Guerra sobre Guerra

Publicado por: Milu  :  Categoria: Guerra sobre Guerra, TERRORISMO

World, 25 September 2013 Terorrism kills innocent people. Terrorisme doodt onshuldige mensen. Cartoon: Shahrokh Heidari/Cartoon Movement/Hollandse Hoogte

 

 

«A criação mais perigosa de uma sociedade é a de um homem que não tem nada a perder».

James Baldwin

Mais uma vez o meu filho me irá criticar, dizendo:

– “Mãe, fazes posts muito grandes, escreves muito, e assim as pessoas não vão querer ler”.

E eu responderei, peremptoriamente:

– Os posts que escrevo, assim longos, completos, com substância, não são para essas pessoas. Ponto final.

INTRÓITO

A minha História.

Decorria o ano de 1986, quando assisti pela primeira vez a um aceso debate sobre o fenómeno do Terrorismo. Nesse ano, era eu uma estudante trabalhadora de 25 anos,  que frequentava o 9º ano escolar. Como acabei agora de dar a entender, o meu percurso escolar não foi linear. Houve interregnos. Mas há três anos que havia retomado os estudos. E tinha sonhos… Motivada por esses sonhos, que tantas vezes acalentava nos meus momentos de introspecção, tornei-me impaciente… e quis dar um salto quântico.

Por isso, assim que tomei conhecimento, de que havia uma forma de ingressar no ensino superior, mesmo sem deter o 12º ano, esta menina decidiu que tinha de embarcar nessa caravela de sonhos feitos e tornados realidade. Fiz exames Ad- hoc!

O Ad- hoc consistia num exame que fazia uma avaliação geral das capacidades e conhecimentos do candidato. Actualmente é designado por M23. Fiz, por essa altura, dois exames Ad-hoc. O primeiro teve lugar na Faculdade de Direito na Cidade Universitária.

Não cheguei a procurar os resultados, porque entendi que me tinha corrido pessimamente. A prova de Português até foi fácil, em tudo semelhante ao que eu estava habituada a fazer no Liceu, por isso correu sobre rodas. Mas, no que diz respeito à prova específica, aconteceu-me meter os pés pelas mãos… e vice versa. Tudo isso porque quis dar um passo maior do que as pernas. Já se viu…

Senão vejamos: eram dois os temas a desenvolver, devendo o candidato optar por um deles, e elaborar  um trabalho escrito de umas tantas linhas. Já não me recordo quantas.. O primeiro versava sobre espécies em vias de extinção, devendo-se referir uma delas, descrever as suas características, habitat, etc. O segundo tema tinha como título “As relações entre a arte e o poder”. Complicado!…

Por vezes fico perplexa comigo mesma, porque chego a tomar atitudes algo incompreensíveis! Parece que há uma coisa ali a puxar-me no sentido contrário ao que deveria ir… Pois o que fiz foi que, ao invés de optar pelo primeiro tema, para o qual estava perfeitamente documentada e capacitada, uma vez que tinha lido recentemente  na revista Selecções do Reader’s Digest um artigo sobre animais em perigo de extinção, os linces da Serra da Malcata,  com tudo muito fresquinho na minha prodigiosa memória de então, fui logo escolher, repare-se bem, o tema sobre as relações entre a arte e o poder!!

Até parece uma tentação do Diabo!

 Porque agi por  impulso, sem pensar, convencida de que era capaz de concluir uma abordagem muito sui generis sobre a questão? Será que eu gosto da dificuldade? Porque espalho eu pedras no meu caminho?

Mas, por outro lado, e sem me contradizer, não terá sido só uma tentação do diabo, julgo que sei, ou sinto, o que motivou a minha escolha. Afinal, tudo tem a sua justificação…

Foram as associações que me assolaram a moleirinha sobre a igreja, com a sua arte sacra, e o poder, logo, os governos que se aproveitam da fé, dos medos e das crenças das pessoas, para as levarem a aceitar tudo aquilo que um povo educado e culto se sentiria na obrigação de contestar, de repelir fortemente. No fundo, eu fazia uma ideia do que queria. Mas não tinha conhecimentos suficientes para tal. Resultado: Após uns quantos arremedos, sabe-se lá as teorias que eu ali naquele momento inventei, meia dúzia de linhas depois, dei-me por incapaz de prosseguir, ainda com tantas linhas por preencher.

Cheguei ao ponto em que não consegui fazer sair mais nada da minha imaginação, do meu poder criativo, não obstante costumar ser muito fértil em ideias. Como já antes referi, nunca quis saber os resultados, porque acreditei que não eram nada de louvar.

