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“Continua apesar de todos esperarem que abandones. Não deixes que se enferruje o ferro que há em ti.”
Madre Tereza de Cacultá
«… Mais de metade da humanidade, homens e mulheres, vive no sofrimento. O sofrimento de se ser pobre, de se estar mal alimentado, doente, de ser iletrado, explorado. Mas é o sofrimento de se ter nascido mulher que agrava todos os outros…»
Christine Ockrent in “O Livro Negro da Condição das Mulheres”
Num dos jornais da nossa praça (aqui), foi publicada a notícia, que poderá ler abaixo, que a meu ver justifica o medo da vítima de violência doméstica em denunciar o agressor. Afinal, a protecção da vítima após ter feito uma denúncia é muito deficiente. E isso não poderia nunca acontecer! Neste post, pode também ser lido um pequeno excerto do livro “Sem medo Maria” da autoria de Fernanda Freitas, publicado no ano 2008, que nos mostra que, de então para cá , e apesar de muita teoria, pouco se avançou nesta problemática. As mulheres continuam em larga escala a ser vítimas de violência doméstica e de homicídio, nalguns casos logo após ter feito a denúncia, como mostra a figura acima, relativa ao mês de Janeiro do corrente ano, 2015.
Notícia publicada no Público em 10 de Julho de 2015 com o título:
Apenas 10% dos condenados por violência doméstica vão para a prisão
“Nos crimes por violência doméstica, a maioria dos processos instaurados é arquivada – aconteceu em 300 casos de um total de 500 decisões judiciais comunicadas à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) entre Janeiro de 2010 e Junho de 2013. As 500 decisões do Ministério Público ou dos tribunais foram analisadas por investigadores do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, que concluíram: neste universo de 500 inquéritos, apenas 100 resultaram numa sentença em tribunal – 30 absolvições e 70 condenações (apenas 14% do total das decisões).
Mais:
nas condenações, as penas suspensas superaram em muito as penas de prisão efectiva, conclui ainda o estudo «Avaliação das decisões judiciais em matéria de violência doméstica». Assim, o condenado fica muito mais vezes em liberdade, e isso suscita dúvidas sobre os perigos para a vítima, apesar de alterações legislativas recentes passarem a prever que uma pena suspensa deve ser acompanhada de medidas da sua protecção.
As intervenções na sessão promovida Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), para a apresentação de estudos científicos sobre a aplicação de decisões judiciais em casos de violência doméstica (do CES) ou de homicídio conjugal (da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito do Porto), não se centraram tanto na protecção da vítima durante esse tempo em que o agressor fica em liberdade e a vítima exposta a ameaças ou novas agressões, mas na forma de melhorar a obtenção de prova, na investigação criminal.
Seria essa uma das formas de libertar a vítima do peso de ser ela o elemento central da prova e, muitas vezes, apontada como responsável pelos muitos arquivamentos, as poucas acusações e as muito poucas condenações – por se recusar, por exemplo, a depor em tribunal.
As apresentações dos estudos científicos estiveram, de forma geral, em linha com a percepção de que o decisor judicial se esquece “frequentemente” da vítima e de que “as penas são em regra leves”, nas palavras da secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade, Teresa Morais, que abriu a sessão no auditório novo da Assembleia da República.
Para Cândido Agra, professor da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito do Porto e coordenador científico do segundo estudo apresentado na sessão, “é preciso prever para prevenir o crime”. E para tal, é necessário conhecer as motivações do agressor. “Os agentes destes crimes formam uma convicção de que é justo e legítimo pôr fim à vida da sua companheira. Depois há todo um processo de passagem ao acto”, explicou Cândido Agra que citou estudos académicos internacionais.
Quase 91% dos condenados são homens e quase 40% das situações tiveram como motivação a não aceitação do fim da relação, concluiu o seu estudo «Avaliação das decisões judiciais em matéria de homicídios conjugais» que analisou 197 decisões judiciais proferidas entre 2007 e 2012.
