“Aquele que percorre os seus próprios caminhos aí não encontra ninguém. Ninguém o vem ajudar na sua tarefa: perigos, surpresas, maldades e tempestades, tem de ultrapassar sozinho tudo o que o assalta. É que ele tem de fazer o seu próprio caminho…”
Nietzsche, Aurora in Carvalho (2012)
O post de hoje é uma subtil abordagem à ditadura da beleza e da juventude, que é inegavelmente imposta às mulheres e que configura, inevitavelmente, uma forma de as oprimir. É um facto, por demais evidente, que reparamos e criticamos muito os países cuja cultura impõe às mulheres o uso da burca, por outro lado, custa-nos a ver, a nós mulheres ocidentais, que a cultura em que vivemos nos exige que sejamos sempre jovens e belas, sob pena de passarmos a ser alvo do menosprezo, independentemente das qualidades que possamos ter.
No livro “Mulheres de Papel” da autoria de Alice Marques, podemos ler que Simone Beauvoir notou que «ao longo da história, à mulher coube o papel de corpo, com tudo o que lhe é peculiar. Em contraste os homens classificaram-se a eles próprios como a ideia pura, o uno, o todo, o espírito absoluto» (Marques, 2004: 29).
E ainda que «da experiência das mulheres como cuidadoras do corpo, do seu corpo e dos corpos dos outros, resultou, segundo Dinnerstein, que as limitações da carne tornaram-se domínio das mulheres» (Marques, 2004: 29).
É ainda desta autora o excerto que foi retirado do já citado livro, que a seguir se apresenta. É esta a triste realidade que nos esforçamos por não ver, mas que é bem real e está reservada para todas nós, a não ser que se morra jovem… algo que presumo ninguém querer…
“há uma assimetria simbólica: os homens são mais valorizados por aquilo que fazem e as mulheres por aquilo que parecem“.
Alice Marques
“À entrada do pavilhão principal da Arco 2000, um painel com oito fotografias de 100 x 80 cm transforma a galeria «Espacio Minimo» num campo de visão máxima. Dezenas de mulheres e homens acotovelam-se e empurram-se, num vaivém de aproximação-afastamento, para captar, em pormenor ou em plano geral, a obra que o fotógrafo Erwin Olaf mostra nesta feira de arte.
São fotografias de oito mulheres, a rondar os 70-80 anos, em cenários e poses de «top-models», às quais o artista deu nomes como Claudia S., Cindy C., Linda E., entre outros.
O painel exerce uma força de atracção e repulsa,
desconcerta pela ambiguidade dos significados, que o título da obra «Mature» acentua.
Espelho da verdade do corpo decadente,
da corruptibilidade da carne, a que a encenação e a pose acrescentam:
como é esplendorosa a decadência!
Mas a coragem de assumir as marcas do tempo, o corpo impiedosamente envelhecido, contra a norma socialmente valorizada e esteticamente correcta do corpo jovem, liso e perfeito, transforma aquelas fotografias em signos perturbadores. Desafiando os olhares, aquelas fotografias dizem a cada mulher:
tu, que és bela porque o tempo ainda não corrompeu a juventude e a lisura do teu corpo, serás irremediavelmente assim.
Queremos desviar o olhar, quebrar o espelho do futuro. Nalguns rostos notam-se os embaraços do desconforto face ao corpo, enquanto vozes sussurram comentários diversos:
que velhas desenvergonhadas! Que lata! É preciso muita coragem!
Da vergonha já sabemos. O que desafia a norma transforma-se em estigma.
É a coragem que importa reter.
Qualquer que tenha sido a intenção com que aquelas mulheres quiseram exibir-se e dos significados com que o artista pretendeu dotar as fotografias, ao aparente despudor daquele existir para o olhar dos outros acresce uma mensagem que pode transformar a visão dos corpos decadentes numa grande lição de vida.
É de vidas que trata aquele painel.
Biografias longas, cujas experiências se lêem naquelas imagens.
Contra a norma e contra o mito, os corpos envelhecem.
Porque o tempo é o grande escultor.
E é essa a história que têm para contar” (MARQUES, (2004: 9).
Bibliografia
CARVALHO, D. Alberto. (2012). Antropologia da Exclusão ou o Exílio da Condição Humana. Porto Editora. Porto. p. 7.
MARQUES, Alice. (2004). Mulheres de Papel. Livros Horizonte. Lisboa. p. 9.