“Não há civilização sem cultura, mas não há evolução sem rompimentos culturais.”
Hideraldo Montenegro
Estava eu aqui debruçada sobre o “Manual de Sociologia da Cultura” da autoria de Franco Crespi, quando me ocorreu que poderia aproveitar o ensejo para elaborar um artigo sobre o conceito antropológico de cultura, pois reparo amiúde que persiste alguma confusão com outro conceito de cultura, que diz respeito apenas à formação e enriquecimento do espírito. Aliás, ainda hoje existem as provas denominadas “provas de cultura geral” que costumam incidir sobre conhecimentos adquiridos na escola, como por exemplo, literatura, arte, história, geografia, etc.
Ora bem, esta confusão salta à vista sempre que vem a lume o tema das touradas, principalmente quando é apresentado em sua defesa o slogan “a tourada é cultura”. É visível que, no imaginário colectivo, permanece a ideia de cultura como um banco de conhecimentos generalistas e validados, mais ou menos vasto, que justifica as interjeições de indignação das quais esta é exemplo: “Mas alguma vez torturar animais é cultura?”
Não são muitos aqueles que se apercebem que a ideia de cultura neste âmbito obedece ao conceito antropológico, que consiste no “conjunto de representações, valores e normas existentes num determinado contexto histórico e social”.
Ou seja, quando alguém afirma que a tourada é cultura, não está a querer aludir à cultura no sentido da erudição, mas antes aos costumes e usos que identificam um determinado povo ou lugar, portanto, algo próprio da história desse povo.
A verdade é que, a questão da formação do conceito de cultura não tem sido fácil, por isso foram ao longo do tempo criadas várias definições por vários autores. Este meu artigo apenas pretende constituir mais uma achega, porventura uma pequena e despretensiosa ajuda para o universo de estudantes universitários, principalmente brasileiros, que costumam aceder ao meu blog. Irei, por tal, dar voz às autoridades neste assunto, transcrevendo alguns excertos da obra acima citada.
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“Em 1871, o etnólogo americano Edward Tylor definia a cultura como
«aquele conjunto de elementos que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, usos e quaisquer outras capacidades e costumes adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade».
É esta uma das primeiras tentativas para uma definição científica de cultura (…)” (Crespi, 1997:13).
“Na realidade, o termo cultura, (…) presta-se a muitas e diversas interpretações. Em 1952, Alfred Kroeber e Clyde Kluckhohn, desenvolvendo uma análise histórico-crítica das definições de cultura propostas pelos especialistas das ciências sociais, puderam inventariar mais de cento e cinquenta. Kluckhohn tentou sintetizar na lista que se segue os diferentes tipos de cultura:
- o modo de viver de um povo na sua globalidade;
- a hereditariedade social que um indivíduo adquire no seu grupo de pertença;
- uma maneira de pensar, sentir, crer;
- uma abstracção derivada do comportamento;
- uma teoria elaborada pelo antropólogo social sobre o modo como efectivamente se comporta um grupo de pessoas;
- a globalidade de um saber colectivamente possuído;
- uma série de orientações generalizadas relativamente aos problemas recorrentes;
- um comportamento aprendido;
- um mecanismo para a regulação normativa do comportamento;
- uma série de técnicas que permitem a adequação, quer ao ambiente circundante, quer aos outros homens;
- um aglomerado de história, de um mapa, de uma peneira, de uma matriz” (cf. Kroeber, 1952; Kroeber-Kluckhohn, 1963; Kluckhohn, 1949; Geertz, 1973, pp.40-41)” in (Crespi, 1997:13).
“Como vemos, os tipos de definição variam na medida em que se coloca a tónica sobre a dimensão subjectiva da cultura ou sobre a presença do aspecto humano referente aos valores, modelos de comportamento, critérios normativos interiorizados (modos de pensar, sentir, crer; orientações estandardizadas; mecanismos de regulação do comportamento, etc.), ou ainda sobre o carácter, por assim dizer objectivo, que as formas culturais assumem enquanto memória colectiva ou tradição codificada e acumulada no tempo (hereditariedade social, depósito do saber,das técnicas, composto de história, superfície geográfica” (Crespi, 1997:13-14).
