“As mulheres serviram todos estes séculos como espelhos, possuindo o poder de reflectir a figura do homem duas vezes maior que o seu tamanho natural”.
Virginia Woolf
Um dias destes, no elenco dos meus amigos na rede social o Facebook, encontrei uma partilha de uma crónica da autoria de Miguel Esteves Cardoso, com o título “Calem-se!”, que começa assim, deste modo: “Portuguesas e portugueses” não é apenas um erro e um pleonasmo: é uma estupidez. Pode ser lido aqui, a qual me mereceu um comentário, que lá deixei, uma vez que me pareceu que o MEC ignorou o contexto em que vulgarmente esta expressão é proferida.
O meu comentário, no qual recomendava cuidado a lidar com estas questões, que estão directamente ligadas à questão de género, não foi bem recebido, porém, essa não foi uma reacção inesperada, uma vez que já é bem sabido que, quando o assunto é mulher, tudo se trata com uma ligeireza aviltante…
Quanto eu teria apreciado, que o meu distinto interlocutor, me tivesse, ao menos, inquirido sobre os porquês da minha desagradada interpretação ao artigo do MEC…
Ter-lhe-ia, certamente, e com muito empenho, explanado que a expressão «portuguesas e portugueses», que costuma ser proferida num contexto de comunicação em que os emissores são a classe política, não deve ser interpretada literalmente, mas antes através do que ela representa, do que ela simboliza.
Miguel Esteves Cardoso entende que a palavra «portuguesas» está a mais, mas esta aparentemente deslocada e redundante referência às «portuguesas» não é proferida por erro, por burrice ou descuido. Ela tem um significado profundo – pretende enfatizar que as mulheres também são chamadas à esfera pública. Reiterando, quando o Presidente da República ou Primeiro Ministro iniciam os seus discursos com a expressão «portuguesas e portugueses» ou vice versa, há nisso uma nobre intenção, a de fazer justiça para com as mulheres que até à Revolução dos Cravos, em 1974, foram sistematicamente excluídas dos direitos civis e políticos, relegadas para a domesticidade. No fundo, e tendo em linha de conta a fraca participação das mulheres quando o assunto é a discussão política, consiste numa interpelação directa às mulheres para que se consciencializem de que já não estão confinadas ao governo doméstico, que os tempos são outros e que não desperdicem um direito que tanto lhes custou a conquistar – o direito de decidir sobre as políticas que governam o seu país e que têm efeitos sobre as suas vidas.
Para os que não têm consciência das injustiças das quais as mulheres foram vítimas, nunca será demais recordar o longo percurso que foi necessário percorrer, que só a partir da implantação da República em Portugal foi dada alguma esperança às mulheres, através das organizações feministas, que exigiam para a mulher o direito do voto, uma vez que “ele representava o derradeiro meio de fazer chegar as pretensões do sexo feminino junto dos governantes e de pressioná-los (…)” (Esteves, 1998: 52).
Revisitemos então a História de Portugal a partir do ano de 1911. O texto abaixo transcrito é constituído por breves excertos de uma obra da autoria de João Esteves intitulada “As Origens do Sufragismo Português”, que considerei suficientes para documentar esta questão do voto e com isso perceber a importância e a justiça no uso da elocução “portuguesas e portugueses”, assim mesmo, desta maneira!
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“A intervenção das principais feministas em actividades associativas, cívicas e políticas, teve o seu impulso nos derradeiros anos da Monarquia e coadunava-se com os esforços desenvolvidos pelo Partido Republicano de fazer triunfar a República” (Esteves, 1998: 45).
“Foi nesse meio cultural que foram ganhando consciência da importância do seu discurso e não surpreende que, após a implantação da República, se verificasse a expansão, se não mesmo explosão, das suas ideias, procurando explorar-se com eficácia o estreito relacionamento entre a elite das mulheres feministas e os políticos republicanos, muitos dos quais passaram a desempenhar cargos influentes. E estes, ainda que de uma forma passiva, acabaram por funcionar como agentes de causas defendidas pelas mulheres, ao não se demarcarem delas, considerando-as reivindicações justas, como se pode inferir de entrevistas e comentários de personalidades destacadas do P.R.P., deputados e ministros, não sendo sequer excepção o Presidente da República. Pela primeira vez, os governos eram interpelados de forma sistemática sobre o voto feminino (…)” (Esteves, 1998: 45).
