Tu! Ó fome que aviltas

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“Não mudaremos a vida se não mudamos de vida. Há que perder a paciência.”

José Saramago

Chegada ao terminus desta minha incursão pelo livro “Levantado do Chão” – lido e relido, que agora, já o posso afirmar.

Confesso que tive de fazer um esforço hercúleo, para não ceder à tentação de  o transcrever neste meu recanto do mundo, página a página, cada uma delas um deleite, um saboreio para a alma…, algumas vezes até me ri. Gargalhei por ele no silêncio da noite. Reminiscências… Só por isso já seria um livro abençoado. Mas uma profunda admiração foi o sentimento que imperou. Apetece-me gritar aos quatro ventos: Saramago! Que és meu.

 

“Então outra voz, vem dali, sobre a sombra da noite cai uma sombra que não se sabe donde vem, que ideia lhe lembrou, não está a falar das oito horas nem do salário de quarenta escudos, estes é que são os assuntos para que a reunião foi convocada, porém ninguém tem alma de interromper, Eles sempre quiseram baixar-nos a dignidade, e ouvindo eles todos entendem o que foi dito, eles são a guarda, a pide, é o latifúndio e seu dono Alberto ou Dagoberto, o dragão e o capitão, a fominha de dentes e o osso partido, a ânsia e a quebradura, Quiseram baixar-nos a dignidade, não pode ser mais assim, tem de acabar, ouçam todos isto que aconteceu comigo e com o meu pai que já morreu, foi um segredo de nós dois, mas hoje não posso ficar calado, se os camaradas não se convencerem com este caso, então não há mais nada a fazer, estamos perdidos,

uma vez há muitos anos, estava assim uma noite escura como esta, o meu pai foi comigo, fui eu com ele apanhar bolotas para comermos, não havia nada em casa, e eu já era homem e andava a pensar em casar, levámos um saquito, nem era grande coisa, um taleigo, fomos juntos por companhia, não por causa da carga, e quando já tínhamos o saco quase cheio apareceu a guarda, a mesma coisa aconteceu a outros que aqui estão, não é nenhuma vergonha, apanhar a bolota do chão não é roubar, e que fosse,

a fome é uma boa razão para roubo, quem rouba por precisão tem cem anos de perdão, bem sei que o ditado não é assim, mas devia ser, se eu sou ladrão por ir roubar bolota, ladrão é também o dono dela, que nem fabricou a terra nem plantou a árvore e a podou e limpou, e então chegou a guarda e disse, não vale a pena dizer o que eles disseram, já nem me lembro bem, chamaram-nos nomes, como é que a gente tem aguentado tantas más palavras, e quando o meu pai lhes pediu por amor de Deus que nos deixassem levar a bolota que tínhamos apanhado do chão, puseram-se a rir e disseram que estava bem, podíamos ficar com a bolota, mas com uma condição, ouçam todos a condição, brigarmos um com o outro para eles verem, e então o meu pai respondeu que não ia brigar com o seu próprio filho, e eu com o meu próprio pai, mas eles disseram que sendo assim íamos para o posto, pagávamos a multa e talvez levássemos uns conchegos pelas costas abaixo, para aprendermos a regra do bom viver, e então o meu pai respondeu que estava bem, íamos brigar,

peço-lhes por tudo, camaradas, que não fiquem a pensar mal do pobre do velho que está morto, Deus me perdoe se por causa disto estou a tirá-lo da cova, mas a fome era muita, e então o meu pai, a fingir, deu-me um encontrão, e eu a fingir deixei-me cair, era a ver se os enganávamos, julgávamos nós, mas eles disseram que ou brigávamos a sério, a aleijar, ou íamos presos, nem sei com que palavras hei-de contar o resto, o meu pai ficou desesperado, foi uma coisa que lhe passou pela vista, e bateu-me, doeu-me tanto, não foi a força da pancada, e eu dei-lhe troco da mesma maneira, e daí a um minuto andávamos a rebolar pelo chão, os guardas riam como uns perdidos, e uma vez que pus a mão na cara do meu pai senti-a molhada, não era suor, deu-me uma fúria, agarrei-o pelos ombros e sacudi-o como se fosse o meu maior inimigo, e ele, de baixo, dava-me socos no peito, ao que nós chegamos,