“Os diversos elementos que surgem condensados no termo cultura fazem ressaltar, por um lado, a dimensão descritiva e cognitiva da cultura; as crenças e as representações sociais da realidade natural e social, ou as imagens do mundo e da vida, que contribuem para explicar e definir as identidades individuais, as unidades sociais, os fenómenos naturais; por outro, a dimensão prescritiva da cultura, enquanto conjunto de valores que indicam os objectivos ideais a prosseguir, e de normas (modelos de acção, definição de papéis, regras, princípios morais, leis jurídicas, etc.), que indicam o modo segundo o qual os indivíduos e as colectividades devem comportar-se”(Crespi, 1997:13-14) .
“Ambas as dimensões, a descritivo-cognitiva e a prescritiva, se encontram quase sempre intimamente ligadas, enquanto o elemento normativo acha uma justificação nas crenças e nas representações, porquanto estas surgem reforçadas pelos processos de construção da realidade, influenciados pelas prescrições normativas . Além disso, a cultura apresenta-se como tradição, isto é, como possibilidade de um acumular das experiências, enquanto depósito de memória colectiva” (Crespi, 1997:14)
“Origens históricas do conceito de cultura”
“Inicialmente, o termo cultura foi usado sobretudo para referir o processo de formação da personalidade humana através da aprendizagem, que os antigos Gregos designavam utilizando o conceito de paideia: em tal contexto, o indivíduo considerado «culto» é aquele que, assimilando os conhecimentos e valores socialmente transmitidos, consegue traduzi-los em qualidades pessoais.
Este mesmo conceito é usado na Roma Antiga: com efeito, a palavra cultura deriva do latim colere, que indicava inicialmente a acção de cultivar a terra e criar o gado. O termo é sucessivamente alargado, em sentido metafórico, até à cultura do espírito: se o termo humanitas, usado por Cícero, é possivelmente o que melhor corresponde ao conceito grego de paideia, tanto Cícero como Horácio falam igualmente de um modo de cultivar o espírito, conceito esse que virá a ser retomado por Santo Agostinho.
A utilização, em sentido figurado, do termo cultura veio a alargar-se ulteriormente até incluir, além do cultivar das próprias faculdades espirituais, também o da língua, da arte, das letras e das ciências. Nos fins do século XVIII é este o significado dominante atribuído à palavra cultura, que encontra uma expressão afim no vocábulo alemão Bildung, traduzindo exactamente o processo de formação do espírito (cf. Beneton, 1975, p. 25 e segs)” in (Crespi, 1997:114-15).
“Em meados do século XVIII, com a afirmação do Iluminismo, o termo cultura sofre um ulterior alargamento do seu significado, vindo a integrar inclusivamente o património universal dos conhecimentos e valores formativos ao longo da história da humanidade, e que, como tal, é aberto a todos, constituindo, enquanto depósito da memória colectiva uma fonte constante de enriquecimento da experiência. É neste período que se afirma igualmente o conceito de civilidade ou civilização, exprimindo o refinamento cultural dos costumes, em oposição à pretensa barbárie das origens ou à dos povos considerados não civilizados” (Crespi, 1997:15).
“A ideia de civilidade é produto da profunda transformação ocorrida no pensamento ocidental relativamente à dimensão histórica; de facto, com o Iluminismo, e contrariando os conceitos teológicos, vai-se confirmando a perspectiva evolutiva da história da humanidade como um contínuo progresso determinado pelos seres humanos. A palavra francesa civilisation, possivelmente utilizada com esse novo sentido que lhe é atribuído em 1757 pelo marquês de Mirabeau, evoca o desenvolvimento das formas de cortesia, o refinamento dos comportamentos, o controlo sobre as paixões e a violência, que advêm precisamente do desenvolvimento da cultura, enquanto resultado de um movimento colectivo que permitiu à humanidade a saída do estado primitivo (cf. ibid., p. 35)” in (Crespi, 1997:15).
Chegados aqui, cara leitora e caro leitor, é este último parágrafo, que nos apresenta o conceito de Civilidade, como resultado da evolução da humanidade, a verdadeira justificação para que sejam banidas as tradições que envolvam eventos que maltratem os animais.
Civilidade – “o refinamento dos comportamentos, o controlo sobre as paixões e a violência”!
Bibliografia
CRESPI, Franco. (1997). Manual de Sociologia da Cultura. Editorial Estampa. Temas de Sociologia. Lisboa.