Canto meu

Publicado por: Milu  :  Categoria: Canto meu, FEMINISMO

“Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre.”

Simone de Beauvoir

 

Um quarto que seja o mundo” é o título do IV Capítulo da obra “Alteridades Feridas“, da autoria de Laura Ferreira dos Santos, doutorada em Filosofia da Educação pela Universidade do Minho, a propósito de um livro-ensaio publicado por Virginia Woolf.

Neste livro, Virginia Woolf enfatiza a necessidade das mulheres disporem de um quarto só para  si para poderem escrever,  de modo a  ficarem a salvo de eventuais interrupções durante o processo de escrita.

Contudo, a expressão “ter um quarto só para si” encerra um significado bem mais profundo.

Implica antes de mais, a necessidade da mulher deter autonomia financeira. Sem autonomia financeira não há poder. Mas também, tal como Santos (2002: 115-116)  sugere “Dizer que se deseja que as mulheres tenham um quarto que seja seu remete para muito mais, para um espaço de concentração de forças, para um ambiente de liberdade de pensamento e de expressão, para a possibilidade de se poder ler e escrever as nossas próprias vidas, ou, em termos similares, para a possibilidade de podermos aceder ao apalavramento da nossa própria palavra”.

Neste aspecto, sou uma mulher duplamente satisfeita, pois não tenho apenas um quarto só para mim. Tenho dois. Um deles é este meu blog, no qual dou asas ao meu instinto de livre pensadora e combatente de “verdades” estabelecidas.

Algumas dessas supostas verdades, que faço questão de combater, desconstruindo-as, têm a ver com os estereótipos construídos em torno das mulheres. Por exemplo: é costume ouvir-se dizer que as mulheres são mais dadas às actividades ligadas à educação e aos cuidados,  por isso são influenciadas pela família e de modo geral pela sociedade, a optarem por profissões que tenham a ver com essa área.

A respeito da maternidade, não falta quem considere que uma mulher sem filhos é uma mulher incompleta, que não se realizou, como se não houvessem mulheres que assumem terminantemente que ter filhos nunca esteve no seu horizonte, ou que apesar de os terem tido, assumem sem pruridos que se pudessem voltar atrás optariam por não os ter.

Também é comum ouvir-se dizer que a mulher relativamente ao homem tem um temperamento pacífico. Tenho dúvidas. Não fosse a mulher tão reprimida e tão forçada a encaixar num molde pré formado e talvez em questões de violência não apresentaria qualquer diferença…

Mas, nada melhor para compreender esta problemática do que ouvir o que nos dizem as autoridades nestes assuntos. Eis, pois, um sub-capítulo do livro “Caminho Errado” de Badinter, filósofa francesa nascida em 1944, uma das vozes mais importantes e controversas do movimento feminista francês, traduzida em mais de vinte países.

“A biologia e a distinção de papéis”

“Ao fazer-se da diferença biológica o critério último de classificação dos seres humanos, estamos condenados a pensá-los um por oposição ao outro. Dois sexos, logo duas formas de ver o mundo, dois tipos de pensamento e de psicologia, dois universos diferentes que permanecem lado a lado sem nunca  se misturarem. O feminino é um mundo em si, o masculino o outro, o que torna difícil a ultrapassagem de fronteiras e parece ignorar as diferenças sociais e culturais.

Ao deduzir-se o feminino da capacidade maternal, define-se a mulher por aquilo que ela é e não por aquilo que ela escolheu ser. Pelo contrário, não há definição simétrica do homem, o qual continua a ser apreendido por aquilo que faz e não por aquilo que é. O recurso à biologia só a ela diz respeito.

Nunca se define o homem pela sua capacidade paternal ou pela importância dos seus músculos, mas ela é de imediato presa ao seu corpo, ao passo que ele é liberto dele. A maternidade é o destino da mulher, ao passo que a paternidade é uma escolha. Esta cosmogonia sexual põe mais problemas do que aqueles que resolve. Se a maternidade é a essência da feminilidade, somos levados a pensar que aquela que a recusar é uma anormal ou uma doente. Ao etiquetá-la de «virilista», está a retirar-se-lhe a sua identidade e a declará-la indigna do seu sexo.

Ela é como lançada para fora da comunidade das mulheres.

Porque ao deplorar-se a mulher estéril, está a condenar-se a egoísta que recusa a condição dos seus pares.

Assim procedendo, está a dizer-se realmente que a maternidade não é uma escolha mas uma necessidade que se pode, quando muito, adiar, mas não iludir.

Mesmo se o feminismo bem pensante não elabora qualquer condenação explícita das mulheres que não sejam mães, não perde uma ocasião de sublinhar que elas se alienaram para conseguir um lugar no mundo masculino, não só traindo deste modo a causa das mulheres, como ainda viram costas às virtudes femininas maternais.

Os 3% de francesas que não querem ser mães e fazem uso da sua liberdade são, por isso, inclassificáveis aos olhos do critério adoptado. Nem homens nem «verdadeiras» mulheres, são sempre seres à parte encarados com suspeita.

Além dessas mulheres entregues à sua liberdade, a concepção da mulher-mãe cria uma teoria da psicologia feminina inscrita na natureza que não é clara nem evidente.

A capacidade maternal uniria o género feminino tanto pelas suas características como pelas suas preocupações comuns. As primeiras foram determinadas por altura da questão da paridade, em que as mulheres se descreveram como mais altruístas, mais concretas e mais pacíficas de que os homens, como se todas essas virtudes fossem inatas e não o resultado de uma aprendizagem e de um condicionamento social.

Fez-se de conta que os interesses comuns fariam com que fossem ultrapassadas as suas divergências ao ponto de se constituírem como entidade política distinta do outro sexo, criando assim dois pontos de vista sobre o mundo: um ponto de vista feminino e um ponto de vista masculino. Parece que se esqueceu com alguma precipitação a luta de classes e a divergência dos interesses masculinos. Da mesma forma, é preciso ser-se surdo para não ouvir os múltiplos pontos de vista femininos, nomeadamente sobre assuntos que lhes dizem respeito em primeiro lugar: o aborto, o subsídio de maternidade, o trabalho a tempo parcial ou a paridade.

Na verdade, o relativismo sexual como princípio político é um logro. Homens e mulheres não constituem dois blocos separados. Por um lado, não se vota em função do sexo, mas dos interesses e da ideologia de cada um. Por outro, há muito menos diferenças entre um homem e uma mulher com o mesmo estatuto social e cultural que entre dois homens ou duas mulheres de meios diferentes. Contrariamente ao que se quis fazer crer, a diferença sexual é ínfima em comparação com a diferença social:

a mãe desempregada com dois filhos não tem as mesmas prioridades que a mãe tecnocrata ou quadro de empresa.

Finalmente, mais graves aos nossos olhos são as implicações imediatas e práticas do diferencialismo sexual. Ao fazer-se do biológico o critério distintivo das mulheres, está antecipadamente a legitimar-se a especialização dos papéis que se procurou combater durante mais de trinta anos. A pretexto da luta contra a horrível neutralidade e a abominável indiferenciação, dá-se um vigor inesperado aos velhos estereótipos masculinos e femininos. Receio que os homens tenham tudo a ganhar e as mulheres muito a perder” (Badinter, 2005: 114-116).

Biografia

BADINTER, Elisabeth. (2005). Caminho Errado. Asa Editores. Porto.

SANTOS, F. Laura. (2002). Alteridades Feridas. Angelus Novus. Coimbra.

Webgrafia

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