Poupei-me ao veredicto. Foi o que foi.

A segunda tentativa correu  melhor e  assisti às provas orais individuais, que tinham a duração média de 30 minutos.

Trinta minutos de nervos em franja, à beira do colapso. Lembro-me que, quando estava na minha prova oral, cheguei a sentir-me como um touro  numa arena. Acossada por todos os lados. Quando eu defendia um determinado ponto de vista, os professores  examinadores, eram três, olhavam-me do alto da sua cátedra, poderosos, e contestavam-me, apresentando diversos argumentos, como o fim de abalar ou  derrubar as minhas convicções, as minhas afirmações. Diziam eles, que tinham de empregar esta técnica para nos testar das capacidades para jurista. Porque nem sempre ser-se inteligente é qualidade suficiente para se ser um bom jurista, diziam.

Ao cabo de uns instantes, mais ou menos longos, eu já estava determinada a aceitar, que eram eles que tinham razão, que quem estava a ver mal as coisas era eu… Aí,  nesse momento, diziam-me que afinal eu deveria ter sido mais firme porque até estava certa, que tinha feito mal em retroceder nas minhas considerações.

Meia hora nisto, ora a afirmar, ora a desdizer, numa espécie de avanço um passo e recuo dois!

Mas porque estou a relatar tudo isto?? Ora, para, nem  mais nem menos, chegar ao que motivou verdadeiramente a elaboração deste meu post:

Foi num ambiente destes, de prova oral, que assisti ao primeiro debate sobre o Terrorismo.

Um dos alunos, tinha optado por fazer a prova específica com este tema. Foi dos que levou mais «porrada», pois então. Suaram-lhe as estopinhas!

Escusado será dizer que levou um baile. É que um tema destes exige mais do que a opinião do senso comum, com ligeiras leituras em jornais. Exige estudo. Exige uma  mente aberta, flexível. Exige o emprego da hermenêutica. Exige que nos coloquemos no lugar do outro, ver com os olhos do outro, para sentir o outro, para sentir o sentir do outro, etc, etc.

O fulcro da questão está em que, em dada altura, um dos professores examinadores proferiu que o  terrorismo, em determinados contextos, até pode ser considerado como o último reduto. Quando não se pôde fazer mais nada. Quando as negociações teimam  em falhar. Ouvir isto confundiu-me!  Porque me parece, até certo ponto, uma legitimação do Terrorismo, embora na altura o terrorismo do domínio público, que qualquer um já tinha ouvido falar, fosse o IRA,  que actuou na Grã-Bretanha em prol da independência da Irlanda do Norte, e a ETA, na Espanha, que representa o grupo armado do movimento separatista basco.

De então para cá muitas coisas foram mudando.

Pois bem, agora que ele está aí numa nova onda, o Terrorismo, decidi aprofundar esta problemática. Eu quero ter a minha opinião, e quero-o consertada, fundamentada. Aqui não são aconselháveis os saltos quânticos. Quero profundidade. Está, por isso mesmo, criada uma nova categoria no  meu blog, que dá pelo nome de Terrorismo. Para quem quer conhecer mais. Informo que este excerto, que a seguir é apresentado, consta de uma obra datada de 2009, que foi elaborada tendo em conta os acontecimentos dessa década, nomeadamente o 11 de Setembro de 2001. Apesar de não ser recente é uma abordagem a ter em conta. É História. E quem não sabe História, não sabe nada, não entende nada do mundo.

“A Sociedade Invisível”

 

“A modernidade, o processo histórico no qual se configuram os estados nacionais, pensou e manejou o selvagem como uma coisa que se pode e deve colocar atrás de certos limiares, para lá de certos limites; havia uma clara contraposição entre o espaço dominado da civilização e o espaço não dominado da barbárie. Esta distinção nunca foi, provavelmente, tão nítida como pensaram os seus formuladores, mas a sua validade de princípio era, pelo menos, um horizonte indiscutido. No momento em que a expansão civilizadora abarca o mundo inteiro, quando a globalização não deixa nada de fora nem concebe nenhum «mais além» fora dos seus limites, a civilização racional e a violência parecem entremesclar-se. O potencial da barbárie que tinha sido impelido para a periferia volta para o centro.

A divisão entre civilização e violência já não é traçada por uns limites que separem umas trevas exteriores do espaço interior da razão; esses limites atravessam o próprio cerne do mundo civilizado com a mesma naturalidade com que os terroristas se movem entre nós (Caygill, 1993, 51). Não creio que seja uma casualidade a coincidência no tempo da teoria segundo a qual a máxima racionalidade contém em si uma forma de irracionalidade (formulada, entre outros, pelos filósofos da Escola de Franckfurt) com a prática terrorista, que parece confirmar de uma maneira sinistra essa hipótese.