“Mas uma coisa era a familiaridade e o afável relacionamento com a elite feminista, assumidamente republicana e maçónica, e outra a decisão de atribuir direitos, como o voto, a todas as mulheres. O receio de este vir a ser utilizado pelas forças que sempre se tinham oposto à República, assim como o medo da mudança que tal decisão implicaria, e que dificilmente seria controlada pelos republicanos, levou-os a adiarem eternamente esta sua promessa, fundamental para quem acreditava no sufrágio universal” (Esteves, 1998: 46).
«Quanto ao voto da mulher, reclamo-o como um direito sagrado, confessando que acho um cúmulo da absurdeza pedir-se à mulher que faça cidadãos para uma pátria em que ela é uma pária, sem direitos civis nem políticos»
Ana de Castro Osório in (Esteves, 1998: 51).
“Com o novo regime, o sufrágio feminino ganhou definitivamente oportunidade e passou a constar das reivindicações feministas. A Associação de Propaganda Feminista assumi-o desde a sua fundação, não entendendo o direito de voto como um fim em si, «nem uma ambição de vaidade, mas simplesmente um meio de conquistar a justiça, que nos falta». Ele representava o derradeiro meio de fazer chegar as pretensões do sexo feminino junto dos governantes e pressioná-los no sentido de modificar o aflitivo panorama, «visto que, enquanto a mulher estiver afastada da questão social e política os seus direitos serão menos lembrados»” (Esteves, 1998: 52).
“As mulheres deveriam poder votar, e ser elegíveis, não só porque constituíam mais de metade da população, «suportam as leis e pagam os impostos», mas também porque só interferindo na legislação que lhes dizia respeito seria possível dotá-las de outro enquadramento legal e social” (Esteves, 1998: 52).
“Embora Maria Veleda observasse, acertadamente, que «pela propaganda escrita, nunca as sufragistas portuguesas conseguirão o que pretendem (…) só por meio de actos, mais ou menos irreverentes mais ou menos corajosos, conseguirão impor-se e dominar o preconceito», Carolina Beatriz Ângelo, médica, protagonizou um desses actos, cujos efeitos se fizeram sentir durante os meses de Abril, Maio e Junho de 1911 (…)” (Esteves, 1998: 54).
[Carolina Beatriz Ângelo num acto de irreverência aproveitou uma lacuna na lei e foi a primeira mulher a votar!!!]
“Na sequência da publicação do decreto com força de lei de 14 de Março de 1911, correspondendo à primeira lei eleitoral da República, da autoria do Ministro do Interior, António José de Almeida, a médica portuguesa sentiu-se com direito a recensear-se e a votar. Embora não contemplasse explicitamente o sufrágio feminino, também não o rejeitava: a lei estipulava quem podia e quem não podia ser eleitor e elegível, o que, porém, «ali não se diz é que tal e tal não pode ser eleito ou eleitor… pelo facto de ser mulher. Ora, se assim é, porque motivo hão-de as mulheres ser excluídas da urna?»” (Esteves, 1998: 54).
“Apesar de desiludida com o seu conteúdo, e convencida de que se estava perante um lapso do legislador, ao não mencionar que a lei só abrangia os homens, Beatriz Ângelo explorou até às últimas possibilidades esta omissão (…) exigiu a inclusão do seu nome no recenseamento eleitoral , invocando o artigo que estipulava as categorias de eleitor: tinha mais de 21 anos de idade, sabia ler e escrever e era chefe de família, por ser viúva e ter uma filha pequena, que sustentava pelo seu trabalho” (Esteves, 1998: 54).