os guardas continuavam a rir, era uma noite assim escura como esta e o frio tanto que cortava os ossos dentro da carne, estava o campo todo em redor, não se levantaram as pedras, será para isto que os homens nascem, quando demos por nós estávamos sozinhos, os guardas tinham-se ido embora, acho eu que por desprezo, era o que merecíamos e então o meu pai começou a chorar e eu embalei-o como se fosse uma criança, jurei que nunca haveria de contar a ninguém, mas hoje não podia ficar calado, não é pelas oito horas e pelos quarenta escudos de salário, é porque é preciso fazer alguma coisa para não nos perdermos, porque uma vida assim não é justa, lutarem dois homens um com o outro, pai e filho, e que não fossem, para divertimento da guarda, não lhes bastava terem armas e nós não, não somos homens se desta vez não nos levantarmos do chão, nem que isto seja por mim, seja por meu pai que está morto e não torna a ter outra vida, coitado do velho, lembrar-me eu de que lhe bati, e a guarda a rir, pareciam bêbedos,

se houvesse Deus teria aparecido naquela hora.

Quando esta voz se calou, levantaram-se os homens todos, nem foi preciso dizer mais palavras, cada qual seguiu seu destino, firmes para o primeiro de Maio, para as oito horas e para o salário de quarenta escudos, e ainda hoje, passados tantos anos, não se sabe qual deles foi que brigou com o próprio pai, quando as dores são muito grandes, os olhos é que não suportam vê-las.”

Bibliografia

SARAMAGO, José. (1987). Levantado do Chão. Editora Caminho. 7ª edição. pp. 334-336.

Jonetices

Publicado por: Milu  :  Categoria: Jonetices, PARA PENSAR

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“A fingida caridade do rico não passa, da sua parte, de mais um luxo; ele alimenta os pobres como cães e cavalos.”

Sartre

 

Ah, como gosto destes cenários…

A caridade, o esplendor da virtude!

Um pequeno excerto da grande obra de Saramago, neste caso do livro “Levantado do Chão”, que tive o prazer de transcrever neste meu, passe a redundância, pequeno pedaço de mundo, que é o meu blog, e que dedico com fervor a todas as senhoras caridosas, virtuosas, jonets do agora e de antanho.

Diz Eduardo Galeano, escritor com mais de 40 livros publicados, que não acredita na caridade. Que acredita, sim, na solidariedade, justificando que a caridade é  vertical: vai de cima para baixo, enquanto a solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. Mas eu vou mais além e digo que não acredito nas boas intenções da caridade, tenho más recordações desta figura. A maior parte das vezes dá-se o que já pouco préstimo tem, quase lixo. Por exemplo, roupas que até para esfregões mal serviriam. Talvez fossem de grande utilidade vestidas em cruzes de pau, cravadas na fértil mãe terra, para espantarem os pardais. Quanto à solidariedade, penso que também não é tão isenta como parece. Num acto solidário busca-se paz de espírito, um se tens mais partilha um pouco desse mais com os outros, fica-te bem. Eu entendo, sim, que ajudar os outros é uma questão de JUSTIÇA. É uma obrigação, é um dever!

 

“Todo o cristão, e que o não seja, há-de ter as suas três refeições por dia, o almoço, o jantar e a ceia, estes nomes ou outros tanto faz, o que é preciso é não estar o prato vazio, ou a tigela, ou, sendo de pão e conduto, sirva este para mais do que simples cheiro. É uma regra tão de ouro como qualquer outra de particular nobreza, um direito humano, tanto de pais como de filhos, para que não tenha de acontecer comer eu uma vez para poderem comer eles três vezes, é certo que mais feitas estas para enganar do que para lhe chegar com o dedo.

As pessoas falam falam,  mas não sabem o que é a precisão, dar volta à arca e saber que a última côdea já foi comida ontem, e mesmo assim levantar a tampa uma vez mais, não fosse ter acontecido o milagre das rosas, aliás até ele impossível, porque nem eu nem tu nos lembramos de ter posto rosas dentro da arca, e para isso era preciso apanhá-las, se julgam que as rosas nascem dos sobreiros, bonito seria, tresvariar assim só por efeito da fome, Hoje é quarta-feira, vai ao prédio Gracinda, desta vez o António não vai. São incitamentos à mendicidade, é esta a educação que os pais dão aos filhos, não se me dar a língua um nó quando tal digo, não me cair ela no chão aos saltos como o rabo de um lagarto, assim aprenderia a ter tento nas palavras e a não falar de barriga cheia, que é conversa porca.

