“Em todo o caso, casai-vos. Se vos couber em sorte uma boa esposa, sereis felizes; se vos calhar uma má, tornar-vos-eis filósofos, o que é excelente para os homens.”
Sócrates
“Bachofen foi o primeiro a substituir o lugar-comum acerca de um estádio primitivo desconhecido com comércio sexual sem regras pela prova de que a literatura clássica antiga nos mostra uma quantidade de vestígios segundo os quais, antes do casamento singular, existiu de facto entre os gregos e asiáticos uma situação na qual não só um homem tinha comércio sexual com diversas mulheres mas também uma mulher o tinha com diversos homens, sem com isso violarem os costumes; que este costume não desapareceu sem deixar vestígios numa entrega limitada através da qual as mulheres tiveram de comprar o direito ao casamento singular; que, por esse motivo, a descendência só podia, originariamente, ser contada segundo a linha materna, de mãe para mãe; que esta vigência exclusiva da linha materna se manteve ainda por muito tempo, penetrando pelo período do casamento singular, com paternidade segura ou, pelo menos, reconhecida, e que esta posição originária das mães, como únicos progenitores seguros dos seus filhos, lhes garantia, bem como às mulheres em geral, uma posição social superior à que alguma vez desde então voltaram a possuir.” (Engels, 1985: 17-18).
“(…) sabia-se quem era a mãe de uma criança mas não quem era o pai e, por isso, o parentesco só era contado segundo a linha feminina, com exclusão da masculina: era o direito materno. E uma segunda consequência da falta de mulheres no seio da tribo – uma falta atenuada mas não eliminada pela poliandria – era precisamente o rapto sistemático, pela força, de mulheres de outras tribos.” (Engels, 1985:19).
“Bachofen tem ainda, sem dúvida, razão quando em geral afirma que a transição daquilo a que ele chama “heterismo” ou “procriação pantanosa” para o casamento singular se realizou essencialmente graças às mulheres. Quanto mais as relações sexuais tradicionais, com o desenvolvimento das condições económicas da vida e, portanto, com o desaparecimento do antigo comunismo e com a crescente densidade da população, perdiam, o seu ingénuo carácter primitivo e selvático, tanto mais humilhantes e opressivas essas relações tinham de parecer às mulheres e com tanto maior premência elas teriam de ansiar pelo direito à castidade, ao casamento temporário ou duradouro com apenas um homem, como uma redenção. Este progresso não podia ter partido dos homens quanto mais não seja pelo facto de que nunca até hoje de forma alguma lhes ocorreu renunciar aos encantos de um efectivo casamento de grupo. Só depois de as mulheres terem realizado a transição para o casamento acasalado é que os homens conseguiram introduzir a estrita monogamia – mas só para as mulheres. A família acasalada surgiu na fronteira entre selvajaria e barbárie, na maioria das vezes já no estádio superior da selvajaria, aqui e ali apenas no estádio inferior da barbárie. Ela é a forma de família característica da barbárie, tal como o casamento de grupo é a da selvajaria e a monogamia é a da civilização.” (Engels, 1985:64-65).
“Portanto, à medida que as riquezas aumentavam, por um lado elas iam dando ao homem uma posição mais importante que à mulher na família e, por outro, geravam um impulso para utilizar essa posição reforçada para modificar, em favor dos filhos, a ordem de sucessão tradicional. Isto era, porém, impossível enquanto vigorasse a descendência segundo o direito materno. Esta tinha, pois, de ser derrubada. Isto não foi de forma nenhuma tão difícil como hoje nos parece. (…) Bastou a simples decisão de que, de futuro, os descendentes dos companheiros masculinos deveriam permanecer nas gens, mas que os descendentes dos femininos deveriam ser dela excluídos, passando para as gens do pai. Deste modo tinham sido derrubados o estabelecimento da descendência por linha feminina e o direito de herança materno e introduzido o direito de herança paterno e a linha de descendência masculina.” (Engels, 1985:68).
