“Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem.”
Rosa Luxemburgo
A violência contra a mulher tem raízes profundas, mas é produto de uma construção histórica, sendo, por isso, passível de desconstrução. Constitui violência contra a mulher toda e qualquer conduta baseada no género, que possa causar morte, dano ou sofrimento nos âmbitos: físico, sexual ou psicológico, tanto na esfera pública quanto na privada. Assim, se a violência contra a mulher é tudo o que lhe possa causar sofrimento, exigir-lhe que seja, por exemplo, uma mãe perfeita, é violência contra a mulher.
Ora, vejamos:
Por uma questão cultural, são as mães as maiores responsáveis e aquelas que estão mais presentes na convivência com os filhos. Isso leva a que muitas pessoas acreditem que, sempre que uma criança se torna um adulto problemático, a culpa é das mães, porque supostamente não o educaram como devia ser.
Mas, se por um lado, os valores transmitidos pelos pais são muito importantes, por outro lado, há que ter em linha de conta, que estes não são definitivos nem exclusivos. A verdade é que os valores absorvidos por cada pessoa desde a infância sofrem adaptações ao meio e aos novos contextos, circunstâncias e aprendizados.
Por exemplo: as mães são muitas vezes acusadas de darem uma educação machista aos seus filhos, mas todos sabemos que o machismo é grandemente reproduzido por toda a parte. Na cultura e posturas que inferiorizam as mulheres, nas propagandas dos mais diversos produtos, nos programas de televisão, enfim. Há todo um sistema especializado em separar o mundo entre homens e mulheres e atribuir valores melhores ou piores a ambos. Não se trata de uma força isolada, mas de um grande e complexo sistema que subjuga o feminino, portanto.
Ora, os filhos não são marionetas dos pais, nem estes estão a criar robôs! Assim sendo, torna-se imperioso ter um senso crítico apurado para compreender que cada indivíduo é um ser único, que faz escolhas e opta de acordo com as suas perspectivas.
É preciso afirmar peremptoriamente, que a responsabilidade pelo cuidado e pela educação dos filhos não é só das mães, mas também de toda a família e do Estado. É responsabilidade do Estado garantir que todas as crianças tenham acesso à escola de educação infantil e aos posteriores níveis de ensino. Também é dever do Estado garantir que este ensino seja público e de qualidade, baseado numa educação inclusiva, não-sexista, não-homofóbica, não-lesbofóbica e anti-racista, livre de qualquer forma de preconceito.
A educação das crianças deve ser compartilhada entre as mães, os pais, a família, a sociedade e o Estado.
Nós, mulheres, não podemos aceitar essa culpabilização eterna. Não podemos reproduzir esse pensamento formado pela sociedade patriarcal. Sabemos que não é fácil despertar para toda a opressão que existe na nossa sociedade. É reconhecido que não é simples para as mulheres se desprenderem das obrigações que historicamente lhes foram atribuídas. Mas, nesse sentido, é preciso lembrar a conhecida frase da feminista Rosa Luxemburgo: “quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem”.
Mas, nada melhor para esclarecermos as nossos anseios e dúvidas do que ler os entendidos no assunto, neste caso uma entendida, embora a autora se dirija não apenas às mães, mas aos pais no seu conjunto. Vamos a isso:
Marta Gautier em “Não há Famílias Perfeitas”
“Na minha área de trabalho, dar conselhos de pedagogia pura, e não conselhos da pedagogia que é possível na realidade das pessoas, vai resultar exactamente naquilo contra pretendo lutar: a culpabilidade de mães e pais que, só por si, não leva a lado nenhum.
A minha ambição, na minha actividade e neste livro, é esbater a sensação de fracasso partilhada diariamente por tantos pais, e para a qual contribui a ambiciosa e impossível tarefa que lhes propõem as páginas dos livros da especialidade e a conversa panfletária de vários técnicos: «Devemos incutir nas crianças…», «Devemos ter cuidado para que as crianças…», «Devemos ensinar as crianças a…»
Recuso-me a pactuar com a variedade de exigências dos dias de hoje. Se por um lado se espera que cumpramos simultaneamente vários propósitos importantes e difíceis, por outro também nos é pedido que sejamos, ou pelo menos pareçamos, perfeitos. Como todos, perseguidores e perseguidos, fazem parte desta emboscada, é importante que de vez em quando alguém levante o dedo para lembrar que somos todos imperfeitos e que assim é que deve continuar a ser.
Para se ambicionar um dia exercer bem esta profissão, deve começar-se pela humildade de reconhecer que o conhecimento, a ciência, só por si, não basta para ajudar alguém. Como princípio, devemos assumir que os pais amam mais o seu filho do que nós, conhecem-no melhor do que nós, que a sua intuição é preciosa e que é uma honra entregarem a sua história de amor ao nosso cuidado.