O assunto seria menos inquietante se nos encontrássemos perante uma guerra clássica, isto é: se o embate fosse entre dois mundos relativamente distintos; se a agressão viesse de um exterior localizável; se os terroristas fossem realmente agentes de alguma tirania longínqua e subdesenvolvida e não gente que estudou em Havard, maneja perfeitamente as nossas técnicas e conhece a lógica que governa os nossos meios de comunicação; se a sua legitimação ideológica fosse somente uma interpretação fundamentalista do Corão em vez de uma mescla dessa interpretação com os resíduos de determinados elementos ideológicos do mundo ocidental; se os países que servem de apoios do terrorismo fossem regimes do islamismo mais atrasado e não uma síntese explosiva desse fundamentalismo com formas de totalitarismo estatal importadas da nossa cultura.

Infelizmente, nem podemos conceber essa nova hostilidade como coisa completamente alheia à nossa cultura nem fazer-lhe frente com a lógica de quem maneja, fora dos seus limites, uma exterioridade absoluta. O assunto é, por assim dizer, de política interna do mundo.

As coisas tornam-se, pois, tão pouco tranquilizadoras porque a agressão não vem de fora, é «terror no sistema» (Baecker, Krieg & Simon, 2002), com ataques no interior de uma modernidade globalizada na qual desaparecem as distâncias espacio-temporais e o mundo se converte numa metrópole dificilmente divisável. O 11 de Setembro e o 11 de Março puseram a claro a versão mais trágica de uma série de fenómenos típicos de um mundo globalizado: o desconcerto dos aparelhos militares contra inimigos invisíveis recorda as estratégias políticas e económicas dos estados no espaço global perante a agilidade das empresas que actuam nesses cenários; a diversificação das sedes empresariais parece-se muito com a mobilidade mundial das organizações terroristas; o aproveitamento feito pelos global players das condições políticas e jurídicas nas diversas regiões do mundo a fim de minimizar os custos económicos corresponde ao modo como os terroristas parasitam as insatisfações latentes na periferia da sociedade mundial; uns procuram o lugar onde produzirão mais barato e os outros procuram o conflito que lhes proporcionará uma justificação mais plausível.

As guerras já não são o que julgavam os grandes filósofos da modernidade, o direito internacional e a política clássica. Quando se podia distinguir amigos e inimigos, o mundo estava, pelo menos, em ordem. Quem ler Hegel, por exemplo, poderá encontrar páginas tão memoráveis como actualmente estranhas acerca da guerra humanizada. O terrorismo, pelo contrário, escapa a qualquer regulação jurídica, socava todas as distinções e transforma a inimizade numa coisa absoluta. O terrorismo desconstrói não só a distinção entre civil e militar mas também a distinção entre vitória e derrota, e até entre vencedor e vencido (podemos encontrar o exemplo mais claro disso no facto de se não saber quando terminou a guerra do Irak nem quem a ganhou e de o maior número de vítimas se ter verificado quando a guerra parecia ter acabado). O terrorismo, que desconhece os limites  esfumou também distinções que eram características da nossa cultura: entre a barbárie para lá das fronteiras e a civilização no interior delas; entre militares e não combatentes; entre militares e polícias, por um lado, e criminosos por outro. Já não existem os limites e as fronteiras para lá dos quais se podia estar certo de encontrar um inimigo e para cá dos quais só havia amigos.

E a distinção cuja perda nos causa maior perplexidade é a que separava a paz e a guerra, à qual sucede agora uma situação geral de ameaça indiferenciada. A teoria política concebia três situações possíveis: paz, guerra e pós-guerra. Pois bem: é como se a ameaça do terrorismo tivesse eliminado a possibilidade das duas primeiras e vivêssemos agora todos numa situação de pós-guerra.

O medo dos ameaçados é expressão de uma absoluta insegurança, tanto maior quanto menos identificável é o inimigo. A determinação de um inimigo é um modo de absorver essa insegurança, e por isso os governos sabem que tranquilizam as suas populações se dirigirem todas as atenções para um inimigo reconhecível. Do mesmo modo que as campanhas eleitorais são sintetizadas num rosto, também as políticas de segurança apontam para algum canalha que concentre a inquietação – seja ele um homem ou um estado concreto. Mas todos sabem que, perante a verdadeira natureza do perigo, essa estratégia é um «placebo». Os inimigos do século XXI são intransparentes, dificilmente localizáveis; não estão para lá dos limites, mas no meio do mundo contra o qual lutam.

