seguida pelo matrimónio ou, pelo menos, por uma compensação pela honra perdida, não disfarçam o facto de o casamento ser mais eficiente e proveitosamente negociado para uma mulher cuja castidade estava intacta, pois a castidade tinha valor monetário numa transacção matrimonial” (King, 1994: 42).
“Desde o nascimento, portanto, as filhas representavam um duplo fardo para as famílias: preservação da castidade e provisão do dote” (King, 1994: 42).
“Era-lhes requerido que abdicassem, com efeito, em termos contemporâneos, de dois «direitos»: o direito à propriedade paterna além do limite do dote e o direito de escolha sexual livre. Os pais escolhiam os maridos para as filhas e negociavam os acordos de bens sem a sua participação” (King, 1994: 43).
“A asserção e talvez mesmo a reafirmação do controlo masculino das mulheres no casamento, durante o Renascimento, é um facto indiscutível, por muito difícil que seja conciliá-lo com outras impressões de uma época que descobriu, pela primeira vez, o significado da liberdade. A mesma época que elevou o matrimónio a um estado sagrado – pelo edictos de Trento no Catolicismo, pelo cultivo do sentimento familiar no Protestantismo – fortaleceu, paradoxalmente, a autoridade do marido sobre a esposa e exigiu a sua mais profunda submissão ((King, 1994: 49).
“O reformador de Estrasburgo Martinho Bucer explicou que o marido era para a mulher o que o pastor era para as ovelhas, enquanto o italiano Orazio Lombardelli ofereceu outras comparações à sua jovem noiva: tal como «a cabeça adorna o corpo, o príncipe a cidade, a pedra o anel, assim o marido adorna a esposa e ela deve não só obedecer quando ele comanda mas também quando ele não o faz“ (King, 1994: 50).
“No Renascimento, o tema da misoginia, longe de diminuir, floresceu com a intensidade que em tudo caracterizava a época. Numa torrente de livros, poemas e panfletos demasiado vasta para aqui ser enumerada, os autores do sexo masculino atacaram o feminino e a instituição do casamento. De facto os que se pronunciavam eram quase sempre homens, que encaravam as mulheres «como objectos ao mesmo tempo desprezíveis, aterradores e tentadores». Os ataques às mulheres eram apoiados pelo sistema da cultura erudita: filosófica, jurídica, teológica, médica, assentando na autoridade das Escrituras, dos Padres, de Aristóteles, Galeno e Tomás de Aquino” (King, 1994: 58).
“A sua própria presença era maligna e todas as coisas contaminadas pelo contacto com o seu corpo, se menstruada ou grávida, eram perigosas para os homens, como ensinavam os filósofos naturais a partir do sórdido «De secretis mulierum»do século XIII” (King, 1994: 58).
“O vigor do ataque antifeminista é uma lembrança clara de que a mutualidade de marido e mulher não era um ideal universalmente aceite, mas sim um ideal em contradição com os outros, durante os séculos do Renascimento, quando o lugar da mulher na família parece não ter ganho, mas antes perdido, terreno. O poder moral exercido pelos homens sobre as mulheres era acompanhado de poder real, como temos visto: legal, social, sexual, físico. Estes, por seu lado, ligam-se ao seu poder sobre os bens da mulher. Este poder foi cuidadosamente preservado nos séculos do Renascimento e, na verdade, expandiu-se em detrimento do estatuto da mulher. O paradoxo de as mulheres possuírem bens (promessa de independência) e, ao mesmo tempo, não os poderem controlar (negação da mesma) é fundamental para a compreensão da posição das mulheres” (King, 1994: 58-59).
“As viúvas eram numerosas durante o Renascimento porque as mulheres casavam jovens com homens maduros, sobrevivendo-lhes. Algumas beneficiavam economicamente por morte do marido ou conseguiam levar os rendimentos do dote paterno ou do primeiro casamento, para um segundo. Quando não era conveniente, de acordo com a estratégia familiar, voltarem a casar, as viúvas recolhiam-se na invisibilidade e sujeição dos seus lares conjugais ou de origem. Perdiam o estatuto de esposa e, frequentemente, a autoridade de mãe. Fora desses nichos, em que usufruíam de protecção e respeito, a sua condição moral e económica deteriorava-se muitas vezes gravemente. (…). Nem o casamento nem a viuvez tinham sido instituídos para as beneficiar. Em Florença, era grande o grupo das mulheres solteiras idosas e pobres. As mulheres que já não tinham idade para ter filhos tinham, na maioria dos grupos etários, maiores probabilidades de se tornarem pobres do que os homens e menores probabilidades de se tornarem ricas” (King, 1994: 71).
“Na Florença do século XVI, quase metade das mulheres de algumas famílias elevadas residia em conventos e, numa família nobre veneziana do século XVII, uma em cada três filhas era persuadida a «monacar» em vez de «maritar». As mulheres de inferior posição social viviam em conventos, como criadas e trabalhadoras. Mas as próprias freiras eram recrutadas quase exclusivamente nas linhagens ricas e respeitadas. De facto, eram estes grupos os que possuíam bens a transmitir, que precisavam de ser defendidos contra a terrível fertilidade das filhas excedentárias. E eram estes os que melhor podiam reclamar o privilégio de um asilo, humano e útil, para as raparigas a remover do ciclo de reprodução e para aquelas cuja fertilidade tinha terminado: as mães «desoladas» – significado de «relicta» viúva, em latim” (King, 1994: 92).
Na Itália do Renascimento, a maioria das mulheres que viviam dentro dos muros do convento era aristocrata e uma fracção significativa das mulheres das classes elevadas (embora apenas uma pequena fracção de todas as mulheres) vivia em clausura. Em Veneza, especialmente, o convento constitui a solução para o pai com mais filhas do que dotes” (King, 1994: 93).
“Se algumas freiras, no fim da Idade Média, apreciaram lautas refeições, beneficiaram de serviço doméstico, conversaram alegremente com visitantes estranhos, tocaram alaúde e bordaram graciosamente, mantiveram os seus amantes abertamente e deram à luz secretamente, tudo isto se explica, certamente, porque nunca tinham transposto os muros do convento em busca do espiritual. Tinham ali dado entrada porque não podiam ou não queriam casar e não podiam ser deixadas em liberdade. Assim, a história do monaquismo feminino é, pelo menos em parte, a história do aprisionamento da mulher” (King, 1994: 95-96).
Bibliografia
KING, L. Margaret. (1994). A Mulher do Renascimento. Editorial Presença. Lisboa.
MARQUES. Alice. (2004). Mulheres de Papel. Livros Horizonte. Lisboa.