Outro resultado: “É no primeiro ano da relação conjugal que acontece a tragédia, na maioria dos casos”, afirmou. Em 39% das situações, o crime ocorre nos primeiros cinco anos da relação, e em particular no primeiro ano, existindo também “uma concentração do acto em relações com mais de 15 anos” (em 35,6% dos casos).
Teresa Morais valorizou o “investimento no conhecimento”, através destes dois estudos, para melhor atingir os objectivos de formar as pessoas envolvidas na prevenção deste fenómeno e de aumentar “a eficácia na prevenção”.
A procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, concordou. Mas acrescentou que “proporia outros estudos”, além destes: “Estudos que nos dessem mais elementos no sentido de perceber quais são os procedimentos na investigação criminal adequados para que a prova seja efectivamente recolhida e válida em julgamento”, declarou, salientando que existe “uma tentativa de adaptar a organização do Ministério Público a uma melhor resposta a esta problemática”.
Na apresentação do estudo do CES, a investigadora Paula Fernando lembrou que, em caso de ida a julgamento, os processos podem durar mais de dois anos e considerou que, no caso dos arquivamentos, o “curto período de tempo” entre uma queixa e a decisão judicial (sendo na maioria dos casos inferior a três meses) “denuncia um desinvestimento na procura de outras provas na situação de não colaboração da vítima”. Tal acontece sobretudo “nos casos em que a vítima se recusa a prestar declarações”, lê-se no estudo.
“A vítima é silenciosa. Mas ela também fala”, disse por sua vez a magistrada do Ministério Público Helena Gonçalves, em representação da Procuradoria-Geral da República. E quando não o faz, é preciso “ver a causa”. “Será que é a pressão familiar? A vergonha de revelar a sua situação?”
“Sem Medo Maria de Fernanda Freitas (2008)
(…)
“A aplicação da lei por parte de alguns agentes públicos, nomeadamente forças policiais e autoridades judiciárias, é deficitária ou insuficiente, como preferirem.
Porquê?
A primeira preocupação de uma vítima de violência doméstica é a sua segurança. Ora, a medida de coacção necessariamente aplicada para que tal seja assegurado, é o afastamento do agressor de casa onde residem, mas na larga maioria dos casos não é aplicada pelos magistrados, As forças policiais que contactam com as vítimas nos momentos de crise, por muito boa vontade que tenham, e alguma formação específica que já lhes é dada, não suprem, nem podem suprir, a falta de uma política integrada e da falta de sensibilidade de alguns responsáveis de estruturas existentes mas burocráticas e não vocacionadas para uma resposta célere e eficaz. Uma das queixas é a da impossibilidade, com o novo figurino processual penal, de ordenar a imediata detenção do agressor que não se ponha em fuga.
Relativamente à punição, faltam claramente respostas a nível social. Na maioria dos casos em que há condenação pela prática deste crime, há suspensão da execução da pena, muitas ou a maior parte das vezes sem qualquer sujeição do condenado a condutas ou medidas específicas. Ou seja, o agressor (que tem quase sempre dificuldade em interiorizar os contornos legais da violência doméstica) sai do Tribunal com a errada e perigosa convicção de que foi absolvido. E nem sequer percebe a censura de que foi alvo, ou até o risco que corre, em caso de reincidência, embora muitas vezes até perceba, mas esse entendimento não é suficiente para que venha mudar o seu comportamento, quer por factores endógenos (educacionais, psicológicos e psiquiátricos), quer por factores exógenos (stresse, alcoolismo, outras dependências, etc).
(…)
A advogada Conceição Brito Lopes, que trabalhou 20 anos na CIDM (Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres) com particular incidência na matéria da violência doméstica contra as mulheres, deixa-nos aqui mais algumas considerações para reflectirmos sobre a actual legislação:”
«Apesar de algum progresso, a lei é fraca, ineficaz e incompleta, traduzindo a falta de importância que é dada a esta grave questão de direitos humanos das mulheres. A lei ocupa-se principalmente da violência física pois, apesar de referir, no art.º 152 do Código Penal, outras formas de violência, não é de forma nenhuma eficaz nem clara a forma como o faz. Como é costume em Portugal, criaram-se primeiro as leis, no papel, sem estudos, sem consultas às bases, às organizações de mulheres e às advogadas que lidam com este problema, sem cuidar de criar previamente condições para que se pudessem concretizar os desígnios nela previstos.