“(…) já na Assembleia Eleitoral de Arroios, Carolina Beatriz Ângelo ainda deparou com alguma renitência por parte do seu presidente, que consultou a mesa sobre a legalidade daquele acto, por lhe ter constado que «o governo provisório tinha consultado o Presidente da República acerca da sentença do juiz que mandou incluir o nome daquela senhora no recenseamento eleitoral e ainda por que a aceitação da lista representava o reconhecimento do direito de voto às mulheres»” (Esteves, 1998: 60).
“Foi, até ao fim, um voto arduamente conquistado, cujo mérito não pode ser dissociado da sua persistência e da decisão judicial. Por se tratar de um caso isolado e ao ter sido a primeira, e única, mulher a exercer aquele direito durante a 1ª República, este acto de rebeldia perdurou na memória das feministas portuguesas, transformando-se numa referência obrigatória, constantemente lembrada nas páginas da imprensa feminina e com reflexos internacionais” (Esteves, 1998: 60).
“Este voto, e respectiva mediatização, era a prova de que começava a valer a pena o combate pelos direitos da mulher, mesmo quando todas as circunstâncias pareciam adversas e convidavam ao desânimo e à passividade. Magalhães Lima apelidou-o de acontecimento histórico, «que marcará a primeira etapa no movimento feminista português», considerando Beatriz Ângelo «uma percursora que deve merecer os aplausos de todos os que se dizem democratas». Afonso Costa denomina-la-á «uma sufragista prática» e agradeceu-lhe ter votado nele” (Esteves, 1998: 62).
“Embalada pelo êxito, a APF (Associação de Propaganda Feminista) enviou, pouco tempo depois, em Julho de 1911, uma representação à Assembleia Nacional Constituinte, que estava a elaborar a futura Constituição, onde abordava somente a questão do sufrágio feminino, dando cumprimento ao que estava consignado no § 4 do art. 2º dos seus Estatutos.
Após recordar que o Partido Republicano tinha defendido a igualdade entre os dois sexos, mostrando-se esperançada que a República nascente não cometesse «o erro imperdoável que a grande Revolução Francesa cometeu negando à mulher todos os direitos políticos», reclamava-se não o sufrágio universal, «como à luz da razão e da ciência seria justo», mas somente o «direito de voto para as mulheres diplomadas em cursos superiores; – para as mulheres diplomadas com o curso completo de Instrução Primária Superior; – para as mulheres chefes de família que saibam ler e escrever; – para as mulheres comerciantes que saibam ler e escrever». Argumentava-se que «todas estas mulheres, de idade superior a 21 anos, sendo independentes moral e economicamente, não podem, por uma imposição do preconceito e da rotina, continuar na República a viver no regime vexante dos tutelados, fora da sociedade, como menores e interditos»” (Esteves, 1998: 63-64).
“Apesar desta reivindicação abranger uma minoria, os constituintes republicanos não quiseram, ou não souberam, cumprir o que sempre tinham prometido e, mais grave ainda, continuavam a achá-la uma exigência justa, expressa em várias intervenções públicas. Só que a distância que ia do discurso político, e muitas vezes paternalista, à sua concretização acabou por nunca ser superada, alimentando-se as feministas de promessas, sempre adiadas, dos dirigentes do novo regime” (Esteves, 1998: 67).
“Em 1912, durante a discussão, no Senado, de novo projecto de lei eleitoral, tornou a surgir a questão do sufrágio feminino. (…) tendo-se acabado por se aprovar, na sessão do dia 2 de Julho, um aditamento deste último senador para que o voto fosse concedido às mulheres maiores de 25 anos, que tivessem um curso superior, secundário ou especial” (Esteves, 1998: 67-68).
“E embora se tratasse de uma lei que apenas contemplava o sufrágio restrito, reconhecia-se-lhes três vantagens: incentivava as mulheres a estudar e a tirar um curso; evitava uma eventual manipulação do voto feminino pelas forças mais reaccionárias e anti-republicanas; e era de fácil aplicação, pois «em Portugal ainda há bem poucas diplomadas (…)” (Esteves, 1998: 68).
