“Ninguém pode convencer ninguém a mudar. Os portões da mudança só podem ser abertos de dentro para fora.”
Stephen Covey
“E você pode-se libertar dos seus traços hereditários, códigos culturais, crenças sociais, e provar de uma vez por todas que todo esse poder no seu interior é maior do que o poder do mundo.”
Michael Bernard Beckwith
A ideia para elaborar este post surgiu depois de ter assistido à Conferência Alma de Mulher promovida pela Organização Rotary Club da cidade da Marinha Grande, que teve lugar no edifício da Resinagem situado na mesma cidade.
As oradoras convidadas foram a Dra. Odete Isabel, primeira mulher eleita como Presidente de Câmara em Portugal e a Dra. Isabel Gonçalves, Presidente da Associação Mulher Séc. XXI. Ambas dissertaram sobre o tema (Des) Igualdade de Género: Que Realidade?, ao qual a Conferência estava subordinada, a que eu acrescentaria como subtítulo esta simples frase:
A Dra. Odete Isabel começou muito bem o seu discurso ao declarar que não esperassem dela o respeito pela figura do politicamente correcto. Esta declaração mereceu de imediato a minha consideração.
Na verdade, o politicamente correcto é uma forma de “domesticação”, dominação. A pessoa que age habitualmente de acordo com o politicamente correcto é alguém que abdicou de pensar. Limita-se a obedecer. Obedece de boa mente ao que está estabelecido, sem nunca se perguntar se está certo. É esta ausência de espírito crítico que convém à ordem estabelecida.
Mas é por serem raras as pessoas que se rebelam contra a figura do politicamente correcto que me leva a pensar que a vasta maioria nem sequer tem conhecimento do que consiste o politicamente correcto.
O que vem a ser, afinal, o politicamente correcto?
O politicamente correcto começou por ser uma política que consistia em tornar a linguagem neutra, eufemística, no sentido de evitar que possa ser ofensiva para certas pessoas ou grupos sociais e está intimamente associado a conceitos como o multiculturalismo e o relativismo cultural.
Exemplos:
⇒ No inglês norte-americano, o politicamente correcto levou ao surgimento de expressões como “afro-americano” para referir-se ao indivíduo negro nascido naquele país, como forma de identificá-lo pela ascendência e não pela cor da pele.
⇒ A substituição do comum “Tribunal Europeu dos Direitos do Homem” pela frase neutra em termos de género de “Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”. Assim, o conceito filosófico do politicamente correcto é que ao evitar a utilização destes termos discriminatórios estaremos a trabalhar para uma sociedade mais inclusiva e igualitária.
Mas o verdadeiro cerne da questão está no problema que desta filosofia do politicamente correcto adveio. Ou seja, com a passagem do tempo, o politicamente correcto passou a nortear as práticas sociopolíticas assumindo características totalitárias.
De certo modo, pode-se dizer que a figura do politicamente correcto nasceu como consequência da decadência do espírito crítico, tornou-se de uso comum e é normal que as pessoas se deixem contaminar, mas sem que estejam conscientes disso.
O politicamente correcto apresenta-se sempre com argumentos inocentes e de fácil assimilação. Mas é uma filosofia muito débil e, como tal, não resiste a uma enérgica aplicação do espírito crítico. Para tal, não devemos ser submissos aos sentimentos e opiniões generalizadas:
Para completar e corroborar o já descrito deixo aqui algumas frases que retirei deste site aqui, que exemplifica muito bem até onde pode chegar uma conduta politicamente correcta:
- “A pessoa “politicamente correta” é aquela que aprendeu e pratica a moral da civilização pós-moderna.”
- “Ser “politicamente correto” é ser diplomático sempre. É não enfrentar nada, sempre em nome da boa educação.”
- “É ser contra falar qualquer coisa sobre qualquer tema controvertido. Têm suas opiniões, mas em público nada dizem sobre nada.”
- “Assim, são grandes estetas. Vivem de aparências e de elegâncias. Controlam tudo o que dizem a fim de não serem interpretados como sendo “politicamente incorretos”. São os reis da imagem e do som.”
- “A pessoa “politicamente correta” é mestre em comer galinha enquanto desmaia se vir cortarem-lhe a cabeça para preparar a panelada. Comem carne de animal, desde que não vejam a “maldade” da morte dele.”
- “O “politicamente correto” é a ética dos que romperam com a moral careta e assumiram uma outra moral, com fachada sofisticada, com atitude de natureza psicologicamente evoluída, com mil etiquetas relacionais, com modos brandos e finos, e com total busca de isenção em relação a tudo o que lhes roube o chão.”
- “Todo ser “politicamente correto” é frouxo. Não se pode contar com tais pessoas para nada. Elas só estão ao seu lado se der prestígio, pois, se algo acontecer de ruim a você, logo o espírito de auto-preservação deles haverá de se manifestar. Além de que eles mesmos haverão de demonstrar seu moralismo “politicamente correto”, o qual, é contra o moralismo dos antiquados, mas é moralismo assim mesmo. Sim, trata-se de um moralismo educado, porém igualmente judicioso; só que manifesto com carinhas sorridentes e simpáticas.”
Ora, toda esta minha explanação do conceito da figura do politicamente correcto não surgiu aqui por acaso, mas antes com uma finalidade: a de advertir as pessoas que irão prosseguir a leitura deste post, para que se libertem de atavismos e abram o espírito para novas ideias, pois torna-se muito difícil conceber novas ideias, novos conhecimentos, senão se for capaz de pôr em causa tudo aquilo que se tem como verdadeiro, que podemos classificar como chamados obstáculos epistemológicos.