“O derrube do direito materno foi a derrota do sexo feminino na história universal. O homem tomou o leme mesmo em casa, a mulher foi degradada, servilizada, tornou-se escrava do prazer dele e mero instrumento de reprodução. Esta posição rebaixada da mulher, tal como nos aparece abertamente, nomeadamente entre os tempos clássicos, é gradualmente embelezada e disfarçada, revestindo-se também, em alguns lugares, de formas mais suaves, mas não de forma nenhuma eliminada. O primeiro efeito da dominação exclusiva dos homens então instituída aparece na forma intermédia da família patriarcal, que então surgia. Aquilo que sobretudo a caracteriza não é a poligamia da qual falaremos mais tarde, mas:
“a organização de um certo número de pessoas, servas e livres, numa família, sob o poder paternal do chefe de família. Na forma semítica, este chefe de família vive em poligamia, o servo tem uma mulher e filhos, e o objectivo de toda a organização é a guarda de rebanhos e manadas numa área limitada”.
“A expressão “família” foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social cujo chefe tinha sob si mulher e filhos e um certo número de escravos, sob poder paterno romano, com o direito de vida ou de morte sobre todos.”
Marx acrescenta: “A família moderna contém em germe não só escravatura, mas também a servidão, pois tem desde o início relação com os serviços para a agricultura. Ela contém em si, em miniatura, todas as oposições que mais tarde se desenvolverão amplamente na sociedade e no seu Estado”.
“Uma tal forma de família mostra a transição do casamento acasalado para a monogamia. Para garantir a fidelidade da mulher, e, portanto, a paternidade dos filhos, a mulher é entregue incondicionalmente ao poder do homem: mesmo que ele a mate, estará apenas a exercer um direito seu.” (Engels, 1985: 70-71).
“A família monogâmica: Surge da família acasalada, conforme se mostrou, na época de fronteira entre o estádio médio e superior da barbárie; a sua vitória definitiva é uma das características da civilização nascente. Baseia-se na dominação do homem com o objectivo expresso da procriação de filhos e paternidade indiscutível, e essa paternidade é exigida porque os filhos deverão um dia entrar na posse dos bens paternos como herdeiros diretos. Ela distingue-se do casamento acasalado através de uma muito maior solidez do laço conjugal, que a partir de agora deixa de ser dissolúvel a bel-prazer de ambas as partes. Em regra, agora já só o homem é que pode dissolvê-lo e repudiar a mulher. O direito à infidelidade conjugal continua ainda agora a ser-lhe garantido, pelo menos pelo costume, concede-o expressamente ao homem, desde que ele não traga a concubina para a casa conjugal e, com o crescente desenvolvimento social, é cada vez mais exercido; mas, se a mulher se lembra da sua antiga prática sexual e a quer renovar, é punida mais rigorosamente do que nunca.” (Engels, 1985: 75).
“Da esposa espera-se que aceite tudo isto, mas que ela própria guarde uma rigorosa castidade e fidelidade conjugal. É um facto que a mulher grega do tempo dos heróis é mais respeitada do que a do período civilizado, mas a verdade é que para o homem ela acaba apenas por ser a mãe dos seus herdeiros legítimos, a sua principal administradora doméstica e a chefe das escravas – escravas que o homem pode transformar (e transforma) em concubinas, conforme lhe aprouver. É a subsistência da escravatura paralelamente à monogamia, a existência de jovens e belas escravas que, com tudo o que têm, pertencem ao homem que desde o início dá à monogamia o seu carácter específico de ser monogamia apenas para a mulher mas não para o homem. E ainda hoje ela tem esse carácter.” (Engels, 1985: 76).
