O pós-modernismo

Publicado por: Milu  :  Categoria: O pós-modernismo, SOCIEDADE

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Quanto àqueles para quem esforçar-se, começar e recomeçar, experimentar, enganar-se, retomar tudo de cima a baixo e ainda encontrar meio de hesitar a cada passo, àqueles para quem, em suma, trabalhar mantendo-se em reserva e inquietação equivale à demissão, pois bem, é evidente que não somos do mesmo planeta.“

Michel Foucault

Vem este post com o propósito de prestar alguns esclarecimentos, que considero indispensáveis para melhor almejar compreender e interpretar os acontecimentos da actualidade, uma vez que, já todos, refiro-me aos mais velhos, se aperceberam que os tempos são outros, que as pessoas já não cultivam os mesmos valores de antigamente, que vivemos num mundo onde tudo parece descartável, onde impera o efémero e a descontinuidade.

Para uma melhor exemplificação dos fenómenos da pós-modernidade, a nossa actualidade, procedi a uma breve caracterização do que foi a época Tradicional, a época da Modernidade, e de como essa realidade se tem vindo a alterar até aos nossos dias. Este post apresenta-se dividido em duas partes, sendo a primeira constituída por excertos de um anterior trabalho académico da minha autoria, que poderá ser consultado aqui e a  segunda parte  constituída por excertos que incidem sobre o Pós-modernismo, retirados da obra “Um Novo Olhar Sobre as Relações Sociais de Género”, da autoria de Conceição Nogueira.

1ª Parte

Caracterização das sociedades tradicionais: a lógica local

“A sociedade sustentada pela ideia de Deus e do diabo. Do paraíso e do inferno”

Nos lares da família tradicional em que o trabalho produtivo e o quotidiano familiar estavam associados, a casa era ao mesmo tempo oficina e habitação. Os agregados domésticos incluíam frequentemente, não só a família nuclear, pais e filhos, bem como outras crianças e adultos, assim como os criados que viviam com a família e trabalhavam a troco de comida e de alojamento. A família não tinha uma função afectiva tal como a concebemos hoje, e tinha uma concepção de criança muito diferente da que hoje temos. A infância reduzia-se ao período de maior fragilidade, enquanto a criança não se bastasse a si própria, mas mal começasse a desenvolver-se fisicamente logo se misturava com os adultos, partilhando os seus trabalhos e divertimentos (Ariès, 1988: 10) in (Silva, 2008). Fazia-se muito a vida de rua, nas festas comunitárias, no lavadouro, etc. As redes sociais existentes nas comunidades tradicionais eram assim extensas, na medida em que incluíam não só os familiares como os vizinhos que se faziam sentir de forma imperiosa (Silva, 2008).

As casas só a muito custo escondiam o que se passava no interior, a intimidade era uma noção demasiado nova. Os níveis sócio económicos rapidamente eram percebidos pela aparência exterior, surpreendiam-se gestos, impulsos, laços, rupturas, hábitos e recusas.
“A vida fabrica-se na rua a golpes de ternura ou de violência” (Farge, 1979: 18-20) in (Silva 2008). A família era uma unidade produtiva, pois todos os membros da família, inclusive as crianças, davam a sua contribuição para a actividade produtiva. Dominava a multifuncionalidade, que tão bem se expressa na ideia do bricolage, como construção de novos arranjos, com pedaços de saberes. Dominava, também, a alquimia, uma prática antiga que precedeu a química e que envolvia várias práticas, de entre elas o misticismo. Nestas sociedades comunitárias, onde todos eram iguais ou quase iguais, onde todos se assemelhavam porque comungavam dos mesmos sentimentos, dos mesmos valores e do mesmo sagrado vivia-se a solidariedade mecânica.

As sociedades modernas: Sociedades industriais – a lógica nacional.

A sociedade sustentada pela ideia da emancipação da sociedade em relação a Deus, que foi substituída pela Ciência.

A modernidade firma-se na convicção da capacidade humana para emancipar a sociedade pela via do progresso contínuo do conhecimento e da sua aplicação racional.
A modernidade implicou mudanças sociais profundas que dissolveram as formas de organização social que a humanidade conhecera até então. Com a Revolução Industrial houve lugar para o aparecimento de um conjunto de inovações técnicas, como por exemplo, a utilização do vapor para manufacturar a produção e a introdução de novas formas de maquinaria accionadas por tais fontes de energia. Estas invenções técnicas foram apenas parte de um conjunto mais amplo de mudanças sociais e económicas. A transformação mais importante foi a migração em massa da força de trabalho proveniente do campo para os sectores de trabalho industrial em franca expansão, o que por sua vez, levou à expansão das cidades (Giddens,1984: 12-13) in (Silva, 2008). Com o maquinismo surge uma nova classe – o proletariado.