Quarta-feira e sábado são os dias em que Deus Nosso Senhor desce à terra consubstanciado em toucinho e feijão frade. Estivesse aqui o padre Agamedes e haveria de clamar heresia, apelar para a santa inquisição, contra nós que dissemos que o senhor é um feijão e um coirato, mas o mal do padre Agamedes está na pouca imaginação, habituou-se a ver Deus na pastilha de farinha triga e nunca foi capaz de o inventar doutra maneira, tirando a barba grande e o olho escuro do Pai, e a barba pequena e o olho claro do Filho, com esta diferença de cores que caso de fonte e de fetos terá havido na sacra história. Mais sabe daquelas transfigurações dona Clemência, esposa e cofre de virtudes desde Lamberto ao último Berto, que às quartas-feiras e sábados preside à composição das esmolinhas, guiando e vigiando a espessura da fatia de toucinho, escolhido o menos entremeado, melhor ainda se só gordura, mais alimenta, passando por escrúpulos de pura justiça a rasoira na medidinha do feijão, tudo pela caridade de evitar as guerras da inveja infantil, Tens mais do que eu, Tenho menos do que tu. É uma cerimónia linda, derretem-se os corações de santa compaixão, nenhuns olhos ficam enxutos, nem os narizes, que é Inverno agora e sobretudo lá fora, encostados ao prédio estão os garotos de Monte Lavre, que vieram à esmola, vede como padecem, e descalcinhos, doridos, olhai como as meninas levantam um pezinho e logo o outro a fugir do chão gelado, poriam os dois no ar se lhes crescessem em vida as asas que se diz teriam depois de mortas se tivessem a sensatez de morrer cedo, e como puxam o vestidinho para baixo, não de pudor ofendido, que por enquanto os rapazes não reparam nessas coisas, mas de ânsia friorenta. É uma fila à espera, cada qual com a sua latinha na mão, todos de nariz no ar, fungando o ranho, a ver quando enfim se abre a janela do andar e a cesta pendurada desce do céu, devagarinho, a magnanimidade nunca tem pressa, era o que faltava, a pressa é que é plebeia e sôfrega, só não engole os feijões frades mesmo assim porque vêm crus.

Põe o primeiro da fila a sua latinha dentro do cesto, eis a grande ascensão, vai e não tardes, o frio rapa ao longo da parede como uma navalha rebarbada, quem é que pode suportar isto, ora suportam todos em nome do que há-de vir, e então surge a cabeça da criada, lá vem o cesto com a latinha cheia ou meia, para ensinar aos espertos ou novatos que o tamanho da lata não influencia a dadora desta catedral de beneficência. Julgar-se-ia que quem viu isto viu tudo. Pois não é verdade. Dali ninguém arreda pé até que o último receba o seu quinhão e o cesto seja recolhido até sábado. Falta que venha dona Clemência à janela, toda recatada em agasalhos, a fazer o seu gesto de adeusinho e bênção, enquanto o fresco e amorável coro infantil agradece em diversas línguas, salvo os dissimulados que mexem os lábios e basta, Ai senhor padre Agamedes, o bem que me faz à alma, e se alguém jurar que de hipocrisia dona Clemência fala, muito enganado está, que ela é que sente a diferença que na alma lhe vai às quartas e sábados, em comparação com os outros dias.

E agora reconheçamos e louvemos a cristã mortificação de dona Clemência, que tendo ao seu alcance, em tempo e meios de fortuna, o conforto permanente e assegurado da sua alma imortal, a ele renuncia não dando toucinho e feijão frade todos os dias da semana, é esse o seu cilício. Além disso, senhora dona Clemência, essas crianças não podem ir mal habituadas para a vida, havia de ser bonito, quando crescessem, aonde é que chegariam as exigências.”

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Bibliografia

SARAMAGO, José. (1987). Levantado do Chão. Editora Caminho. 7ª edição. Lisboa. pp. 186-189.

Fanfarronice, quanto custas…

Publicado por: Milu  :  Categoria: Fanfarronice..., PARA PENSAR

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“Há esperanças que é loucura ter. Pois eu digo-te que se não fossem essas já eu teria desistido da vida.”

José Saramago

 

 

É este o preço da masculinidade.

A masculinidade como um fardo difícil de carregar – Ser um homem é… demonstrar força e virilidade, mesmo quando se alberga em si um muito de menino.

A força. Mostra o que vales. Arreia!

 

 

“Gabam-se os trabalhadores das pontadas que apanharam nos trabalhos de arroteia. Cada uma delas é medalha para vanglórias de taberna, entre o casco e o copo, Já apanhei tantas ou tantas pontadas a arrotear para Berto e Humberto. Estes é que eram os trabalhadores bons, os que, em tempo de chicote, mostrariam envaidecidos os vergões encarnados, e se sangrarem melhor ainda, gabarolas iguais ao rebotalho das cidades que presumiam de virilidade tanto maior quanto mais cavalos duros ou cancros moles adquirissem no comércio da cama alugada.