Existe um livro da autoria de Oli Doyle que ao fazer a introdução das práticas de Mindfulness reza assim:
Faço minhas as suas palavras! Ora, se é da natureza do debate público que este seja centrado em questões e controvérsias, pois aqui vai:
Resumo, muito resumido, da Conferência
Os temas abordados na Conferência foram relacionados com a diminuta igualdade e muita desigualdade entre o homem e a mulher, que teima em permanecer na nossa sociedade. O facto desta estar organizada de uma forma que possibilita ao homem ter mais tempo para ele, que muitas vezes é dedicado para o seu desenvolvimento pessoal, enquanto a mulher tem muito menos tempo só para ela, uma vez que está ocupada com a casa e com os filhos. Mesmo que os homens prestem ajuda, a verdade é que não passa disso mesmo, de uma ajuda. Persiste a ideia de que é à mulher que pertence o “grosso da coluna” dos trabalhos domésticos.
Alguém interveio para dizer que se este estado de coisas permanece também é por culpa da mulher, que colabora ao aceitar este papel que lhe é socialmente atribuído. Concordo plenamente com esta opinião e vou até mais longe: Muitas mulheres não só aceitam este “desígnio” como o desempenham de bom grado. É um comportamento que resulta da interiorização da ideia de que à mulher são mais próprias certas tarefas, que assim se converteram numa sua responsabilidade. Cuidar da casa é uma delas.
A atestar esta premissa esteve a intervenção de uma jovem senhora, que se levantou da cadeira para num acto de auto-elogio proclamar: ”sou uma zelosa dona de casa, boa profissional etc, etc”, prosseguindo num arrazoado que deu a entender que gosta muito de ser:
boa dona de casa, boa profissional, boa mãe, boa esposa, ou seja: boa em tudo!
Posto isto uma questão se impõe: Acaso um desempenho assim é exigível? Acaso é sensato querer ser isto tudo? Até que ponto é que uma mulher ao aceitar desempenhar orgulhosamente o papel de “zelosa dona de casa, boa profissional, etc, etc, não estará a ser o seu próprio carrasco? E, por conseguinte, o carrasco e empedernido juiz das outras mulheres que ousam trair o ideal imposto pela ordem masculina que nos manipula? E aquelas que ao invés deste modelo desejam e exigem tempo para si, tempo para o seu desenvolvimento pessoal são o quê? Umas desleixadas? Egoístas porque se atrevem a pensar nelas?
Creio que é necessário chamar a atenção que este ideal de mulher, boa dona de casa, boa esposa, boa profissional, etc, etc, não é de forma alguma um ideal desejado pela mulher, mas antes o ideal de mulher desejado pelo homem de antanho, porque lhe convinha que assim fosse, para melhor ser servido, e que nos foi sendo imposto.
Vejamos o que dizem os entendidos e entendidas no assunto:
⇒ Na Conferência: ⇐
“É urgente uma mudança de paradigma, ou seja, a negação das normas, comportamentos e práticas que reforçam os tradicionais papéis sociais inerentes ao homem e à mulher.”
Em ALBORCH (2004)
“Se partirmos da hierarquia e centralidade dos homens, as mulheres estão na periferia; o masculino, a masculinidade, é a norma, o referente, o universal. Todas as relações se configuram – o sermos aceites, amadas – a partir da supremacia dos homens. Das mulheres espera-se que sejam femininas, submissas, discretas, para não dizer invisíveis. O seu destino consiste em agradar e dar prazer. «A ordem da natureza quer que a mulher obedeça ao homem», diz Rousseau no Emílio. Em resumo: eles querem-nos bonitas e alegres e acham-nos frívolas. Pedem-nos submissão e complacência e, assim, apodam-nos de inferiores e fracas. Recorde-se as palavras de sor Juana Inés de la Cruz: «fazem-nos como querem e desprezam-nos pelo que fizeram de nós»” (p. 27).
“Como diz Celia Amorós, somos vistas como um estereótipo, um modelo andante prefigurado que pouco tem a ver connosco; são-nos atribuídas características de género e o que vale para uma vale para todas. «A mulher é…», «As mulheres são…», de Salomão aos nossos dias. Estamos no mundo para cumprir funções pré-estabelecidas e, para isso, devemos estar disponíveis, ser substituíveis, permutáveis, seres para os outros, sem personalidade individual.”
“Cada mulher deve singularizar-se. A batalha pela unicidade, por ser única e irrepetível, ser uma e não a outra, é um dos problemas mais profundos com que as mulheres se defrontam. Exige que se viva numa tensão constante e nem sempre consciente, pois o que temos aprendido é contrário à autonomia; por isso, precisamos de desaprender ao mesmo tempo que aprendemos. Sem dúvida, pode acabar por ser uma tensão enriquecedora, se a encararmos como um processo que nos há-de levar a sermos reconhecidas como seres humanos, únicos e distintos. «Preciso ser independente para me encontrar e também para encontrar a relação adequada com aqueles que me rodeiam», diz, com toda a clareza, a Nora de ibsen (Casa da Boneca)” (p. 28).
“Vivemos mergulhadas na comparação, e os mecanismos de avaliação são sempre comparativos. Estamos constantemente a medir-nos, é algo que integrámos na nossa consciência. Ao escolher também se exclui. (…). Mas como nos explica Marcela Lagarde, quando nos envolvemos numa competição permanente, saímos sempre prejudicadas: se perdemos, é por termos perdido; se ganhámos, porque pomos em marcha mecanismos internos de menosprezo que nos envilecem. Nesta avaliação, estamos sempre nas mãos dos outros” (p.28).
“As mulheres interiorizaram os hábitos e rotinas que conformam «o esperável» delas, apropriam-se de sentimentos e pensamentos que organizam as suas vidas no dia a dia, como se surgissem exclusivamente das suas decisões e escolhas. A literatura, o cinema, o teatro e os meios de comunicação patenteiam constantemente esta assunção de papéis: a mulher chega a pensar que a sua posição no mundo é a que é em virtude de uma «decisão própria» e nem sequer consegue compreender os condicionamentos da sua suposta escolha” (p. 41).
