Entregues a si mesmos

Publicado por: Milu  :  Categoria: Entregues e si mesmos, PARA PENSAR

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“Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respostas para os problemas que as afligem.”

Zygmunt Bauman

Continuando na saga da exploração da obra “Modernidade Líquida” do sociólogo Zygmunt Bauman. 😀

 

“Como assinalava Lessing há muito pouco tempo, no limiar da era moderna fomos emancipados da crença no ato da criação, da revelação e da condenação eterna. Com essas crenças fora do caminho, nós, humanos, nos encontramos «por nossa própria conta» – o que significa que, desde então, não conhecemos mais limites ao aperfeiçoamento além das limitações de nossos próprios dons herdados ou adquiridos,

de nossos recursos,

coragem,

vontade e determinação.

E o que o homem faz o homem pode desfazer.

Ser moderno passou a significar, como significa hoje em dia, ser incapaz de parar e ainda menos ser capaz de ficar parado. Movemo-nos e continuaremos a nos mover não tanto pelo «adiamento da satisfação», como sugeriu Max Weber, mas por causa da impossibilidade de atingir a satisfação: o horizonte da satisfação, a linha de chegada do esforço e o momento da autocongratulação tranquila movem-se rápido demais. A consumação está sempre no futuro, e os objectivos perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não antes.

Ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num Estado de constante transgressão (nos termos de Nietzche, não podemos ser Mensch sem ser, ou pelo menos lutar para ser, übermench); também significa ter uma identidade que só pode existir como projecto não realizado. A esse respeito, não há muito que distinga nossa condição da de nossos avós.

Duas características, no entanto, fazem nossa situação – nossa forma de modernidade – nova e diferente.

A primeira é o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão moderna: da crença de que há um fim do caminho em que andamos, um telos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milénio, algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em todos ou alguns dos seus aspectos postulados: do firme equilíbrio entre oferta e procura e a satisfação de todas as necessidades; da ordem perfeita, em que tudo é colocado no lugar certo, nada que esteja deslocado persiste e nenhum lugar é posto em dúvida; das coisas humanas que se tornam totalmente transparentes porque se sabe tudo o que deve ser sabido; do completo domínio sobre o futuro – tão completo que põe fim a toda a contingência, disputa, ambivalência e consequências imprevistas das iniciativas humanas.

A segunda mudança é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizantes. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade colectiva da espécie humana, foi fragmentado («individualizado«), atribuído às vísceras e energia individuais e deixado à administração dos indivíduos e seus recursos. Ainda que a ideia de aperfeiçoamento (ou de toda modernização adicional do status quo) pela ação legislativa da sociedade como um todo não tenha sido completamente abandonada, a ênfase (juntamente, o que é importante, com o peso da responsabilidade) se transladou decisivamente para a autoafirmação do indivíduo. Essa importante alteração se reflete na realocação do discurso ético/político do quadro da «sociedade justa» para o dos «direitos humanos», isto é, voltando o foco daquele discurso ao direito dos indivíduos permanecerem diferentes e de escolherem à vontade seus próprios modelos de felicidade e de modo de vida adequado.

As esperanças de aperfeiçoamento, em vez de convergir para grandes somas nos cofres do governo, procuram o troco nos bolsos dos contribuintes. Se a modernidade original era pesada no alto, a modernidade de hoje é leve no alto, tendo se livrado de seus deveres «emancipatórios», excepto o dever de ceder a questão da emancipação às camadas média e inferior, às quais foi relegada a maior parte do peso da modernização contínua. «Não existe essa coisa de sociedade», declarou Margaret Thatcher, mais ostensivamente. Não olhe para trás, ou para cima; olhe para dentro de você mesmo, onde supostamente residem todas as ferramentas necessárias ao aperfeiçoamento da vida – sua astúcia, vontade e poder.

