“Não há nenhum caminho tranquilizador à nossa espera. Se o queremos, teremos de construí-lo com as nossas mãos.”
J. Saramago
Prosseguindo o desenvolvimento da recém criada categoria dedicada ao estudo do Islão, pode-se dizer que o post de hoje vem mesmo a propósito, uma vez que tem como protagonista principal o Ouro Negro, mais precisamente o petróleo. Numa altura, em que o nosso país está no limiar de uma crise energética, devido à ameaça de greve dos motoristas que transportam materiais perigosos, faz todo o sentido publicar um post que demonstra a importância do petróleo. É confrangedor constatar que, apesar de todos os avanços da ciência e da tecnologia, continuamos actualmente tão vulneráveis a uma crise dos combustíveis como se era no século passado.
Porém, é do Islão que se pretende falar, por isso este post apenas incidirá na importância do petróleo do Médio Oriente, nomeadamente para a hegemonia americana. Como todos bem sabemos, os recursos naturais sempre tiveram um papel importantíssimo para o crescimento das nações, mas no que diz respeito ao petróleo, este transformou-se na fonte de energia primária mais importante, o combustível do capitalismo. Assim sendo, o acesso e controle das principais reservas de petróleo do mundo tem implicado uma tenebrosa disputa pelo poder à escala internacional. O Médio Oriente concentra mais de 60% das reservas totais do mundo, facto que torna a região um alvo de constante e intenso interesse da política de segurança energética.
“A figura dominante do pan-arabismo foi o coronel Gamal Abdel Nasser. Foi ele, com o general Naguib, quem liderou o comité de jovens oficiais revolucionários que derrubou o rei Faruk e instalou no Cairo o partido da União Nacional (inspirado na Constituição portuguesa de 1933)” (PINTO, 2015: 77).
“Nasser e o seu movimento representavam uma alternativa nacionalista e populista ao nacionalismo liberal e ocidentalizante do Wafd. Nasser encarnava o mito do Rais (chefe), do líder carismático, não só dos árabes, mas das massas muçulmanas e africanas que, por esses anos 50, entre a conferência de Bandung e a crise do Suez, desafiavam o ocidente europeu.” (PINTO, 2015: 77).
“Nasser foi o chefe mítico das massas árabes por quase 15 anos, desde esse 26 de Julho em que nacionalizou o Canal de Suez até à sua morte, em 1970. Foi o caudilho do mundo árabe, como Getúlio foi do Brasil nacionalista, Perón dos proletários argentinos, Lumumba da África radical, Castro e Che da revolução continental das Américas – e da «revolução cubana» imaginada pelos adolescentes das burguesias da Europa” (PINTO, 2015: 78).
“Nasser quis ser o Libertador, o Moisés, dos descendentes dos escravos dos Faraós, das multidões do Cairo e de Alexandria, habituadas a serem mandadas e enquadradas por ingleses coloniais, com a cumplicidade das grandes burguesias expatriadas ou apátridas da região. O nacionalismo árabe militar foi isso: quadros médios em uniforme, colectivos de oficiais que, aos poucos, se foram eliminado e saneando, até que ficassem Mubarak no Cairo, Saddam em Bagdad, Assad em Damasco, Kadhafi em Tripoli. Pelo meio, ou entre eles e os reis por eles derrubados ou assassinados, outros cadáveres de outros homens civis ou de uniforme foram cimentando o caminho. Dez ou vinte séculos depois, repetiam nos seus novos Estados as rotas de todos os tempos fundacionais – dos césares romanos ou das dinastias medievais, alçados ao poder por pretorianos insatisfeitos ou por feudais bárbaros e vorazes” (PINTO, 2015: 78).
“Por razão deles ou culpa nossa, estes revolucionários eram anti-ocidentais. Para eles, o Ocidente eram os estrangeiros que, no século XIX, tinham expulsado dos Balcãs e da Grécia os otomanos, que os tinham dominado com a artilharia naval ou com forças expedicionárias transportadas em barcos de ferro; ou que – pior ainda – os tinham arruinado e explorado, emprestando-lhes o capital para infra-estruturas modernas e talvez inúteis e usando depois o crédito para os pôr sob tutela. «Os Ocidentais» eram, sobretudo, os ingleses ou, na Síria e no Norte de África, os franceses. Mas o poder sufocante por excelência era o britânico: desde o tempo da derrota da frota de Bonaparte em Aboukir, pelo almirante Nelson, e das duas digressões pelo Mediterrâneo Oriental, até à compras das acções do Estado egípcio no Canal de Suez” (PINTO, 2015: 78-79). (…)
“Contra Nasser e as suas pretensões de liderança do mundo árabe, erguera-se, entretanto, a Arábia Saudita, numa dupla afirmação de tradicionalismo religioso e político. A partir do princípio do século XX, Ibn Saud, o refundador da família e o fundador do Reino, prosseguira uma política de hegemonia das tribos árabes, procurando fazer a unidade na Península, desde o Golfo Pérsico ao Mar Vermelho, do Índico ao Mediterrâneo. Livre dos turcos a seguir a 1918, vai conquistar aos Hachemitas o título de Guardião dos Lugares Santos, passando daí a controlar também as peregrinações a Meca, com as respectivas receitas. Em 1932, proclama-se rei da Arábia. Mas para a consolidação do seu poder, vai concorrer outro elemento decisivo” (PINTO, 2015: 79).