“Por diferentes vias, cada indivíduo não só assimila os papéis como os activa e encarna no seu comportamento, reproduzindo o que dele se espera como homem ou mulher. O que é primordial é registar como se fosse natural algo que constitui um produto social, fruto de uma divisão e de uma partilha de responsabilidades entre homens e mulheres. Os papéis aprendem-se desde muito cedo; interiorizam-se no ambiente afectivo (a família é o lugar onde se inicia a aprendizagem); com eles, interioriza-se também todo o universo simbólico implícito. No lar, as filhas presenciam uma distribuição de tarefas que não são neutras. Observam a mãe e a rede de mulheres do seu habitat a organizar um espaço íntimo, como responsáveis pelo mesmo, embora tenham outras actividades, de tipo remunerado. Sabem da sua tolerância ao homem e comprovam que elas não solicitam reciprocidade na actuação masculina. Por isso a autora fala de domesticidade como atitude, a qual não se limita apenas ao conjunto de tarefas e à responsabilidade que arrasta, mas se manifesta como predisposição para privilegiar as exigências alheias” (p. 43).
“O medo é o pior inimigo das mulheres, e não é por acaso que nos ensinaram a recear. Serve para nos paralisar, para nos manter à margem, para minar as nossas energias e a nossa atenção, para limitar em nós a imaginação e a criatividade. Se esperamos não ter medo, talvez esperemos de mais, diz Lerner. Ensinam-nos a pensar de um dado ponto de vista, como se fosse possível separar os indivíduos do sistema de relações em que funcionam.
Muitas mulheres não puderam pensar noutras possibilidades devido a condicionalismos externos, internos, ou simultaneamente das duas espécies. As mães/esposas declaram-se felizes com a entrega, a generosidade, a abnegação, e obtêm as suas satisfações. São respeitáveis e, muitas vezes, queridas: estamos-lhes gratos pela existência que nos deram, por alguns ensinamentos, pelo afecto. Têm a sua justificação vital em ser para os outros e foram perpetuando o seu papel através da família. Não quer dizer que não possamos reconhecer os cativeiros, exaustivamente estudados por Marcela Lagarde, e não critiquemos a transmissão de valores levada a cabo pelas cativas de todos os tempos. No entanto, muitas mulheres, silenciosamente, foram-se revoltando e conseguindo avanços pessoais e colectivos.
Mas não são só as mães/esposas que carecem de consciência de género, e não são todas, nem sempre; há ainda as mulheres que Celia Amorós denomina «bolseiras desqualificadas», aquelas que se desligam de tudo o resto e se esquecem da sua procedência sem se aperceberem de que, embora não queiram recordá-lo, embora não lhes pareça relevante ou nunca tenham «sentido» a discriminação, os seres humanos são conceptualizados, em primeira instância, pela sua condição sexual» (pp. 44-45).
O sexismo é uma forma de desprezo pelas mulheres baseada na crença de que um sexo é, por natureza, superior ao outro. As mulheres são vistas como seres inferiores que inspiram desdém e menosprezo, razão pela qual são desvalorizadas. A desvalorização nem sempre é acompanhada de aversão, e nem sempre as mulheres foram representadas como fonte de perigo. No entanto, quando saem desta ordem, são tidas como seres ameaçadores que põem em perigo a estabilidade social; para esconjurar o temor que causam, são denegridas e vituperadas (recordemos no que há de paradoxal no receio do inferior). O sexismo é um conjunto de valores e interpretações, acções e atitudes em relação ao que se passa no mundo. O machismo, uma dimensão de sexismo, é a exaltação ideológica intelectual, erótica e jurídica dos homens e do masculino.
A misoginia pode ser definida como uma forma de rancor ou hostilidade às mulheres, que, por vezes, atinge manifestações violentas. Mais um passo, já no terreno do patológico, assiste-se à ginecofobia, que é o ódio às mulheres, inspirado na crença de que são seres perigosos e malignos, a quem se teme e se deseja mal, por se achar que são dotados de um poder superior, o qual é entendido como uma ameaça.
O antifeminismo é a oposição à emancipação das mulheres. Distingue-se da misoginia pelo facto de tentar justificar-se por meio de argumentos e de ser menos visceral. Articula-se com o feminismo de que pretende ser o antídoto e um exorcismo. Convém esclarecer que partidários e adversários da emancipação não lutam no mesmo terreno e, por isso, não usam as mesmas armas. Frequentemente, o antifeminismo baseia-se na misoginia, mas o feminismo não se baseia no ódio aos homens. (…). O enorme poder das mulheres sobre a vida sempre causou inquietação aos homens. Se as mulheres deixarem de ser mulheres, como poderão os homens continuar a ser homens? Estes temores, pessoais ou colectivos, reais ou imaginários, levam a erguer sólidas barreiras contra o feminismo” (pp. 46-47).
Maternidade
“As autoras de La red invisible assinalam que o amor maternal, se for excessivo, pode levar a uma simbiose e, se for insuficiente, a uma carência. De facto, a mãe idealizada e a mãe demonizada são duas faces da mesma moeda. Ambos os conceitos mitificam a maternidade, ambos são desumanizantes e, por isso, servem para dificultar às mães a tarefa de serem mães. Nem os ídolos nem os demónios são reais ou acessíveis, ou capazes de construir a sua própria realidade. Tanto a idealização como a demonização mantêm as mães num lugar em que o falhanço está garantido.
Todos começamos a vida muito ligados às pessoas que nos rodeiam. Os homens são incitados a sair desse estado de existência, enquanto as mulheres são obrigadas a permanecerem nele e, à medida que crescem, a transferir a sua afeição para uma figura masculina.
