“Não tenho fé, mas quisera tê-la. Considero a fé o bem mais precioso deste mundo.”
ANATOLE FRANCE
Um dia destes, ao visitar o blog Zé do Cão deparei-me com uma divertida história onde o seu autor nos conta uma situação deveras pitoresca. Em tempos, o Zé havia comprado um “Ford: Anglia-Fascinante”, por isso, cheio de entusiasmo, quando se encontrava em casa à hora do jantar, fez o convite à família para que no próximo Domingo, cuidassem de fazer as honras ao bólide indo em passeio a Fátima, ao que a mãe, Júlia, se prontificou a rematar com a prosaica frase, “Se Deus quiser!”.
Logo me lembrei da minha própria mãe, do seu jeito de ser e de um dia em que estivemos as duas em Fátima. Para a minha progenitora, nada era fruto do acaso, mas sim, da vontade de Deus. Fosse qual fosse a intenção, que algum elemento da família revelasse, logo a minha mãe atalhava, com impressionante convicção – “se Deus quiser”. Tanto assim era, que nós, filhos, levados pelo hábito e pelo exemplo, também assim fazíamos, por tudo e por nada. No fundo, era um chavão que a todos ficava bem dizer e que, também, muitos gostavam de ouvir. Para além disto, tinha ainda o condão de melhor predispor as boas graças da minha mãe, que de tão agradada com a nossa aparente sensatez e previdência, nos tratava nesses momentos, com especial deferência. Tal como acreditava na interferência de Deus nas nossas vidas e na sua ubiquidade, a mãe, tinha ainda uma fé desmedida na Providência Divina, considerando-a a verdadeira justiça. Para quê, então, as frias vinganças, as imprecações ou maldições? Lá, do alto do seu privilegiado ponto de observação, Deus permanecia de atalaia, vigiando e castigando todos os que promovessem as acções do mal. A fé e o mundo restrito, à escala das suas vivências, impediam-na de ver a realidade – que o mal prevalece sobre o bem e que a verdade, nem sempre vem ao de cima – como o azeite. Porém, quanto a mim e, tendo em conta, a minha consequente visão do mundo, inevitavelmente mais ampliada, é a realidade que me é dada observar, que me impede de ter fé. A este respeito, as duas, não podíamos ter posições mais opostas.
Tal como muitas outras crianças, fui obrigada a frequentar a catequese e a assistir às missas, com bastante sacrifício meu, diga-se, no entanto, para a minha mãe, ir à missa, era não só a obrigação de todo aquele que se diz cristão, como, também, devia ser considerada uma forma privilegiada de estar com Deus. Talvez por assim pensar, guardo num recôndito da minha memória, uma vaga lembrança da desilusão por mim sofrida, num dia em que fui a Fátima, a “penantes” pela estrada fora. Eu, a minha mãe e o meu irmão mais velho, acompanhadas por uma vizinha e alguns dos seus filhos, fizemos-nos à estrada, rumo a Fátima. Nessa altura vivia relativamente perto, pelo que o esforço da caminhada não foi tão desmesurado quanto possa parecer, de mais a mais, utilizámos atalhos com alguma frequência, contudo, eu estava em pulgas, verdadeiramente ansiosa por chegar ao destino e poder ver com os meus olhos, todo aquele bulício que se me afigurava excitante, e do qual não queria perder pitada. Mas, a mãe, tinha-me reservado outros desígnios…
Não consigo compreender como isso foi possível, o facto é que quando dei por mim, estava no interior da Basílica a assistir a uma missa. Eu e ela. Eu, contrariadíssima, claro! Mas, lá aguentei, já que não tinha outro remédio. No final da missa, quando me julgava, finalmente, liberta daquela provação, fui surpreendida pela minha mãe, ao manifestar-me o desejo de se confessar. Saímos, pois, da Basílica, e fomos para um missionário, seminário, ou lá o que era aquilo, só sei que foi mais uma seca! Imagine-se o meu assombro, quando percebi que a minha mãe, uma vez confessada, pretendia, agora, comungar. Mais uma missa. Nesse dia tive direito a dose de leão, duas missas e uma confissão e a angustiante espera que isso significa. Quando, finalmente, os ofícios religiosos tiveram o seu fim, senti-me como um presidiário se deve sentir ao ser-lhe aberta a porta da prisão. Por fim, livre! Para correr, para saltar, para olhar em redor e encher os olhos de luz e movimento!
Entretanto, dirigimos-nos ao local, onde tal como fora combinado, já se encontraria o meu pai, que havia ido ao nosso encontro, viajando num autocarro da carreira, acompanhado pelo seu tão amado cabaz, onde jazia acomodado o santo almoço para todos nós. Resmungou logo! Pudera! Estava rodeado de animados grupos de pessoas que almoçavam ali mesmo ao ar livre, de mesa posta sobre muros cobertos por imaculadas toalhas. Como não haveria de estar impaciente? Apesar de ter viajado de autocarro, juízo teve ele, e assim ter-se poupado ao esforço da caminhada, foi quem almoçou com mais apetite. Não parava de comer. Deve ter sido dos ares! Em contrapartida, eu tinha sido acometida por um ataque de fastio, só por ter ouvido a descrição do meu irmão, acerca dos belos e agradáveis passeios que dera com a nossa acompanhante e os seus filhos! Se para uns, a manhã tinha sido de folia, para mim foi de penitência. Anos mais tarde, peregrinei com frequência a Fátima, mas para outra basílica – o restaurante Retiro dos Caçadores. Boas memórias, essas! E que bem me fizeram à alma!