“A Segunda Guerra Mundial provara que o petróleo passara a ser o recurso estratégico por excelência, e que parte da derrota de Hitler se devera às falhas de abastecimento energético da sua máquina militar. Ora, em 1936, em Hasa, no Nordeste da Arábia, tinham sido descobertas jazidas de petróleo; no entanto, a grande mudança de estatuto da Arábia Saudita só viria no dia 14 de Fevereiro de 1945, quando Ibn Saud e o quase moribundo F. D. Roosevelt assinaram um pacto de aliança, a bordo do cruzador Quincy. Meses antes, a sul do Cairo, Saud encontrara-se com Churchill, mas o velho monarca percebera os novos tempos e quem mandava. A partir daí, os Estados Unidos passaram a ter direitos quase monopolistas sobre o petróleo do Reino, a troco de protecção militar” (PINTO, 2015: 79-80).
“A equação energética vai assim entrar em força no Islão e no Médio Oriente. A república norte-americana liga o seu destino à casa de Saud, a cabeça e o bastião do tradicionalismo sunita e a protectora e aliada do rigorismo wahabita. Também os limites fronteiriços entre a Arábia Saudita e os seus vizinhos – Iraque, kuwait, Iémen, Omã, Abu Dhabi – vão ser condicionados pela repartição das áreas petrolíferas” (PINTO, 2015: 79-80).
“É a imensa riqueza energética da Arábia Saudita que lhe vai garantir progressiva importância na Liga Árabe e na OPEP. E é logo a seguir à guerra de Junho de 1967 que os produtores árabes decidem, como represália embargar os fornecimentos de petróleo aos Estados Unidos e à Grã-Bretanha e destinar 20% dos seus rendimentos à luta contra Israel” (PINTO, 2015: 79-80).
“(…). Os sucessivos choques petrolíferos, além de porem fim ao crescimento de longo prazo das economias ocidentais, alteraram os termos do poder entre conservadores e progressistas no bloco árabe. Os países produtores, entretanto reunidos na OPEP, também se deram conta da natureza ambígua da arma petrolífera: preços muito altos podiam ter – e tiveram – efeitos perversos para os seus interesses. Por um lado, encorajavam os importadores ocidentais a investir em energias alternativas; por outro, acima de certo preço, tornavam rentável a exploração de muitos dos poços que, nos Estados Unidos, estavam abandonados” (PINTO, 2015: 79-80-81). (…).
“O petróleo como arma política”
“Mas a 6 de Outubro de 1973 um acontecimento inesperado ia mudar esta situação, alterando a balança do poder na OPEP e na Liga Árabe. Era o «Yom Kippur», o Dia do Perdão, o dia mais sagrado do calendário judeu. Os crentes deviam cumprir 25 horas de jejum (do cair da noite do primeiro dia à mesma hora do segundo) e rituais de arrependimento e de contrição. As rádios e as televisões não emitiam, por respeito ao preceito, o que ia aumentar o efeito de surpresa da manobra. Às 14 horas, os exércitos do Egipto e da Síria atacavam Israel nas suas fronteiras da Guerra dos Seis Dias. Tropas da Arábia Saudita, da Jordânia, do Iraque, do Kuwait, , de Marrocos e da Tunísia estavam também mobilizadas. Antes do ataque, Sadat persuadira o rei Faiçal a apoiar o movimento” (PINTO, 2015: 84-85).
“Ao contrário do sucedido nos conflitos anteriores, os egípcios estavam bem preparados: passaram o canal, infligiram perdas sérias aos israelitas e prosseguiram durante três dias no Sinai. Os israelitas, depois de terem perdido um quarto da sua Força Aérea, com os aparelhos abatidos pelos SAM 6 egípcios, sofreram também grandes perdas de tanques. Oitenta mil egípcios atravessaram o canal” (PINTO, 2015: 85).
“O governo de Telavive, para atender à substituição de máquinas e munições, fez um apelo desesperado a Washington, pedindo uma linha de reabastecimento. Nesses dias do Outono de 1973, a situação na capital americana não era fácil: o vice-presidente Spiro Agnew acabara de renunciar ao cargo, através de um acordo judicial com a Procuradoria-Geral, para evitar o risco de prisão por actos fraudulentos cometidos quando governador de Maryland; e o próprio presidente Nixon estava sob fogo dos investidores, do Congresso e dos media, na sequência do Watergate. O secretário de Estado Kissinger e o secretário de Defesa Schlesinger decidiram autorizar e montar uma ponte aérea para Israel, utilizando como ponto de passagem os Açores. Desta ponte aérea, iniciada a 14 de Outubro pela USAF, faziam parte caças F-4 Phantom, helicópteros CH-53, tanques M60, centenas de viaturas militares e mísseis de todos os tipos para substituir os abatidos nos combates de Kippur” (PINTO, 2015: 85).