Segundo várias autoras, na socialização de meninas e meninos, o contexto familiar reforça a diferenciação genética por meio da escolha de roupas, actividades, jogos… Das meninas espera-se que sejam positivas, organizadas, obedientes e educadas; enfatiza-se o futuro papel maternal e doméstico, pelo que são orientadas para o cuidado, estimuladas a introjectar o feminino. Os custos pessoais, emocionais e sociais desta educação enviesada são muito elevados, já que assim se pode obstar ao desenvolvimento de capacidades e aptidões que não estejam de acordo com o modelo genético.
Já os meninos são tratados desde o princípio como únicos, como alheios à mãe. Estão familiarizados com a alteridade e com a diferença (o processo de diferenciação do eu segue caminhos diferentes em meninos e meninas). A atitude de oposição sustenta e reforça a identidade masculina, estimula o processo de diferenciação. Enquanto as mulheres procuram a identidade através da ligação aos outros, os homens fazem-no tentando distinguir-se dos outros” (pp. 69-69)
“Houve épocas em que vigorou, de um modo especial, o ideal de altruísmo e preterimento de si que K. Bouldong designa por «armadilha do sacrifício». As mães reprimiram uma enorme quantidade de sonhos e fantasias para não terem de enfrentar um conflito demasiado agudo, insuportável. Essa geração de mães adaptou-se em última análise, à mística da época. Eram muito escassas as possibilidades de se desenvolverem noutro tipo de projecto pessoal, e muitas as ameaças de censura pelo ambiente social (…).
As nossas mães viviam na impossibilidade de se exprimirem abertamente, porque o que tinham interiorizado como norma imposta era o imperativo social. Nem elas próprias podiam compreender o que se passava consigo e, por conseguinte, também não podiam transmiti-lo claramente às filhas. Por isso a sua maneira de ensinar estava impregnada de confusão e de aspectos contraditórios. Ser mãe tanto podia e pode ser uma maravilha, a coisa mais gratificante do mundo, como a mais escravizadora e frustrante. Depende igualmente dos momentos, das situações, das oportunidades, dos recursos.
Entre levar uma vida solitária e sentir-se marginalizada ou o ideal prescrito socialmente, as mulheres escolheram a segunda hipótese. Encerradas na esfera doméstica, faltava-lhes a hipotética troca enriquecedora do trabalho socialmente reconhecido; as suas companhias eram limitadas, sem vínculos de paridade que pudessem contribuir para o seu desenvolvimento social; mergulhadas nos círculos repetitivos do quotidiano, as suas conversas giravam à volta dos filhos, do marido e da casa; careciam dos requisitos básicos para o desenvolvimento de uma vida plena.
A dedicação das mães à esfera familiar e doméstica teve consequências afectivas muito especiais nas filhas. Ser era igual a ser mãe com dedicação exclusiva.
A mãe sente que é o que faz, mãe e dona de casa. Assim, a dívida torna-se mais difícil de saldar do que se na família se transmitisse a noção de maternidade como uma forma de trabalho. Não é reconhecida nem se reconhece como trabalhadora e, assinala Burin, para se fazer valer sente-se impelida a chamar a atenção para a sua dedicação” (pp. 70-71).
“O exercício da maternidade não está isento de conflitos e patologias, de insegurança e ansiedade, de sentimentos de culpa e sobreadaptação. Ao lado dos mitos da perfeição e do sacrifício, encontramos os que incitam a mãe a procurar satisfação na filha e não em si própria. E, assim como as filhas têm a impressão de que não houve condicionalismo das mães sobre elas, também não deverão existir condicionalismos em sentido contrário.
Para o feminismo, a maternidade foi sempre um tema central, sujeito a diferentes interpretações quanto ao seu valor. Há anos, Simone de Beauvoir alertava para os perigos da identificação com as mães e com a maternidade: «O amor maternal nada tem de natural.» Foi o princípio daquilo que passou a chamar-se «a mulher desmaternizada». Ou seja, deve pôr-se em causa a ideia da necessidade, obrigação, dever ou imperativo moral, por parte da mulher, de ser mãe. O mito da maternidade não passa, segundo Elizabeth Badintar, de uma forma de alienação ou de escravatura. (…).
Penso que atingimos um momento de equilíbrio: conceptualmente, a maternidade não é o único destino, é escolhida e responsável. Não se trata de um instinto, mas de um desejo. Muda a nossa vida, as nossas emoções e prioridades, a realidade quotidiana, o espaço e o tempo. E, como sempre, depende…
A aspiração a cumprir o papel de «boa mãe» ou a representá-lo gerou grande inquietação em mulheres de diversas culturas e gerações. Ser-se boa, para as mulheres, é um valor importante, diz Alicia Lombardi. Não só o foi para as nossas mães, como também para nós é um ideal em cuja busca podemos ir deixando pelo caminho os nossos desejos mais caros. A cultura criou uma imagem de uma mãe capaz de dar tudo, fonte de compreensão e bondade, mas, na prática, a menina encontra-se com uma adulta carenciada que transmite as suas carências. Estes fantasmas de bondade podem sustentar toda uma teoria altruísta da vida que, no fundo, esconde uma enorme dificuldade de alcançar gratificação pessoal. A imagem cultural da bondade feminina encarrega-se cuidadosamente de reforçar esta ideologia, continuação da «armadilha do sacrifício» em que caíram as nossas mães. Todo o peso dos fantasmas inconscientes reforça a ideia de que uma pessoa é boa quando não pede nada. Pois é: se obedecermos ao ideal, podemos sentir-nos boas, mas não valiosas. Os mitos falam de perfeição e sacrifício e, com demasiada frequência, as mulheres vêem-se obrigadas a escolher entre falsas dicotomias, que, no fim de contas, as levam a renunciar aos seus próprios interesses ou a adiá-los, sem horizonte imediato de realização” (pp. 72-73).