Como naquele relato de Kafka intitulado «A construção», o inimigo está de repente em toda a parte e mostra-se especialmente perigoso na medida em que não se mostra. Todo o fenómeno do terrorismo contemporâneo se torna tão inquietante por causa dessa invisibilidade.

Não só os seus executores pretendem ser invisíveis como também há uma espécie de invisibilidade objectiva, própria do assunto, como invisíveis são o medo e a insegurança que eles desencadeiam, e que não podem ser combatidos com evidências; a estratégia antiterrorista também concedeu primazia à suposição do que não se vê sobre a objectividade da evidência; a guerra não pôde ser justificada por meio de provas mas por indícios que ninguém conseguiu justificar, bem como depois se afirmou que não seria possível condenar ninguém por provas como as que o estado de direito exige, isto é, por evidências visíveis, e se introduziu o conceito de «guerra preventiva», que é uma espécie de justificação para fazer aquilo que, em princípio, só seria legítimo perante a evidência de uma agressão – realizada ou, pelo menos, iminente.

A ênfase não costuma contribuir para esclarecer a verdadeira natureza dos problemas – que, antes de tudo, têm de ser bem compreendidos. Não deveríamos cair no erro de pensar que enfrentamos outra estratégia de representação. A tradicional sintomática política que procura explicações causais para os fenómenos já não serve. Explicamos fenómenos complexos e estabelecemos causas e efeitos em vez de compreender que esses movimentos têm fins, ideologias, estruturas e estratégias que não se deixam reduzir a isso. Não só os culpados são invisíveis: são-no também os seus objectivos, frequentemente indeterminados e, por isso mesmo, inegociáveis. Os actuais terroristas não têm exigências explícitas que possam revelar a sua identidade. Estamos perante um fenómeno novo que nem é revolução nem guerra fria e que podemos compreender melhor com as categorias da conspiração.

Voltámos à lógica do combatente irregular, do guerrilheiro. A figura do delinquente ou criminoso está obsoleta, e o seu lugar é agora ocupado pelo conquistador, por aquele que confunde por meio de sinais que não significam o que deviam significar. As causas que ele aduz (religião, conflito palestiniano, globalização e pobreza) não devem ser levadas a sério, porque não são causas mas justificações a posteriori de acções que, de facto, não têm explicação suficiente. A violência difusa também tornou extremamente fluídas as causalidades. Para este tipo de assuntos, é válida a recomendação de Graham Greeene: não tomemos muito a sério nenhum jogo, quando não perdemos.

É preciso compreender e combater o terrorismo sem necessariamente acreditar no que os terroristas dizem; uma das armas deles consiste, precisamente, em criar confusão.

O 11 de Setembro de 2001 deu início a uma nova era de terrorismo, que também exige ser pensado e combatido de outra maneira. Com o desaparecimento dos limites e das fronteiras desaparece também a categoria tradicional do delito, que consistia, precisamente, na transgressão desses limites. Daí que a primeira discussão tenha sido para saber se estávamos perante uma guerra ou um acto de terrorismo. Os simulacros de guerra tradicional (Afganistão, Irak) foram executados sem se querer reconhecer que o inimigo se situa numa frente interior contra a qual se tem de lutar de outra maneira. Ao fazer uma guerra tradicional, Bush e aliados comportaram-se como quem responde  com evasivas fúteis quando o interrogam. A tentativa de atribuir a responsabilidade a determinados estados corresponde a um pensamento militarista tradicional, mas é possível que já tenhamos passado por uma situação de «individualização da guerra» (Beck, 2002, 34) que não põe frente a frente os estados e na qual o que acontece é que são indivíduos – ou grupos difusos, de algum modo articulados em redor de um princípio territorial ou estatal – quem declara guerra aos estados.

E, de facto, depois do desaparecimento do sistema mundial bipolar as ameaças já não procedem dos estados nem se apresentam na figura estatal. Todas as pretensões de identificação de «estados terroristas» apenas procuram, e inutilmente, reconduzir as categorias conhecidas um fenómeno que exige outra explicação. Os célebres estados – canalhas (Litwak, 2000) são – quando muito – pontos de apoio do terrorismo, mas este ultrapassa os territórios e as fronteiras. A guerra difusa dissolveu por completo o princípio da frontalidade; já não se localiza num espaço e num tempo concretos, antes pode acorrer em qualquer sítio e em qualquer momento. De qualquer modo, o confronto já não é territorial. Em última instância, falta um inimigo ao qual corresponda um estatuto de sujeito político. Já não estamos naquele mundo mais simples em que o inimigo tinha um rosto e uma mensagem, em que era possível negociar com ele, em que se lhe podia enviar uma declaração formal de guerra e em que ele poderia perdê-la.