E não há mais «o Grande Irmão à espreita»; sua tarefa agora é observar as fileiras crescentes de Grandes Irmãos e Grandes Irmãs e observá-las atenta e avidamente, na esperança de encontrar algo útil para você mesmo: um exemplo a imitar ou uma palavra de conselho sobre como lidar com seus problemas que, como os deles, devem ser enfrentados individualmente. Não mais grandes líderes para lhe dizer o que fazer e para aliviá-lo da responsabilidade pela consequência dos seus atos; no mundo dos indivíduos há apenas outros indivíduos cujo exemplo seguir na condução das tarefas da própria vida, assumindo toda a responsabilidade pelas consequências de ter investido na confiança nesse e não em qualquer outro exemplo.

(…).

A apresentação dos membros como indivíduos é a marca registada da sociedade moderna. Essa apresentação, porém, não foi uma peça de um ato: é uma actividade reencenada diariamente. A sociedade moderna existe em sua actividade incessante de «individualização», assim como as actividades dos indivíduos consistem na reformulação e renegociação diárias da rede de entrelaçamentos chamada «sociedade». Nenhum dos dois parceiros fica parado por muito tempo. E assim o significado da «individualização» muda, assumindo sempre novas formas – à medida que os resultados acumulados de sua história passada solapam as regras herdadas, estabelecem novos preceitos comportamentais e fazem surgir novos prémios no jogo. A «individualização» agora significa uma coisa muito diferente do que significava há cem anos e do que implicava nos primeiros tempos da era moderna – os tempos da exaltada «emancipação» do homem da trama estreita da dependência, da vigilância e da imposição comunitárias.

(…).

Beck também estabeleceu o retrato da individualização liberta de suas roupagens transitórias, hoje mais obscurecedoras que clarificadoras da compreensão (antes e acima de tudo, liberta de suas visões do desenvolvimento linear, uma progressão assinalada ao longo dos eixos da emancipação, da crescente autonomia e da liberdade da autoafirmação), expondo assim para exame a variedade de tendências à individualização e seus produtos, e permitindo uma melhor compreensão das características distintivas de seu estágio presente.

Resumidamente, a «individualização» consiste em transformar a «identidade» humana de um «dado« em uma «tarefa» e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das consequências (assim como os efeitos colaterais) de sua realização. Em outras palavras, consiste no estabelecimento de uma autonomia “de jure” (independentemente de a autonomia de facto também ter sido estabelecida).

Os seres humanos não mais «nascem» em suas identidades. Como disse Jean-Paul Sartre em frase célebre: não basta ter nascido burguês – é preciso viver a vida como um burguês. (…). Precisar tornar-se o que já se é é a característica da vida moderna – e só a vida moderna (não «da individualização moderna», a expressão sendo evidentemente pleonástica; falar da individualização e da modernidade é falar de uma e da mesma condição social). A modernidade substitui a determinação heterónima da posição social pela autodeterminação compulsiva e obrigatória.

(…).

Retrospectivamente pode-se dizer que a divisão em classes (ou em géneros) foi um resultado secundário do acesso desigual aos recursos necessários para tornar a autoafirmação eficaz.

(…).

Não se engane: agora, como antes – tanto no estágio leve e fluido da modernidade quanto no sólido e pesado -, a individualização é uma fatalidade, não uma escolha. Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização está decididamente fora da jogada.

(…).

E,  no entanto, se ficam doentes, supõe-se que foi porque não foram suficientemente decididos e industriosos para seguir seus tratamentos; se ficam desempregados, foi porque não aprenderam a passar por uma entrevista, ou porque não se esforçaram o suficiente para encontrar trabalho ou porque são, pura e simplesmente, avessos ao trabalho; se não estão seguros sobre as perspectivas de carreira e se agoniam sobre o futuro, é porque não são suficientemente bons em fazer amigos e influenciar pessoas e deixaram de aprender e dominar, como deveriam, as artes da autoexpressão e da impressão que causam. Isto é, em todo o caso, o que lhes é dito hoje, e aquilo em que passaram a acreditar, de modo que agora de comportam como se essa fosse a verdade.

(…)

Há um desagradável ar de impotência no temperado caldo da liberdade preparado no caldeirão da individualização, essa impotência é sentida como ainda mais odiosa, frustrante e perturbadora em vista do aumento de poder que se esperava que a liberdade trouxesse.”

 

 

Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt. (2001). Modernidade Líquida. Zahar. Rio de Janeiro. pp. 40-48