“O conflito de papéis, de que as mulheres sofrem, relaciona-se, por um lado, com as diferentes obrigações a que estão sujeitas e, por outro, com as expectativas a respeito das suas próprias vidas. Traduz-se, por exemplo, em sentimentos de mal estar, culpa ou sobreadaptação, que as acometem quando desejam ou necessitam trabalhar fora de casa e ao mesmo tempo são mães. Ser uma «boa mãe» entra em contradição com outras necessidades e expectativas, relacionadas com o mundo profissional. As mulheres interiorizaram as normativas, o que as leva a viver conflitualmente o cumprimento dos diferentes papéis” (p. 76).
A culpa
“A nossa amiga e mestra Marcela Lagarde incita-nos a sair do paradigma da culpa, a mudar de valor. A partir da ideologia da culpa, não se analisa, acusa-se. Cada uma constitui-se em tribunal inquisitorial das outras, e dá a impressão de que a auto-estima aumenta quando se culpabiliza outra mulher. Tudo o que é emancipatório para as mulheres é censurável para a moral tradicional, diz Marcela Lagarde; o que nos permite sair do cativeiro só pode ser mau. Estamos programadas para nos sentirmos responsáveis por outras pessoas e para as salvar, em vez de deixarmos que cuidem de si. Uma mulher é culpada porque se preocupa consigo própria. Acusam-na de egoísmo: os outros são prioritários. Se não se deixa invadir, também se sente culpada. Culpadas por ter abandonado (e furiosas porque nos abandonaram). Culpadas pelos nossos êxitos. Culpadas pelo crescimento próprio. Culpadas pelo desejo de autonomia, de fruição sexual, de prazer, de saber, de poder, ou seja, por todos os desejos ligados ao «ser para si». Sentimo-nos culpadas por nos refrearmos umas às outras, e enfurece-nos vermo-nos coarctadas. Cada mulher sente que a auto-realização tem um preço: os sentimentos de culpa que gera em si, enquanto noutras mulheres desperta sentimentos de inveja, competição e ira” (pp. 82-83).
(…) lamentava o facto de as mulheres terem assumido que, apesar da sua entrada no mundo profissional, continuam a ser depositárias «míticas» da paz e da ordem no lar. «Temos uma atitude que integra a nossa identidade doméstica e materna.» A consequência destas tarefas sobre-humanas é a culpa: «Culpabilizamo-nos por não cumprir na perfeição os ditames externos e as nossas próprias prioridades.»
Ao ser interiorizada, a responsabilidade doméstica torna-se um encargo iniludível. As mulheres pagam um elevado tributo quando sentem que delegam as suas responsabilidades, pois o sentimento de culpa não tarda a aparecer, seguido de uma sensação de estranheza e perplexidade por não se adaptarem «ao que as outras mulheres fazem». Trata-se de uma preocupação que não se desvanece apelando aos condicionamentos sociais, uma vez que se insere na estreita moldura do que é pessoal, como se se tratasse de um défice individual e não de uma poderosa pauta estrutural; daí o mal-estar que gera. Afastar-se das normas expõe o sujeito a um primeiro acto de deslealdade. Nesta situação, a colisão entre as injuções do papel social e o desejo de obter melhor rendimento é inevitável. Ao invés, o comportar-se de acordo com as expectativas permite a compensação do reconhecimento e a atribuição de uma identidade. Por isso, é preciso insistir na necessidade de representações culturais renovadas da mulher que trabalha fora de casa, susceptíveis de legitimar formas de relação não culpabilizante nem contraditória” (pp.92-93).
“Frequentemente (…), a força e o protagonismo das mulheres são menosprezados devido à carga emocional, uma vez que, como vimos, a sociedade «desprestigia os sentimentos, desconfia deles e transforma-os em algo de patológico.» Por outro lado, o impulso que nos move a exprimir-nos é um elemento decisivo contra a ideia da mulher-objecto. Exprimir-se é, também, queixar-se, dizer não, ter opinião, falar livremente… No dizer da poetisa Adrienne Rich:
«A mulher criativa é a única que recusa obedecer, que soube dizer não, que não está ao serviço dos outros»” (p. 101).
“Outra sequela deixado por séculos de censura é a excessiva auto-exigência em que caiem muitas mulheres. Também nós sabotamos o nosso êxito, boicotamo-nos; talvez não seja uma atitude consciente ou propositada, mas parece não restar dúvida de que há mulheres com tendência para boicotar as suas próprias carreiras. As mulheres costumam pedir a si mesmas mais do que seriam capazes de exigir aos outros. São as censoras mais implacáveis quando cometem erros ou não conseguem ser tão oportunas como conviria. O nível de exigência de si e das outras é muito elevado. Aquelas que não se perdoam nada apropriaram-se da severidade com que a sociedade julga os comportamentos femininos não tradicionais. No imaginário social comummente aceite, as mulheres precisam de provar a sua infalibilidade para merecer o acesso à esfera pública” (p. 118).
“Para sermos solidárias, para podermos partilhar a boa estrela, previamente ou ao mesmo tempo, precisamos de ser autónomas. De outro modo, permaneceremos juntas, sim, mas devido à dependência, à fusão, fonte de tantos males entre nós, mais do que à consciência da nossa capacidade de nos enriquecermos reciprocamente. Partilhar a boa estrela requer apreço pelas qualidades que cada uma tem, estima pelo que sabemos e podemos fazer bem, sem nos suplantarmos real ou mentalmente.
E a crença firme de que, se tu ganhas, também eu ganho, o que não equivale a praticar o igualitarismo indiscriminadamente“ (p. 120).
“O acesso de um número significativo de mulheres a novos tipos de trabalho não introduziu a sensibilidade feminina no mundo laboral; pelo contrário, vemos como os valores masculinos são aplaudidos e como as mulheres são incitadas a ser tão agressivas como os homens. Paradoxalmente, os valores masculinos saem reforçados quando as mulheres os põem em prática” (p. 122).