“Para não variar, as esperanças foram frustradas, devido à não ratificação da proposta pela Câmara dos Deputados, que só discutirá o Código eleitoral no ano seguinte, aprovando-se nova legislação em 3 de Julho de 1913, sem se contemplar qualquer pretensão feminista. Então, e durante a discussão do artigo 1º, o deputado Jacinto Nunes ainda propôs, sem resultado, a seguinte alteração: «são eleitores para os cargos legislativos e administrativos todos os cidadãos portugueses dum e doutro sexo, maiores de 21 anos, ou que completem idade até ao termo das operações do recenseamento, que estejam no gozo dos seus direitos civis e políticos, que saibam ler e escrever, ou tenham pago no ano anterior qualquer contribuição directa e tenham o seu domicílio no território nacional»” (Esteves, 1998: 70).
“Mas o código eleitoral votado especificava que só podiam ser cidadãos eleitores os portugueses do sexo masculino que tivessem mais de 21 anos, estivessem no gozo dos seus direitos civis e políticos e que soubessem ler e escrever. Negava-se, mais uma vez, às mulheres «o voto que já moralmente lhes foi concedido pelo poder judicial e pelo senado», concluindo-se da pior maneira «a certeza de que não é possível que a primeira Câmara da República Portuguesa, que queremos justa, democrática e progressiva, cometa uma violência semelhante».
…….Cometeu-a” (Esteves, 1998: 70).
“Em 1915, a propósito das eleições de 13 de Junho, Maria Luz denunciou o absurdo da legislação, comparando a situação dos homens, quase analfabetos, que podiam votar e decidir o futuro do país, sendo frequentemente manobrados pelos caciques locais, com a dela que, «apesar do meu diploma, dos meus aturados estudos, do meu entusiasmo pelos ideais justos e nobres, sou incapaz de ter direitos políticos, porque, sendo mulher, pertenço à categoria… dos inconscientes. E na mesma categoria se incluem as mulheres ilustres que em Portugal se dedicam às letras, às ciências e às artes!». Era revoltante que a lei considerasse «que um camponês boçal é mais apto para compreender os problemas sociais e interessar-se pela vida pública de um país do que uma mulher inteligente e instruída!»” (Esteves, 1998: 70-71).
“Anos depois, voltou a pronunciar-se no mesmo jornal, considerando que não fazia sentido «que o ignorante barbado seja um valor na vida social, ao passo que a mulher diplomada seja dela excluída, como as crianças, ou como os loucos»” (Esteves, 1998: 71).
“Tal como sucedeu noutros países, nomeadamente em França e na vizinha Espanha, o argumento utilizado para irem delongando a sua concretização [direito do voto feminino] era a fanatização e o atraso cultural da mulher. Esta era ainda manipulada pelo clero, o voto acabaria por não ser verdadeiramente livre e só serviria para ajudar os inimigos da República tão recentemente implantada. Outras vezes, num discurso ainda mais retrógrado, invocava-se a natureza diferente de ambos os sexos, não se coadunando o papel político activo da mulher com a imagem pacificadora e angelical que se continuava a defender. (…) É que o que estava subjacente à recusa da intervenção feminina na esfera política era a própria incapacidade de considerar a mulher como igual, merecedora de idênticos direitos e deveres” (Esteves, 1998: 74).
“Foi necessário esperar vinte anos sobre a rejeição da Assembleia Nacional Constituinte para que, em 1931, um regime tão oposto aos ideais da República concedesse o sufrágio às mulheres, ainda que apenas às maiores de 21 anos que fossem chefes de família ou possuíssem um curso secundário ou superior, comprovado pelo diploma respectivo, enquanto ao homem se exigia simplesmente o saber ler e escrever” (Esteves, 1998: 75-76).
“Só em consequência do 25 de Abril de 1974 é que passou a vigorar em Portugal o sufrágio universal, podendo votar todos os cidadãos maiores de 18 anos, independentemente do sexo”. (Esteves, 1998: 76).
Bibliografia
ESTEVES, João. (1998). As Origens do Sufragismo Português. Bizâncio. Lisboa.