“Tinham-se desatado as fúrias: o ministro saudita do Petróleo, Zaki Yamani, preveniu Washington de que a ponte aérea de reabastecimento de Israel levaria o governo saudita a cortar o fornecimento de petróleo aos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, os produtores do Golfo, incluindo o Irão, declararam um aumento de preço do barril de 3,01 para 3,63 dólares. Em seguida, Kadhafi quase duplicou o preço e declarou o embargo contra os Estados Unidos. Os sauditas subiram para 5,11 USD o barril. É o rei Faiçal quem vai declarar o embargo contra os Estados Unidos; logo a seguir, o Kuwait, o Qatar, o Bahrein e o Dubai juntam-se à Arábia Saudita, à Líbia, à Argélia e ao Abu Dhabi no boicote, fechando o círculo. De fora, só fica o Irão do xá Mohamed Reza Pahlevi, a derradeira esperança do amigo americano” (PINTO, 2015: 85-86).
“(…). O mercado do petróleo começara a alterar-se ainda antes da guerra do Kippur: os sauditas queriam condições contratuais mais favoráveis com a ARAMCO (Arabian-American Oil Company), o Inverno tinha sido rigoroso e o Xá endurecera as negociações com os consórcios petrolíferos. No Verão de 1973, na Casa Branca e no Capitólio, discutiam-se alternativas às possíveis represálias dos produtores do Médio Oriente perante o apoio norte-americano a Israel. E se os Árabes deixassem de vender petróleo aos Estados Unidos?” (PINTO, 2015: 86-87).
“A época de caça estava aberta: na Líbia, uma faixa de terra quase deserta entre o Sara oriental e o Mediterrâneo, com mais de um milhão de quilómetros quadrados mas menos de dois milhões de habitantes, o coronel Muammar al-Kadhafi, que derrubara em Setembro de 1969 o rei Idris, parecia disposto a usar politicamente os seus 2 300 000 barris diários. Tomava posições radicais, cancelava os acordos militares com os Estados Unidos, expulsava os expatriados italianos, apoiava generosamente a guerrilha palestiniana e, como o Xá, queria brinquedos militares novos: 114 caças-bombardeiros Mirage” (PINTO, 2015: 87).
“Kadhafi deitou mãos à obra a 1 de Setembro, anunciando a nacionalização de 51% das acções das companhias petrolíferas a operar no país; no mesmo dia, soube-se que o presidente Sadat do Egipto conseguira do rei Faiçal da Arábia Saudita a promessa de cortar a produção de petróleo do Reino aos Estados Unidos se estes não mudassem a sua política pró-Israel” (PINTO, 2015: 87).
“A situação agravava-se: os Estados Unidos consumiam cerca de 24 milhões de barris/dia e produziam apenas 11 milhões. O que fazer se, de um dia para o outro, os fornecedores do Golfo decidissem parar a exportação de crude para a América? Directa ou indirectamente, os governos conservadores da região, como o Irão, a Arábia Saudita e a Jordânia, e a própria União Soviética tinham feito saber a Washington que Sadat estava a preparar-se para atacar Israel. Os israelitas negavam essa possibilidade. O ministro dos Estrangeiros de Telavive, Abba Eban, dissera a Kissinger que os egípcios não tinham recursos nem capacidade militar para semelhante ataque” (PINTO, 2015: 87-88).
“Afinal tinham. Em 6 de Outubro, sírios por um lado, egípcios pelo outro, avançaram, abalando as defesas de Israel. A 20 de Outubro, o rei Faiçal declarava o corte total de fornecimento de petróleo aos Estados Unidos; a Líbia, a Argélia e Abu Dhabi já o tinham feito; depois, fora a vez do Kuwait, do Qatar, do Bahrein e do Dubai. O boicote era total. Tudo isto enquanto, em Washington, corria o Watergate, com Nixon debaixo de fogo. Mas, perante a ameaça, kissinger e Schlesinger puseram as Forças Armadas americanas em DEFCON 3 (Defense condition 3, um status intermédio entre a paz, DEFCON 5, e a guerra , DEFCON 1), enviaram três porta-aviões a toda a velocidade para o Mediterrâneo Oriental e a 82ª Divisão Aerotransportada entrou em alerta. Foi o Xá, ao continuar os fornecimentos de crude , quem impediu que os americanos, desesperados com a falta de petróleo para a Sexta Esquadra, ocupassem um dos sultanatos do Golfo” (PINTO, 2015: 88).
Bibliografia
PINTO. Nogueira, Jaime. (2015). O Islão e o Ocidente. D. Quixote. Alfragide.