Também não nos podemos esquecer de que na relação pais-filhos se confundem vários sentimentos e estados de alma: amor, frustração, dor, cansaço, ressentimento, identificação, mágoa e tantos outros. A lucidez de uma mãe e de um pais está demasiado comprometida por aquilo que os filhos são independentemente deles, por aquilo que os filhos são, misturados connosco, por aquilo que gostaríamos que fossem, pelas partes deles que não vemos, pelas partes deles que queremos ver, pelas partes deles onde nos revemos, pelo amor que lhes temos, pelo amor que não lhes temos, pelo que neles denuncia os nossos fracassos, a pedagogia que lemos, o que os nossos pais foram connosco e contrariamos, o que os nossos pais foram connosco e imitamos. E tem a ver com as falhas de que nos acusam. E com o não querer que sejam só nossos e o não querer que sejam do mundo.
Esta é a complexa dinâmica que exige que o trabalho nas Competências Parentais seja, por um lado, necessariamente sério e cirúrgico, mas mutável e incoerente, por outro. Desde que comecei a acompanhar crianças com as mais variadas queixas/sintomas, três conclusões essenciais levaram-me à opção de direccionar o meu trabalho e o meu interesse para os pais:
1) Durante o crescimento, para exteriorizar as suas dificuldades, e em vez de se sentar a contar-nos o que a aflige, a criança utiliza muitas vezes o que podemos chamar uma «linguagem paralela», que se traduz no que designarei por «sintoma», e que será a forma de comunicar a dificuldade que se sente.
Para explicar de uma forma mais simples, podemos pensar que cada ser humano, criança ou adulto, tem um limite interno no que aguente de sofrimento, medos, ansiedades, e que, atingido esse limite, temos de «deitar cá para fora» o que já não é possível «conter lá dentro». Há sentimentos que têm de sair para o exterior, seja pela atitude, seja pelo corpo. Para exemplificar de modo simples, a prova mais observável desta realidade são os fenómenos psicossomáticos que se traduzem em casos de queda de cabelo, eczemas, problemas intestinais, asma e uma grande variedade de problemas médicos. É como se estes sintomas físicos viessem complementar ou substituir o lugar das lágrimas, desabafos, gritos, zangas, medos, fobias, agressividades, depressões e outras patologias, ou outros mecanismos catárticosmais canalizados, como a escrita, o trabalho, a criação, a criatividade, a arte, etc.
Os pais procuram-nos quando estão preocupados com reacções que consideram pouco «normais» nos filhos. Na maioria das vezes, o sintoma trata-se de uma circunstância inconsciente, em que não há um plano premeditado do tipo: «Vou fazer birras para me darem atenção». Trata-se da tentativa da criança de se adaptar à desorganização interna que, se não for devidamente enquadrada pelo adulto, pode perpetuar-se no tempo e até transformar-se num modo de viver.
Por isso, pode acontecer os sintomas começarem por determinada razão e continuarem por outra completamente diferente. Por exemplo, a criança começou a portar-se mal na sala de aula porque não conseguia compreender a matéria, mas, depois de a compreender, continua a fazê-lo porque percebe que resultam daí benefícios secundários, como ter mais tempo para fazer os testes ou uma atenção privilegiada dos pais e professores. Como este, podia dar milhares de exemplos.
Acontece mais frequentemente do que se julga.
Qualquer que seja a sua origem, o sintoma nunca é o verdadeiro problema, mas o indicativo de uma questão mais profunda que, essa sim, deverá ser devidamente entendida e resolvida do ponto de vista da dinâmica social que envolve a criança.
2) O sintoma tem uma razão de existir. É sua função organizar o melhor possível, ou o melhor que se consegue, as coisas, perante determinadas circunstâncias. O sintoma realiza-se numa tentativa de equilíbrio. Se o retiramos sem o entender, e à utilidade que tem na rotina da criança e da família, mais tarde os pais voltam a bater-nos à porta, queixando-se do seu regresso, ou do aparecimento de um sintoma novo. Por exemplo, a criança deixou de bater nos colegas da escola e agora rói as unhas ou faz xixi na cama. Para explicar esta ideia, costumo pegar num balão com água que, apertado de um dos lados, não tem outra hipótese senão inchar do outro.
Uma vez que o sintoma não é o problema em si mesmo, e a sua grande maioria é extinta sem grande dificuldade, pode ser tentador para os técnicos darem-se por satisfeitos com o seu desaparecimento e considerar o trabalho concluído.
O problema reside na questão subjacente ao sintoma e, perante ele, o psicólogo deve fazer uma pergunta a si mesmo: se este sintoma, desta criança, com esta personalidade, com esta idade, com esta maturidade, e inserida nesta família, falasse, o que diria?