“Precisamos de encontrar o nosso próprio caminho na esfera profissional. Penetramos num meio que tem uma visão muito especial da competição, da competitividade; a deferência e a categoria estão codificadas; não se pode mostrar vulnerabilidade nem compaixão, dizem. «As mulheres entraram em massa no mercado de trabalho sem questionar as suas regras», diz María Ángeles Sallé. «Procurámos tão arduamente participar e ser levadas em conta que nos foram necessários grandes esforços para mostrar que podemos ingressar nas mesmas condições que os homens.» Mas o mundo em que habitualmente se movem os homens não é o nosso. Nesse mundo não emocional, os laços femininos correm sérios riscos de se romperem. No mundo de cada mulher para si, os velhos sistemas de apoio mútuo enfrentam o perigo de se desintegrar de um modo dramático” (p. 126).
“Não houve feminização dos homens; houve, sim, masculinização das mulheres, ao que se diz” (p. 168).
“Celia Amorós recorda que os poderes patriarcais envolvem pactos explícitos e implícitos entre homens ajuramentados. Os frates, os irmãos, forjavam pactos. O primeiro pacto masculino consistiu em excluir as mulheres da fatria, o núcleo das relações de aliança entre homens baseada no monopólio do poder. O passaporte para nela ingressar era a aliança assente no sexo. Assim, de acordo com esta concepção, a fraternidade, que entretanto se tornou um valor da moral pública, só deveria ocorrer entre homens. Não esqueçamos que no pacto masculino originário também havia hierarquias e reproduzia-se a dialéctica dominador-dominado em função de variáveis como a classe, a etnia e outras. Mas o que nos interessa aqui é repisar que, em virtude do pacto original, a mulher foi reduzida à condição de bem apropriável e intermutável e foi-lhe negada a categoria de ser humano; fomos qualificadas de idênticas e indiferenciadas, e impediu-se alianças entre nós que pudessem ameaçar o poder masculino, de acordo com as posições intelectuais que abriram espaço à misoginia e ao sexismo, como vimos. Em todas as culturas, o nosso domínio era o da pureza.
A pureza como mandamento, como obrigação, é uma resposta religiosa (no mundo cristão ocidental, a pureza a imitar é a Virgem Maria) e uma resposta social (as virgens pagãs, na Grécia ou em Roma). A pureza é uma virtude moral e uma virtude sexual, mas, acima de tudo, é o método para nos afastarmos do mundo e não participarmos nele: em oposição à pureza, a contaminação. A mulher pura é a que não se ocupa do mundo, permanece alheia à sociedade: está em casa, não tem vizinhas nem amigas, não se contamina com o teatro ou com os romances, é beatífica e entrega-se inteiramente aos cuidados ao marido e filhos.
Eles diziam o que éramos, o que devíamos fazer, e classificavam-nos em boas ou más. Em épocas mais próximas, esta negação traduziu-se na exclusão feminina do conceito de cidadania. Proibiram-nos que nos aliássemos para fazer frente à marginalização e à violência, que colocássemos questões à colectividade. Sempre, ao longo dos tempos, se entravou qualquer tipo de aliança que pudesse enfraquecer o poder varonil; por isso, a nossa experiência neste terreno é parca. Éramos afastadas ou dissuadidas de alianças entre nós, a fim de nos mantermos isoladas e quietas no papel previsto, e para isso fomentava-se a rivalidade. No modelo tradicional, os homens estavam muito interessados em garantir o nosso desencontro. Em contrapartida, era-nos permitido juntarmo-nos para guardar a tradição, para partilhar o sofrimento, para não sair dele. A partir da identificação com esta ideologia, é muito difícil às mulheres colaborar umas com as outras.
Qualquer discrepância em relação ao dever ser transforma-se em traição ao nosso género e, muitas vezes, são as próprias mulheres que o assinalam. Ensinaram-nos a ser intolerantes com as diferenças” (pp. 180-181).
Anita Gomes em “O Resgate do Feminino Sagrado“
“(…) essas agressões, essa vulgarização que muitas vezes a própria mulher se torna cúmplice (…)”.
“O movimento feminista buscava muito a igualdade. Aos poucos nós fomos percebendo que o que a gente queria era a igualdade de direitos. Mas houve muitos equívocos e acontece que nessa busca de igualdade de direitos muitas mulheres se equivocaram e acharam que era uma igualdade mesmo. E, então, o modelo masculino mesmo passou a ser cultivado, buscado, e a gente vê até hoje as mulheres repetindo o modo de pensar masculino, o jeito de se organizar masculino, o jeito de se relacionar até sexualmente masculino – e não é isso o feminino!”
(…) E isso levou a que a mulher pensasse: Espera aí! Eu não sou igual! Eu sou diferente!
Mas o que consiste essa diferença?
O que me faz diferente do homem?
Ela [mulher] tem o poder feminino e não tem o reconhecimento. Foi o que o patriarcado fez. Ela então sente: «eu tenho que ter personalidade e escolha». Mas as referências de escolha, de trabalho, de poder, e de tudo de bom, era do homem! «Então quanto mais eu for igual a esse ser mais eficiente eu estou». Ou seja, [a mulher] descaracterizou o poder dela mesma.
Então tem de se resgatar o Sagrado Feminino, mas como tudo é muito masculino, tem de se procurar nas culturas antigas, de 5000 anos atrás, nas sociedades não matriarcais, porque matriarcal e patriarcal pressupõe o poder de um sobre o outro, mas sim nas sociedades matrifocais. Tudo gerava em torno do feminino. Os filhos tinham o nome das mulheres. Tinham de ser protegidas para elas poderem continuar gerando vida.
Matriztico ⇒ Equilíbrio; Sem Poder.
Sociedades Matrizticas ⇒ Sociedades equilibradas.