“Com o decorrer do tempo, a família ateniense tornou-se no exemplo segundo o qual não só os restantes jónios mas também, cada vez mais, todos os gregos da metrópole e das colónias modelavam as suas relações domésticas. Mas, apesar de todo o isolamento e de toda a vigilância, as mulheres gregas encontravam, com bastante frequência, oportunidade de enganar os maridos. Estes, que se envergonhariam de reconhecer sentir o mínimo amor pelas suas mulheres, divertiam-se em toda a espécie de jogos amorosos com heteras; mas a degradação das mulheres vingou-se dos homens e degradou-os também a eles, até se afundarem na repugnância da pederastia e degradarem os seus deuses, tal como a si próprios, pelo mito de Ganimedes. Foi esta a origem da monogamia, tanto quanto podemos rastreá-la no povo o mais civilizado e desenvolvido ao máximo da Antiguidade.”
“Ela [monogamia] não foi, de modo nenhum, fruto do amor sexual individual, com o qual não tinha absolutamente nada a ver, já que os casamentos continuavam a ser, tal como antes, casamentos de conveniência. Ela foi a primeira forma de família que não estava fundada em condições naturais, mas em condições económicas, nomeadamente na vitória da propriedade privada sobre a originária propriedade comum natural. Dominação do homem na família e procriação de filhos que só pudessem ser seus e que estavam destinados a tornar-se herdeiros da sua riqueza eram os únicos objectivos do casamento singular, conforme os gregos exprimiam sem rodeios. De resto, o casamento singular era para eles um fardo, uma obrigação para com os deuses, o estado e os seus antepassados, obrigação que, precisamente, tinha de ser cumprida.”
“Em Atenas, a lei obrigava não só ao casamento mas também ao cumprimento de um mínimo dos chamados deveres conjugais por partir do homem. Assim, o casamento singular, não entra de modo nenhum na história como a reconciliação entre homem e mulher, nem muito menos como a sua forma suprema. Pelo contrário, aparece como a subjugação de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos até então desconhecido em toda a pré-história. Num velho manuscrito inédito, elaborado por Marx e por mim em 1846 encontro: «A primeira divisão do trabalho é a de homem e mulher para a procriação de filhos». E hoje posso acrescentar que a primeira oposição de classes que aparece na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo de homem e mulher no casamento singular e que a primeira opressão de classe coincide com a do sexo feminino pelo masculino. O casamento singular foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, inaugura, juntamente com a escravatura e a riqueza privada, aquela época, que dura até aos nossos dias, em que cada progresso é simultaneamente um relativo retrocesso, no qual o bem-estar e o desenvolvimento de uns se impõem através da dor e da repressão dos outros.” (Engels, 1985: 78-80).
“Com o casamento singular surgem duas permanentes figuras sociais características, que anteriormente eram desconhecidas: o amante permanente da mulher e o cornudo. Os homens tinham alcançado a vitória sobre as mulheres, mas as vencidas encarregaram-se generosamente da coroação. Paralelamente ao casamento singular e ao heterismo, o adultério tornou-se uma inevitável instituição social – proibido, duramente punido, mas irreprimível.” (Engels, 1985: 81).
“No entanto, se a monogamia foi, de todas as formas de família conhecidas, a única em que o amor sexual moderno se pôde desenvolver, isso não significa que esse amor se tenha desenvolvido exclusivamente ou só predominantemente dentro da monogamia, como amor recíproco dos cônjuges. Toda a natureza do rígido casamento singular exclui isso. Entre todas as classes historicamente ativas, isto é, entre todas as classes dominantes, a conclusão de casamento continuou a ser, tal como tinha sido desde o casamento acasalado, questão de conveniência, arranjada pelos pais. E a primeira forma que historicamente surge do amor sexual como paixão, e como paixão possível a qualquer pessoa (pelo menos das classes dominantes), como forma suprema do impulso sexual – o que constituiu precisamente o seu carácter específico – essa sua primeira forma, o amor cavalheiresco da Idade Média, não foi de modo nenhum um amor conjugal. Pelo contrário. Na sua figura clássica, entre os provençais, ruma a todo o pano para o adultério, e os seus poetas cantam-no. A flor da poesia amorosa provençal são as albas. Elas pintam com cores ardentes como o cavalheiro se deita na cama com a sua bela – mulher do outro – enquanto lá fora fica o vigia que o chama logo que aparecem os primeiros alvores da manhã (alba), para que ele possa ainda escapar sem ser notado.” (Engels, 1985: 84).