O trabalho concentrou-se em fábricas e os países começaram a transformar-se no sentido de uma rápida urbanização e industrialização, que revolucionou as relações de trabalho, as relações familiares e a relações entre os sexos. A industrialização e a urbanização reforçaram as tendências de individualização e de nuclearização da família com diferenciação de papéis sexuais. A figura da mãe era valorizada pela responsabilidade que lhe foi atribuída na educação da criança, na gestão da economia doméstica e na moralização dos hábitos. Surge o estatuto de profissão, que se define essencialmente pelo reconhecimento oficial das actividades, com base na especialização do saber. A divisão social do trabalho proporciona as situações em que as pessoas apenas desempenham uma tarefa, o taylorismo, de que é exemplo a figura de apertar parafusos caricaturada no cinema pela mão de Charlie Chaplin. A modernidade assoma assim como a era do uniformismo.

Na classe operária desenvolvem-se sentimentos como a indignação, a tendência para a vingança, os instintos de revolta contra as classes superiores, o desrespeito crescente pelas ordens dos seus superiores e o declínio da fé nos ensinamentos dos seus superiores espirituais. Como a saúde é uma necessidade da indústria que precisa de mão de obra, nasce a assistência pública que traz como novidade medidas contra os riscos sociais, nas quais se incluem seguros contra os acidentes de trabalho e a doença e, em alguns países, sistemas de reforma. Esta protecção social virá a estar na base do Estado providência. O estado assume-se como responsável pela assistência pública que antes incutia à caridade. O Estado tem um papel cada vez mais interventivo na vida social e económica, é chamado à responsabilidade pelas desigualdades sociais (Silva, 2008). “Nos Estados) nação, os governos têm amplos poderes sobre muitos aspectos da vida dos cidadãos, promulgando leis que se aplicam a todos os que vivam no interior das suas fronteiras” (Giggens, 2004: 36) in (Silva, 2008: 61).

A nação é a forma política da modernidade, na medida em que substitui as tradições, os costumes, e os privilégios por um espaço nacional integrado, reconstruído pela lei, que se inspira nos princípios da razão.

Existe uma correspondência entre uma unidade política e a cultura, as sociedades modernas têm necessidade de uma cultura, construída pela e para a nação, ultrapassando as culturas tradicionais e locais que resistem às mudanças.

É o Estado nacional que produz através da escola uma cultura nacional.

O estado difunde e impõe uma cultura já elaborada, uma língua, que se torna língua nacional.

O nacionalismo é a mobilização do passado e da tradição ao serviço do futuro e da modernidade. Faz despertar as culturas do seu território numa tentativa de resistir ao imperialismo estrangeiro e à imposição de modelos culturais estranhos (Touraine, 1992).

As sociedades Pós-modernas: a lógica transnacional.

Nas sociedades pós-modernas, os nacionalismos modernizadores estão ultrapassados, já que a economia e a cultura são cada vez mais transnacionais. Se a modernidade associava progresso e cultura, alimentando uma oposição entre culturas ou sociedades tradicionais e culturas ou sociedades modernas, a pós-modernidade dissocia o que tinha sido associado.

“Se o sucesso económico já não depende da racionalidade do engenheiro, mas sim do realismo do estratega, se já não é um efeito da ética protestante ou do serviço da nação, mas sim do talento de um economista ou da audácia de um jogador (…) é necessário definir a cultura sem nunca se referir ao progresso da racionalização, saindo, portanto, do domínio da acção histórica” (Touraine, 1992: 221).

Gianni Vattimo (nd) in (Touraine, 1992: 221) aponta duas transformações como fundamentais para definir a pós-modernidade: o fim do domínio europeu sobre o conjunto do mundo e o desenvolvimento dos media que deram voz às culturas locais e minoritárias.

A sociedade deixou de ter unidade, nenhuma personagem, nenhuma categoria social, detém o monopólio do sentido, o que levou ao multiculturalismo (Touraine, 1992). O Pós-modernismo caracteriza-se pela sua total aceitação do efémero, da fragmentação, da descontinuidade, do caótico. O pós-modernismo não tenta sequer transcender ou neutralizar esse facto, pelo contrário, abraça-se às correntes caóticas e fragmentárias de mudança como se elas fossem tudo o que existe (Silva, 2008).

Tudo é temporário.

As instituições, os quadros de referência, os estilos de vida e as crenças, que mudam ainda antes de terem tempo de se padronizarem em rotinas (Bauman, 2001: 14) in ( Silva, 2008).

Assiste-se ao enfraquecimento do papel do Estado nacional-social, que garantia um conjunto de protecções na medida em que funcionava como controlador dos principais parâmetros económicos, capaz de garantir o desenvolvimento económico e social com vista à manutenção da coesão social.

O Estado torna-se cada vez mais incapaz de exercer o papel de timoneiro da economia ao serviço do equilíbrio social.

Assiste-se à erosão das grandes organizações colectivas da defesa dos trabalhadores.

O desemprego massivo e a precarização das relações de trabalho provocam consideráveis disparidades intracategorias. A solidariedade dos estatutos profissionais tende a tornar-se na concorrência entre iguais (Silva, 2008).