Nota: este texto foi retirado das falas deste vídeo, que considero muito interessante, e que suscita muitas perguntas. Afinal, a mulher está ou não a seguir o modelo masculino? Repare-se: Nas profissões que são consideradas de domínio masculino porque se vestem as mulheres como os homens (exemplo: o blazer), só faltando a gravata? Estão ou não a copiar o modelo masculino e com isso a contribuir para a continuação da ordem masculina. É uma espécie de integração: «podes estar aqui mas tens de aparentar ser como nós, homens».
Marta Gautier(2010) com “A culpa é sempre nossa“
“Um dia disse à minha psicóloga que estava farta de sentir que a culpa era sempre das mães. Se em crianças os nossos filhos forem gordos, egoístas, desatentos, anti-sociais, amedrontados, autistas, deprimidos, hiperactivos, coléricos, a culpa é nossa. Se mais tarde forem drogados, indigentes, bêbedos, tarados, desempregados, violentos, homossexuais, esquizofrénicos, infelizes, a culpa é nossa. Porque não os amámos como deve ser, porque os deixámos sozinhos, porque nos divorciámos, porque discutimos com o pai deles, porque fizemos diferença entre os irmãos, porque não os ajudámos na escola, porque lhes batemos, porque não os valorizámos, porque não fomentámos a sua auto-estima, porque os sufocámos. Porque tem a ver com a nossa maneira de ser, porque somos egoístas, ansiosas, negligentes, deprimidas, hiper-atentas, absorventes, perfeccionistas, obsessivas, egocêntricas, loucas, exageradas, ditadoras, injustas, benevolentes, permissivas, descontroladas. Dedico então os meus dias, a não ser uma pessoa, mas a tentar não ser várias. Por seu lado, este esforço continua a ser uma falha minha, porque ele próprio traumatiza as crianças.”
As mulheres portuguesas são parvas
Erica Jong in “O que querem as mulheres?”
“Pois é verdade que, quando se deseja que a mulher falhe qualquer coisa é fazê-la passar por provações constantes e impossíveis como as que foram inventadas pelos inquisidores para as mulheres acusadas de bruxaria. Se elas se afogavam, é porque estavam inocentes; se ficavam à tona da água eram culpadas” (p. 32).
“Penso que a questão reside no facto de a mulher nunca ter sido deixada em paz para poder ser ela própria e descobrir as coisas sozinha. Os homens precisam tanto de nós e têm tanto medo de nos perder que se serviram do seu poder para nos aprisionar – em castelos de pedra enquanto foi possível, e mais tarde, em castelos feitos de mitos. Estes mitos que nos mantiveram, a maior parte das vezes, alheadas da força que possuímos, confundiram muitas gerações de mulheres. Diziam-nos que éramos fracas; todavia, à medida que crescíamos, víamos quão fortes nós éramos. Diziam-nos que os homens nos amavam porque éramos dependentes; e, ao crescermos, verificávamos que, embora contrariados, eles nos amavam pela nossa independência – e mesmo que o não fizessem, achávamos que não devíamos estar sempre preocupadas. Descobrimos que podíamos tornar-nos mais maduras só pelo simples facto de nos amarmos um pouco a nós próprias e à força que possuímos e, deste modo, por muito estranho que pareça, descobrimos que podíamos tornar-nos adultas, fazendo unicamente o oposto daquilo que a nossa cultura nos dizia para fazermos. Ensinavam-nos que o nosso encanto estava em sermos fracas, mas para sobrevivermos tínhamos de ser fortes. Diziam-nos que, por natureza, éramos indecisas, mas a nossa sobrevivência parecia muitas vezes depender das nossas próprias decisões.
Também nos diziam que certas definições míticas da mulher eram leis naturais e imutáveis, eram «factos» biológicos, mas, muitas vezes, a nossa resistência dependia da alteração desses factos supostamente imutáveis, e até mesmo de enveredar por um tipo de vida diferente” (p.64).
“Os homens devem ser despojados de toda a arrogância e as mulheres devem tornar-se independentes para que qualquer tipo de aliança, mutuamente edificante, se mantenha entre os sexos” (p.74).
Márcia Tiburi, filósofa e escritora, respondendo à questão: “Você tem fome de quê?”Revista da Cultura, Edição 86, Setembro de 2014; Livraria Cultura.
«O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Porque a cesta básica chega sempre às mulheres. E às mulheres em condições de desigualdade social. São as avós e mães pobres que, a sós, com panelas velhas e pratos por encher, convertem a dor material da vida pobre na barriga cheia dos filhos. São as mulheres que ainda enfrentam o nada empírico da vida privada dentro das casas, devotas humilhadas nas cozinhas, entregues à tristeza ancestral de fogões sem gás, de pratos sem alimento, daquele chão por limpar que todos fingem não ver. Há séculos, as mulheres são escravas de ideias como casamento e família. Há séculos, elas foram culpadas por sua própria condenação. Há séculos, elas precisam reaprender a ler a própria história, a história do Segundo Sexo.”
Nota: No Brasil, a cesta básica julgo ser equivalente ao RSI (Rendimento Social de Inserção) em Portugal.
Georges Duby e Michelle Perrot em ” As Mulheres e a História”
Pierre Bourdieu – “A visão feminina é uma visão dominada que não se vê a si própria (…). Pergunto a mim próprio se a História das Mulheres põe a questão da visão das mulheres, se nos devolve na realidade uma visão de mulheres” (p.11).
“A construção da identidade feminina enraíza-se na interiorização pelas mulheres de normas enunciadas pelos diversos discursos masculinos. A tónica deve ser portanto posta nos dispositivos que asseguram a eficácia dessa violência simbólica que, como escreve Pierre Bourdieu, «Só triunfa na medida em que aquele (aquela) que a sofre contribui para a sua eficácia; só o (a) coage na medida em que ele (ela) foi predisposto (a) por uma aprendizagem preliminar a reconhecê-la» (p. 39).