Ah, povo conservado na banha ou no mel da ignorância, que nunca te faltaram ofensores. E trabalha, mata-te a trabalhar, rebenta de for preciso, que assim deixarás boa lembrança no feitor e no patrão, ai de ti se ganhas fama de malandro, nunca mais tens quem te queira. Podes ir pôr-te às portas das tabernas, com os teus companheiros de desfortuna, eles próprios te hão-de desprezar, e o feitor, ou o patrão, se lhe deu para isso, olhará para ti com nojo e tu só ficarás sem trabalho, para aprenderes.

(…)

Emenda-te, se ainda vais a tempo, jura que já tiveste vinte pontadas, crucifica-te, estende o braço para a sangria, abre as veias e diz, Este é o meu sangue, bebei, esta é a minha carne, comei, esta é a minha vida, tomai-a, com a bênção da igreja, a continência à bandeira, o desfile das tropas, a entrega das credenciais, o diploma da universidade, façam-se em mim as vossas vontades, assim na terra como nos céus.

(…)

Mas os brinquedos não acabaram. O último a chegar, se tem vergonha na cara, vai querer ser o primeiro a carregar, sempre é uma compensação. Está a armar-se o monte de lenha donde sairá feito o carvão, e tu dizes assim, depois de teres posto uma saca nas costas para não sentires tanto a dor que vem aí,

Levantem lá esse pau, que quem o leva sou eu.

Está o capataz a olhar, é preciso provar aos camaradas que és tão homem como eles, e além disso não podes ficar sem trabalho a semana que vem, tens os filhos, e então dois levantam o pau, não são os teus filhos mas é como se fossem, já eles gemem de esforço, e põem-to em cima dos ombros, tu baixaste-te como um camelo,

parece que já viste algum,

e quando sentes a carga vão-se-te os joelhos, mas fincas os dentes, retesas os rins e aos poucos vais-te aprumando, é um tronco enorme, uma pernada gigantesca, julgas até que tens aos ombros um sobreiro de cem anos, e dás o primeiro passo, que longe está o monte de lenha, os camaradas a olhar, o capataz,

Sempre quero ver se aguentas, se aguentares és um valente. É isso mesmo, ser um valente, aguentar o pau e as omoplatas que rangem, o coração, para ficar bem visto pelo capataz, que irá dizer a Adalberto,

Aquele Mau-Tempo, quem diz Mau-Tempo diz outro nome qualquer, é um valente, puseram-lhe o pau nas costas, e nem o patrão imagina, homem duma cana, foi uma acção bonita.

Será, mas por enquanto só destes três passos.

A tua vontade já é deitar a carga para o chão, mas isso pede-o o corpo violentado.  A alma, se a tens direito, o espírito, se o pudeste parir dentro de ti, dizem-te que não podes, que preferirás rebentar a ficar mal visto na tua terra, fracalhote, tudo menos a vergonha. Grandes declamações se fazem desde há dois mil anos por ter levado Cristo a cruz ao Gólgota, e com ajudas do Cireneu, e deste cruxificado que aqui vai ninguém fala, ele que mal ceou ontem e quase nada comeu hoje, ainda com meio caminho por andar, já os olhos se lhe turvam, é uma agonia, senhores, toda a gente a ver, e gritam,

Ai que não é capaz, ai que não é capaz, e tu deixaste de ser tu, mas vá lá que não chegaste a animal, grande vantagem, porque este deixar-se-ia ir abaixo das pernas, ficaria deitado sob a carga, e tu não, tu és um homem, és o parceiro enganado de uma grande batota universal, brinca, que mais queres, o salário não dá para comer, mas a vida é este jogo alegre, Está quase, ouves dizer, e sentes-te como se não fosses deste mundo, um carrego assim, tenham piedade, dêem aqui uma ajuda, camaradas, todos juntos custará menos a cada um, mas não, não pode ser, é uma questão de honra, nem tu falarias nunca mais na vida a quem quisesse ajudar-te, a este ponto vai o engano de todos vós.

Largas para o chão a pernada no exacto sítio onde ela devia ficar, grande proeza, e os camaradas dão vivas, já não és o último, o capataz diz gravemente, Sim senhor, bonita acção.

As pernas tremem-te, estás aguado como mula que muito carregou, e custa-te a respirar, a pontada, meu Deus, a pontada, és um ignorante, o que tu tens é uma distensão, uma ruptura muscular, não sabes as palavras, pobre besta.”

 

Bibliografia

 

SARAMAGO, José. (1987). Levantado do Chão. Editora Caminho. 7º Edição. Lisboa. pp.73-76.