Como facto positivo em termos sociais e legais, refiro a maior visibilidade dada a esta matéria com a introdução de nova legislação. Mas não suficiente. As mulheres estão mais informadas, mas continuam a tratar-se estes crimes como se fossem uma «questão de mulheres» e não uma grave questão da sociedade e reiterada violação de direitos humanos sob o olhar complacente ou indiferente de cidadãos/as e Estado.
A legislação em matéria de violência conjugal masculina contra as mulheres sofre de diversos defeitos, nomeadamente a terminologia usada nos diplomas e que é indutora de erro: usam-se expressões como «violência contra as mulheres», «mulheres vítimas de violência», «abrigos para vítimas de violência», como se a violência que as mulheres sofrem fosse uma espécie de doença que lhes acontece e que tem de ser tratada, escamoteando totalmente a natureza da violência: comportamentos masculinos violentos.
O problema da «violência doméstica» não são as mulheres, são os homens;
as mulheres são apenas as receptoras das consequências do verdadeiro problema que os homens violentos e impunes representam.
Tudo aquilo que se ler como sendo «consequências da violência doméstica» leia-se como sendo problemas que os agressores criam à sociedade em geral e às mulheres em particular.
Se é a própria lei a escamotear a natureza do crime, impondo-lhe um rótulo/título que a generaliza e torna quase abstracta, como se espera que a nossa sociedade, tão pouco atreita em sair em defesa das mulheres agredidas e assassinadas pelos maridos e companheiros, tenha consciência cívica da realidade?
A lei e a sociedade estão de costas voltadas. Não existe a ideia que a violência conjugal masculina contra as mulheres seja aquilo que é:
um crime grave,
que mata muitas mulheres e que contribui largamente para o atraso da sociedade nas suas diferentes vertentes: económica, social, em termos de saúde, etc. E as leis penais ou outras nesta área, mal feitas, mal formuladas, ineficazes, suaves para com o criminoso, violentas para com as vítimas, são mais dissuasoras do que encorajadoras de acção por parte das agredidas.
A legislação portuguesa está muito atrasada em relação ao que se faz há muito tempo noutras partes do mundo europeu e o apoio disponibilizado pelo Estado é pouco mais do que simbólico. Umas das disposições que podem proteger efectivamente as mulheres, como será a ordem do afastamento do agressor da residência onde vivem as pessoas ou pessoa agredida, não é funcional devido remeter a sua concretização para uma fase bastante posterior à apresentação da queixa. Isto significa que a sobrevivente terá de fugir, passando a viver na maior precariedade e insegurança, habitualmente acompanhada de filhas/os, ou que aguardará em casa, ficando à mercê de um homem violento que sabe que foi apresentada queixa contra ele. Mas o afastamento do agressor é poucas vezes pedido judicialmente, o que demonstra a sua ineficácia e a falta de interesse dos tribunais. O uso da pulseira electrónica para controlar os movimentos do agressor é uma medida tão óbvia e tão necessária, que se torna inaceitável que tal não seja feito.
A possibilidade de prisão preventiva é indispensável para tentar evitar ou reduzir a morte de mulheres às mãos dos maridos ou companheiros.
De uma forma geral considero que o legislador se preocupa mais em aliviar a consciência e passar ideias para o papel do que em tentar eliminar o cancro da violência que os homens exercem sobre as mulheres. Não serão as maiores penas de prisão que vão reduzir a incidência da violência masculina sobre as mulheres, mas sim medidas de sensibilização e informação em geral, e o empoderamento das mulheres, criando-lhe condições para que não caiam tão frequentemente em situações de risco de vida ou para que saibam sair de tais situações.
E ao Estado incumbe essa tarefa, que tão mal executa.
Na minha opinião a ineficácia das leis leva ao seu incumprimento, passando a mensagem que a violência conjugal masculina contra as mulheres não é prioridade.»
Bibliografia
FREITAS, Fernanda. (2008). Sem Medo Maria. Caderno. Alfragide. pp. 182-186.