“ (…) o que, em primeiro lugar conta não é saber se as mulheres ocupam mais ou menos espaço mas qual é a natureza do espaço que elas podem ocupar, a natureza dos títulos de ocupação desse espaço (…) (p. 46).
“A relação de dominação, neste caso, exerce-se essencialmente através da violência simbólica, quer dizer, através da imposição de princípios de visão e de divisão incorporados, naturalizados, que são aplicados às mulheres e, em particular, ao corpo feminino.
A submissão à ordem estabelecida garantida pelo acordo imediato entre as estruturas objectivadas e as estruturas cognitivas nada tem de um consentimento consciente, de uma adesão electiva; é um reconhecimento prático, tácito, infraverbal (…)”(p. 58).
“A visão feminina é uma visão dominada que não se vê a si própria. O historiador e a historiadora devem, portanto, submeter a sua própria visão à reflexão crítica se quiserem ficar em condições de pôr em questão os pressupostos que podem ser-lhes impostos pela violência simbólica e que podem vedar-lhes o acesso à visão das mulheres. (…) Como reconstruir os olhos das mulheres, como tratar enquanto sujeitos de percepção essas mulheres que são sempre objectos de percepção – até para si próprias, durante todo o tempo em que se apliquem a si mesmas as categorias de percepção dominantes, ou seja, masculinas, e se vejam com um olhar masculino?” (p.59).
“Nada é mais complicado que abrir os olhos. Exige tempo” (p. 75).
“O casamento, explica Élias Regnault, não é só um elo contratual entre dois indivíduos, cria “um ser humano novo”. A mulher perde de certo modo qualquer coisa da sua individualidade neste processo, assentando o seu pensamento e a sua vontade nos do esposo que desempenha o papel de órgão representativo do casal”(p.75).
“A exclusão ou subordinação têm sempre de se legitimar. A dominação não repousa apenas na violência, física ou psicológica. Implica sempre a partilha pelo menos parcial das mesmas representações pelos dois sexos, partilha que induz na consciência e na vontade dos indivíduos uma certa forma de consentimento, e portanto de cooperação, relativamente à sua própria subordinação” (p. 97-98).
“A exclusão legitima-se através de um denegrimento sistemático da capacidade do outro sexo para produzir certas coisas (a caça, a metalúrgica, etc), ou para reproduzir os seres (e neste caso os homens pretendem, iniciando os rapazes, reengendrá-los fora do ventre das mulheres), ou para discernir o que é o bem e o mal para a sociedade e, por conseguinte, para a saber dirigir. Para excluir, é preciso denegrir, e este denegrimento é antes do mais uma operação ideal; os homens atribuem às mulheres no imaginário impotências que elas não têm ou concedem a si próprios potências que não têm, aumentam-se idealmente e rebaixam idealmente também o outro sexo” (p.98).
“Na vida privada, este individualismo exige que os homens e as mulheres se tornem ou em todo o caso, creiam tornar-se “inventores” do seu próprio destino. A atribuição de um sexo à nascença, de uma categoria que decidiria para sempre da conduta de uma pessoa é algo que contraria os novos mitos. A rutura com a codificação a priori em masculino e feminino participa da crença num mundo social em que os caminhos não se encontram de antemão desenhados. Para que o “si próprio” de cada um se cumpra, deve deixar de ser portador do espartilho sociodemográfico constituído do sexo, da posição social, da idade, e deve sentir-se livre” (p. 121).
Em jeito de Conclusão
Lipovetsky em “A Terceira Mulher”
“Nenhum movimento social na nossa época foi tão profundo, tão rápido e tão prenhe de futuro como a emancipação feminina. Embora o balanço do século seja pouco glorioso em termos de respeito pelos direitos do homem, quem poderá contestar a sua dimensão fundamentalmente positiva no que diz respeito à evolução do feminino? O grande século das mulheres, aquele que, mais do que qualquer outro, revolucionou o seu destino e a sua identidade, foi o século XX.
Sejam quais forem os progressos que se perfilem no horizonte, é pouco provável que possam superar, neste domínio, aquilo que as sociedades democráticas testemunharam no decurso destes últimos três decénios. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, emergiu uma nova figura social do feminino que instituía uma importante ruptura na «história das mulheres» e exprimia um progresso democrático aplicado ao estatuto social e identitário do feminino. A esta figura sócio-histórica damos o nome de terceira mulher.
Pela primeira vez, o lugar do feminino não é pré-ordenado, orquestrado de fio a pavio pela ordem social e natural. O mundo fechado de outrora foi substituído por um mundo aberto ou aleatório, estruturado por uma lógica de indeterminação social e de livre gestão individual, análoga, no seu princípio, àquela que rege o universo masculino. Se tem sentido falar em revolução democrática no que respeita à construção social dos géneros é, primeiramente, porque eles se encontram actualmente votados ao mesmo «destino» marcado pelo poder do livre arbítrio e pela exigência de se auto-inventarem no exterior de todo o imperativo social” (Lipovetsky, 1997: 9-10).
Bibliografia
ALBORCH, Carmen. (2004). Mulheres Contra Mulheres. Rivalidades e Cumplicidades. Editorial Presença. Barcarena.
DOYLE, Oli. (2015). Mindfulness. Grupo Planeta. Lisboa.
DUBY, Georges. PERROT, Michelle. (1995). As Mulheres e a História. Publicações D. Quixote. Lisboa.
GAUTIER, Marta. (2010). Não há famílias perfeitas. Editora Objectiva. Carnaxide. pp.49-50.
JONG, Erica. (1998). O que querem as mulheres?”. Bertrand Editora.
LIPOVETSKY, Gilles. (1997). A Terceira Mulher. Instituto Piaget. Lisboa.
TIBURI, Márcia. (2014). “Você tem fome de quê?” Revista da Cultura, Edição 86, Setembro de 2014; Livraria Cultura.