“Sem dúvida, também só por isso é que a Igreja Católica aboliu o divórcio, pois tinha-se convencido de que contra o adultério, como contra a morte, não havia mezinha que valesse. Nos países protestantes, pelo contrário, a regra é permitir ao filho-de-burguês escolher com maior ou menor liberdade uma mulher da sua classe, pelo que pode existir, e por conveniência se supõe sempre, um certo grau de amor na base do casamento, e o que corresponde à hipocrisia protestante. Aqui, o heterismo do homem é empreendido mais indolentemente e o adultério da mulher é menos regra. Mas, como em qualquer tipo de casamento, as pessoas continuam a ser aquilo que eram antes do casamento, e os burgueses dos países protestantes são, na maioria dos casos, filisteus, a consequência é que esta monogamia protestante, na média dos melhores casos, apenas conduz a comunidade conjugal a um aborrecimento mortal, que se designa pelo nome de felicidade familiar.”
“O melhor espelho deste dois métodos de matrimónio é o romance: para a maneira católica o francês, para o protestante o alemão. Em qualquer dos casos «ele ganha»: no romance alemão, o jovem ganha a rapariga; no romance francês, o marido ganha os cornos. Nem sempre há acordo quanto a qual deles fica pior. (…) Em ambos os casos, porém, o matrimónio é condicionado pela posição de classe dos interessados e, nessa medida, é sempre casamento por conveniência. Em ambos os casos é bastante frequente esse casamento de conveniência transformar-se na mais crassa prostituição – às vezes por parte dos dois, mas muito mais habitualmente da mulher, que só distingue da cortesã habitual pelo facto de não alugar o seu corpo num trabalho à peça, como operária assalariada, mas de o vender de uma vez por todas em escravatura. E valem para todos os casamentos de conveniência estas palavras de Fourier:
“Assim como na gramática duas negações constituem uma afirmação, na moral conjugal duas prostituições valem por uma virtude. “ (p.85-86).
“Na relação com a mulher, o amor sexual só se torna e só pode tornar-se regra efectiva entre as classes oprimidas, ou seja, hoje em dia, entre o proletariado – quer essa relação seja sancionada oficialmente ou não. Aí, porém, estão também eliminadas todas as bases da monogamia clássica. Aí falta toda a propriedade para cuja manutenção e transmissão hereditária a monogamia e a dominação do homem foram precisamente criadas, e com isso falta aí também aquele incitamento para que vigore a dominação do homem. Mais ainda: faltam também os meios; o direito burguês, que defende essa dominação, existe apenas para as classes possuidoras e para as suas relações com os proletários; custa dinheiro, e, por isso, em virtude da pobreza, não tem nenhuma validade para a posição do operário para com a sua mulher. Aí, o que decide são relações pessoais e sociais totalmente diferentes. E, sobretudo desde que a grande indústria tirou a mulher de casa, a colocou no mercado de trabalho e na fábrica e com bastante frequência a transformou no sustento da família, os últimos restos da dominação do homem no lar proletário perderam todo o seu fundamento – com excepção talvez ainda de um bocado de brutalidade contra a mulher, que desde a introdução da monogamia se vulgarizou. Assim, a família do proletário já não é uma família monogâmica em sentido rigoroso, apesar do amor apaixonado e da mais sólida fidelidade de ambos e apesar de todas as possíveis bênçãos espirituais e temporais. Daí que também o heterismo e o adultério, eternos companheiros da monogamia, apenas aí desempenham um papel quase ínfimo; a mulher readquiriu de facto o direito de se separar, e, quando já não se conseguem dar, os cônjuges preferem separar-se. Em resumo, o casamento proletário é monogâmico no sentido etimológico da palavra, mas de modo nenhum no seu sentido histórico.” (Engels, 1985: 84-85).
Bibliografia:
ENGELS, Friedrich. (1985). A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado. Lisboa. Edições Avante.