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“Charlie está a falar de amor, o seu tema predilecto. «Ah, l’amour, l’amour! Ah, que les femmes m’ont tué! Ai, messieurs et dames, as mulheres foram a minha ruína, a minha ruína para além de toda a esperança. Com vinte e dois anos, aqui estou sem nada e arrumado de vez. Mas que coisas não aprendi, que abismos de sabedoria não explorei! Que grande coisa não é ter conquistado a verdadeira ciência, ter-me transformado, no mais nobre sentido da palavra, num homem civilizado, ter-me tornado a tal ponto raffiné, vicieux» – e continuava por aí fora, sempre no mesmo estilo.
«Messieurs e dames, dou-me conta da vossa tristeza. Ah, mais la vie est belle – não vos quero ver tistes. Alegrem-se, sou eu quem o ordena!
«Ah, que la vie est belle! Ouçam, messieurs et dames, a minha voz cheia de experiência que vos fala de amor. Vou explicar-vos a verdadeira significação do amor – o que é a verdadeira sensibilidade, o prazer, mais requintado e mais alto, que só a um homem civilizado se proporciona. Vou contar-vos o dia mais feliz da minha vida. Infelizmente, passou o tempo em que eu podia conhecer tamanha felicidade, passou tudo para sempre – passou o tempo em que isso era possível, e o próprio desejo disso, para sempre, passou também.
« Ouçam, então. Foi há dois anos; o meu irmão estava em Paris – é notário – e os meus pais disseram-lhe para me procurar e me levar a jantar. Odiamo-nos um ao outro, o meu irmão e eu, mas achámos que o melhor era não contrariar a vontade declarada dos nossos pais. Jantámos, e ao jantar ele emborcou três garrafas de Bordeaux e ficou a cair que nem um cacho. Levei-o até ao hotel onde vivia, e pelo caminho comprei uma garrafa de brandy. Quando chegámos ao hotel, obriguei-o a beber um copo cheio do brandy que tinha comprado – convenci-o, dizendo-lhe que era um produto que o ia pôr sóbrio num instante. Ele bebeu, e logo a seguir caíu como uma pedra, morto de bêbedo. Levantei-o do chão e encostei-o à beira da cama, sentado; depois, revistei-lhe os bolsos. Descobri onze notas de cem francos, que guardei, antes de descer as escadas à pressa, saltar para um táxi e pôr-me a salvo dali. O meu irmão não sabia a minha morada – e eu estava, por isso, fora de perigo.
« Que faz um homem quando tem dinheiro nos bolsos? Vai a um bordel, naturalmente. Mas não julgam com certeza que fui gastar o meu tempo nalgum lugar deboche vulgar, bom para os trabalhadores dos aterros! Nada de confusões, há aqui um homem civilizado! Sentia-me esquisito de boca, exigente, com um milhar de francos no bolso.
(…). «Mil francos», respondeu uma voz de mulher. «É pagar já, ou não entram».
(…). Cá fora, ouvi lá dentro a voz de alguém a contar as notas, e a seguir uma mulher, que parecia um corvo, descarnada, vestida de preto, espreitou, olhando-me com desconfiança. No interior estava muito escuro: não conseguia ver nada, senão um bico de gás iluminando um pedaço de parede estucada, enquanto tudo o resto permanecia mergulhado na sombra mais densa. Cheirava a ratos e a poeira. Sem dizer palavra, a velha acendeu um outro candeeiro no bico de gás e avançou à minha frente, conduzindo-me, por um correddor lajeado até uma série de degraus também de pedra.
«Voilá», disse ela. »Desça até à cave e faça o que quiser. Eu não vi nada, não ouvi nada, não soube de nada. Você é livre, percebe? Perfeitamente livre».
«Oh, messieurs, terei que vos descrever – o que forcément já conheceis por experiência própria – o calafrio, meio de terror meio de alegria, que se sente em instantes semelhantes? Desci a tactear, seguindo o caminho indicado; ouvia a minha própria respiração e o som dos meus sapatos na pedra do chão, enquanto tudo o mais em redor era silêncio. Ao fundo dos degraus, bati com a mão num interruptor eléctrico. Accionei-o e um grande candelabro de doze lâmpadas vermelhas iluminou a cave. Mas a cave tinha-se transformado num quarto de dormir, enorme, sumptuoso, vermelho de um a outro extremo. Imaginem a cena, messieurs e dames! Um tapete vermelho no chão, papel vermelho nas paredes, veludo vermelho nas cadeiras, o próprio tecto era vermelho; era tudo vermelho ali, e eu sentia os olhos a arder. Era um vermelho pesado, violento, como se a luz passasse através de taças cheias de sangue. Ao fundo, estava um leito quadrado, revestido com roupas de cama da mesma cor, e no meio da cama havia uma rapariga deitada, envolta num roupão de veludo vermelho. Ao ver-me, a rapariga teve um movimento de recuo e tentou esconder os joelhos puxando o roupão demasiado curto.