Uma criança que tem medo de ficar sozinha pode indicar que receia ser abandonada; uma criança que recua na linguagem pode querer ter só para si a atenção dada ao irmão acabado de nascer; uma criança que rói as unhas pode querer dizer que fica muito ansiosa em determinadas situações; uma criança que faz xixi na cama pode querer lembrar-nos de que ainda é pequenina; uma criança que bate nas outras crianças pode indicar que rejeita porque tem medo de ser rejeitada; uma criança que faz birras pode indicar-nos que precisa de limites. Mas, em cada um dos casos, o sintoma pode estar a exprimir uma realidade diferente, própria daquela criança.
3) Existem duas forças opositoras: a culpabilidade – grande, antiga e entranhada – que exala do corpo e do discurso dos pais e das mães, e a resistência em tomarem conhecimento de parte dessa mesma culpabilidade.
A mistura de ambas é que os leva a uma semi-consciência turva e má conselheira, e os paralisa na pescadinha de rabo-na-boca de vários paradoxos, como por exemplo: «Dedico todo o tempo ao meu filho», quando seria mais apropriado tomar consciência de que «Fico impaciente por não ter um minuto para mim».
As pessoas têm uma enorme dificuldade em aceitar estas incoerências como algo legítimo, e essa incompreensão fá-las sentirem-se ainda mais culpadas e com necessidade de compensar os filhos. Num contexto de pouca lucidez, é natural que o tipo de recompensas seja muitas vezes desadequada e amplie sentimentos pouco saudáveis de ambas as partes.
O meu objectivo no trabalho das Competências Parentais não é apenas oferecer fórmulas concretas para a modificação de comportamentos indesejáveis ou da forma como a família se organiza. Seria ingénuo, por ignorar a complexidade do problema, e pouco útil, por não atacar a raiz do problema. Os pais convivem diariamente com os filhos, conhecem-nos bem. Seria arrogância sequer imaginar que bastariam os meus conhecimentos ou a minha insistência para reorganizar uma teia que demorou meses e anos a erguer-se. Respeitando o ritmo, a estrutura, a história pessoal e as crenças enraizadas de cada um, o que pretendo é partir dessa realidade para levá-los a assumirem-se como são, o que são, com toda a sua complexidade.
Aceitando os próprios sentimentos, os pais poderão iniciar uma relação mais autêntica com os filhos. Pretendo que dentro de si, do seu coração, da sua alma e do seu corpo, compreendam o que os está a impedir de serem mais felizes com os filhos. Com essa consciência, as pessoas estarão mais bem preparadas para ir às raízes da própria culpabilidade, detectando onde ela promove uma rotina viciada e nociva. É esta complexidade, esta colisão de forças e sentimentos, muitas vezes negados pelos próprios, que faz deste trabalho uma actividade delicada e engenhosa.
Reagir contra a enorme culpabilidade dos pais é a mais premente intenção deste livro.
Pretendo identificar o inútil e secreto fardo que os pais carregam, e propor-lhes que, enquanto educam os seus filhos, voltem a ser eles próprios, com a sua identidade original de seres humanos que um dia se tornaram pais. Ao contrário do que seria de esperar, esta é uma ideia difícil de assimilar. Não só porque tudo à sua roda parece impor um modelo único, mas também porque as pessoas têm dificuldade em saber quem são, e os filhos podem ser a desculpa perfeita para escamotear essa dúvida.
Se a verdade é que, do ponto de vista pedagógico, os pais cometem no mínimo meia dúzia de erros por dia, ter consciência da inevitabilidade do erro pode ajudar a sossegar o esforço e a esperança de sermos perfeitos.
Nem sempre é mau encolhermos os ombros e permitirmo-nos ser quem somos. É um gesto que implica muita coragem, e que não deixará de se reflectir, numa espécie de espelho, na coragem e na auto-estima dos filhos, que também terão licença de acreditar que «é bom serem eles mesmos», especiais e únicos.
Com os testemunhos que apresento neste livro, é minha intenção mostrar que partilhamos muitos sentimentos e, assim, retirar as pessoas de um isolamento desnecessário, que, se não for desmistificado, pode perdurar vidas inteiras. Temos tendência para achar que em casa dos outros tudo corre bem, mas não é assim. Nada é linear e todas as pessoas têm as suas esquisitices, manias, transgressões. Ao mesmo tempo, ver nos outros algo de nós motiva-nos a sermos mais nós mesmos, e a assumirmos as nossas limitações e imperfeições. Na prática, ao vermo-nos parecidos com os outros temos vontade de ser mais nós mesmos. Dizia o filósofo qualquer coisa como: «Dizer que sou tímido, já é não ser tímido».”
Bibliografia
GAUTIER, Marta. (2010) Não há famílias perfeitas. Editora Objectiva. Carnaxide. 3ª edição. pp. 243-250