Falência do modelo baseado em situações estáveis de trabalho, o importante agora é ter um trabalho, seja ele o que for – o retorno da multifuncionalidade categorizada pela figura da polivalência, que torna a pessoa mais instruída do que especializada, na medida em que a precariedade no emprego, leva a que na sua vida activa tome contacto com actividades variadas, isto é, várias profissões. No pós-modernismo acentua-se a dramática diferença entre a rapidez do avanço das técnicas e a lentidão com que avançam as instituições. O capitalismo global é dono e senhor do mundo.

A ausência de instrumentos de regulação da economia global agrava a polarização mundial entre ricos e pobres.

Segundo Bauman (2001), a modernidade do século XXI caminha para o colapso gradual, o rápido declínio da ilusão do modernismo de que há um caminho que nos leva a uma sociedade boa e justa, a um Estado perfeito.

2ªParte

“Os discursos pós-modernos são todos desconstrutivos, já que procuram distanciar-nos de e tornar-nos cépticos acerca das crenças relativamente à verdade, ao conhecimento, ao poder, ao self e à linguagem que é utilizada e serve para a legitimação da cultura ocidental contemporânea” (Flax, 1990) in Nogueira (2001: 48).

“O período pós-moderno é um período não só de metáforas de mudança e esperanças; é também um período de mudanças nas estruturas da família, nas relações de trabalho e nas distinções de classes (Haraway 1990). Os pós-modernistas criticam tudo o que a modernidade acarretou: a acumulação da experiência do mundo ocidental, a industrialização, a urbanização, a tecnologia avançada, o Estado-Nação. Desafiam as prioridades da modernidade: carreira, responsabilidade individual, burocracia, democracia liberal, tolerância, humanismo, critérios avaliativos, procedimentos neutros, regras impessoais e racionalidade” (Bordo, 1990; Rosenau, 1992) in Nogueira (2001:48).

“Argumentam que a modernidade já não é mais uma força para a libertação e sim uma fonte de subjugação, opressão e repressão” (Nogueira, 2001: 48).

“O pós-modernismo tomou conta e aparece frequentemente nas ciências sociais de hoje. As mudanças que coloca parecem não ter fim, rejeita suposições epistemológicas, refuta convenções metodológicas, resiste às pretensões do conhecimento, obscurece todas as formas de verdade” (Rosenau, 1992) in Nogueira (2001: 50).

“Tem versões mais radicais e outras mais moderadas, mas quer umas quer outras, representam um grande desafio para o conhecimento estabelecido no século XX. Independentemente dessas versões dentro do pós-modernismo, pode dizer-se que de uma forma muito geral os pós-modernistas nas ciências sociais recusam visões globais do mundo, sejam elas políticas, religiosas ou sociais.

Os pós-modernistas questionam qualquer possibilidade de fronteiras rígidas entre as ciências naturais e as humanidades e as ciências sociais, arte e literatura, cultura e vida, ficção e teoria, imagem e realidade.

A ênfase pós-modernista refocaliza-se naquilo que a ciência moderna nunca quis compreender (em qualquer domínio) como o irracional, o tradicional, o marginal, o rejeitado, o silencioso, o não essencial, o periférico, etc. O seu interesse não é «descobrir» algo, mas sim «localizar». Evitam o julgamento, oferecendo «leituras» e não «observações», «interpretações» e não «resultados». Desta forma rearranjam toda a ciência social, já que enquanto a ciência moderna isola elementos, especifica relações e formula sínteses, os pós-modernistas fazem precisamente o oposto. Oferecem o indeterminismo em oposição ao determinismo, a diversidade em oposição à unidade, a diferença mais que a síntese, a complexidade em oposição à simplificação (Rosenau, 1992) in Nogueira (2001: 50-51).

“Em todas as disciplinas os pós-modernistas rejeitam os estilos de discurso convencional e académico, preferindo formas mais audaciosas e provocadoras. Enquanto o discurso moderno é mais exacto, preciso e rigoroso, o discurso pós-modernista é mais literário (Rosenau, 1992) in Nogueira (2001: 51).

Como diz Jane Flax, «algo se está a passar» já que um conjunto de alterações culturais têm mudado significativamente as nossas condições de vida, mudanças que necessitam ser nomeadas, descritas e compreendidas” (Nogueira, 2001. 52).

É mesmo: Algo se está a passar. Temos o privilégio de viver num horizonte no qual impera a mudança, a diversidade, a pluralidade 😀

Bibliografia

MÉDICI, Angéla. (2002). A Educação nova. Rés-Editora. Biblioteca da Educação. 2ª Edição. Porto.NOGUEIRA, Conceição. (2001). Um novo olhar sobre as relações sociais de género. Fundação Calouste Gulbenkian.SANTOS, B. S. (2002). Globalização. Fatalidade ou utopia? Edições Afrontamento. 2ª Edição. Coleção A Sociedade Portuguesa Perante os Desafios da Globalização. Porto.
SILVA, L. F. (2008). Modernidade e Desigualdades Sociais.Universidade Aberta. Lisboa.       TOURAINE, A. (1992). Crítica da Modernidade. Instituto Piaget. Lisboa