«Eu ficara imóvel no limiar. ‘Vem cá, minha franguinha’, chamei.
«Ouvia-a soltar um gemido de medo. Mas num pulo pus-me ao pé da cama; ela tentou esquivar-se, mas agarreia-a pelo pescoço – assim, estão a ver? – e apertei! A rapariga debatia-se, começou a implorar piedade, mas segurei-a com força, empurrando-lhe a cabeça para trás para lhe descobrir o rosto. Devia ter talvez vinte anos; a cara dela parecia a cara tosca e parada de uma criança pouco inteligente, embora estivesse toda coberta de pintura e pó de arroz, enquanto os olhos azuis mostravam a expressão amedrontada e idiota, cintilando na luz vermelha, que geralmente se encontra no seu género de mulher. Tratava-se, sem dúvida, de uma jovem camponesa, que os pais tinham vendido para aquela espécie de escravatura.
»Sem dizer mais uma palavra, puxei-a para fora da cama e atirei-a para o chão. E depois caí em cima dela como um tigre! Ah, a alegria, o arroubo incomparável desse instante! Aqui está, messieurs et dames, o que queria poder mostrar-vos; violá l’amour! É o verdadeiro amor, a única coisa no mundo que vale a pena que lhe consagremos algum esforço; é a coisa ao lado da qual, todas as vossas artes e ideais, todas as vossas filosofias e credos, todas as vossas belas palavras e atitudes nobres são tão baças e inúteis como cinzas. Quando uma pessoa teve a experiência do amor – do verdadeiro amor – que haverá no mundo que lhe não pareça um mero fantasma dessa alegria?
«De um modo cada vez mais selvagem, renovei o meu ataque. Uma e outra vez, a rapariga tentou escapar; voltou a pedir piedade, enquanto eu me ria dela.
«’Piedade!’, disse eu, ‘Achas que vim aqui para ter piedade? Achas que foi para isso que paguei mil francos?’ Juro-vos, messieurs et dames, que se não fossem essas malditas leis que nos roubam a liberdade de acção, a teria assassinado naquele mesmo instante.
« Ah, como ela suspirava e gemia e soltava os gritos mais amargos da agonia. Mas não havia ninguém para os ouvir; ali, por baixo das ruas de Paris, estávamos tão seguros como num interior de uma pirâmide. As lágrimas escorriam pela cara da rapariga, arrastando o pó que a maquilhava em longos fios manchados. Ah, esse instante irrecuperável! Para os que, à vossa semelhança, messieurs e t dames, não cultivaram nunca as delicadezas mais requintadas do amor, estes prazeres ultrapassam a imaginação. E também para mim, agora que a minha juventude se foi – ah, a juventude – , a vida nunca mais brilhará com a mesma beleza. Acabou-se.
»Ah, sim, acabou-se tudo para sempre – para sempre. Ah, a pobreza, a brevidade, a decepção das alegrias humanas! Porque, na realidade – car en réalité, o que é a duração do momento supremo do amor? Nada, apenas um instante, um segundo talvez. Um segundo de êxtase, e depois disso – poeira, cinzas, nada.
«E assim, apenas por um instante, conquistei a felicidade suprema, a emoção mais alta e requintada que os seres humanos jamais poderão atingir. E, no mesmo momento, tudo tinha acabado, e ficava-me – o quê, afinal? Toda a minha selvajaria, a minha paixão, se tinham desfeito como pétalas de rosa. Fiquei frio e quebrado, cheio de remorsos inúteis; na minha náusea, cheguei a sentir uma espécie de piedade pela rapariga que chorava deitada no chão. Não é repugnante chegarmos a ceder a emoções tão mesquinhas? Não voltei a olhar para ela; o meu único pensamento era sair dali depressa. Galguei as escadas e vi-me de novo cá fora. Estava escuro e muito frio, as ruas estavam vazias, as pedras da calçada ressoavam debaixo dos meus pés em pancadas surdas e desoladas. (…). «Mas, messieurs et dames, era isto o que prometera contar-vos. É isto o Amor. Fora aquele o dia mais feliz da minha vida» (Orwell, 1985: 12-17).
ORWELL, George. (1985). Na Penúria em Paris em Londres. Edições Antígona. Lisboa.
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