O futuro imediato não vai deixar que nos consolemos com os tradicionais esquemas que ajudavam a combater a confusão.

Assistiremos a conflitos sem uniformes, com explosões dispersas e métodos de destruição sinistros, sem marcas nos mapas a desenhar as frentes de combate e com estratégias mais delineadas para produzir medo que para causar baixas.

 Martim van Creveld (1991 a 1999) viu em tudo isso uma metamorfose que vai além do  militar; termina a época da estatalidade moderna, da soberania reconhecível, do monopólio da força monopolizada e da segurança garantida. O mundo nunca mais será seguro enquanto não formos capazes de lhe dar uma forma que substitua a anterior. A violência difusa é uma expressão deste desajuste, como se nos encontrássemos no ponto de fricção de duas grandes placas da história. Entretanto, há que realizar todo um trabalho que exige menos emoção e mais inteligência: é preciso configurar um novo cenário multilateral, construir a segurança sem limites territoriais e enfrentar problemas e conflitos que já não podemos considerar alheios num mundo em que deixou de haver assuntos externos e há apenas política interna.

Guerras assimétricas

(…)

As guerras clássicas entre os estados eram fundamentalmente guerras simétricas, em que se exercia uma violência especialmente intensa no campo de batalha e nas quais se procurava limitar essa violência a esse cenário, impedi-la de alastrar a espaços mais amplos. A guerra clássica era simétrica, não porque os actores tivessem a mesma força mas porque eram da mesma ordem: eram estados. Essa igualdade de princípio pressupunha que os estados se reconheciam como similares e aceitavam as normas mediante as quais o direito regulava, com maior ou menos êxito, as situações de paz ou de guerra. O uniforme era o símbolo dessa simetria, era por ele que os combatentes de distinguiam dos outros e era ele que dava a conhecer os inimigos. A ritualização do cessar-fogo e as negociações de capitulação tinham por efeito facilitar a disposição para negociar de maneira que não fosse necessário continuar uma guerra já dada por decidida. Não é preciso idealizar estas condições para reconhecer a sua validade geral – entre outros motivos, porque o que desse modo se regulava não deixava de ser um exercício de violência brutal.

(…).

Na sua maior parte, os actos de violência que caracterizam as novas guerras, se medidos pelas normas e tratados internacionais, são delitos de guerra. Por isso é que as guerras costumam agora terminar com a constituição de tribunais específicos. Já não se pode dizer que a guerra é um confronto entre combatentes, pois mais de 80% dos mortos são agora civis, ao passo que em começos do século XX esta taxa andava pelos 10%. As novas guerras caracterizam-se pela desmilitarização da violência como mostram a crescente presença de grupos paramilitares, a extensão da prática do sequestro de civis e a aplicação sistemática de violência sexual.

Uma das características das guerras assimétricas é que nelas não há propriamente «batalhas» mas «matanças»; em vez de batalhas decisivas que conduzam à capitulação e ao acordo, o que há são matanças que conduzem ao desespero.

(…).

(…) as matanças agudizam o desejo de desforra e acelerem o ciclo infernal que cada vez mais fere as estruturas de uma sociedade. A matança é  mais um passo de uma violência instalada; a batalha, pelo menos na intenção, era o começo do fim da guerra.

(…).

As constelações simétricas caracterizam-se por a capacidade de matar e ser matado estar nelas tendencialmente repartida por igual. A assimetria suprime de forma radical esse equilíbrio: uma parte procura levar a outra a uma posição de completa inferioridade, e até de indefensão. Onde esta assimetria se exemplifica melhor é no desequilíbrio que os atentados suicidas representam. Faz parte da simetria do combate supor que o inimigo, ainda que pratique actos que ponham a sua vida em perigo, não deseja morrer. Pois bem: quem não se contenta com o risco normal  do combate e se dispõe a morrer nele obtém vantagens estratégicas que o convertem num inimigo muito difícil de neutralizar. O comportamento de um combatente que supomos não querer perder a vida no combate é é calculável; um inimigo suicida introduz um equilíbrio imponderável, uma assimetria radical.

Como dizia James Baldwin, «a criação mais perigosa de uma sociedade é a de um homem que não tem nada a perder»” (Innerarity, 2009: 72-82).

Bibliografia

INNERARITY, Daniel. (2009). A Sociedade Invisível. Teorema. Lisboa. pp. 72-82).