Acordar o instinto

Publicado por: Milu  :  Categoria: Acordar o instinto, PARA PENSAR

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“Tornar o simples em complicado é fácil, tornar o complicado em simples é criatividade.”

Charles Mingus

 

Freud, em O Mal-estar da Civilização, defende que o processo de civilização nos obriga a reprimir cada vez mais os nossos instintos.

Perdemos a força, a imediatez e a ingenuidade do animal selvagem, do primitivo, dos mais novos. Tornamo-nos domésticos, prudentes, pacatos, respeitadores das leis, dos regulamentos e das proibições. E temos uma impressão de vazio, de aridez. Também a fantasia se apaga. Já não nos sentimos imersos numa natureza animada por forças extraordinárias e divinas.

A nossa ciência vê apenas

células,

moléculas e enzimas.

Do céu desaparecem as inteligências que regulam o nosso destino. Restam planetas gasosos e cometas de gelo. O desencanto do mundo é paralelo à insensibilização da vida.

Este mal estar faz-se sentir, na alma juvenil, como necessidade de sair da vida diária. Com a música, com um excesso de movimento, de excitação. Mas sobretudo abandonando o mundo diurno para se juntar com os outros da noite.

A família está habituada a ver os jovens cansados diante dos livros. E não sabe que energia explosiva podem eles manifestar algures. Para ir a uma discoteca podem fazer centenas de quilómetros. Assim que se inicia a música, explodem, vivem a potência dos seus corpos e sentem-se livres, vivos.

É à noite, nos ritos da noite, que redescobrem a sua natureza instintiva profunda.

Nas pessoas menos jovens esta mesma exigência manifesta-se como desejo de viajar, de férias. Sonhos de encontrar lugares maravilhosos e não contaminados, onde desaparecem os vínculos, os travões, os limites da vida diária. Onde é possível que cada um exprima a sua natureza selvagem, dionisíaca, em encontros mágicos, encantados. Muitas pessoas hoje conseguem viver, suportar o trabalho diário só porque estão à espera da noite mágica da discoteca ou das férias.

Também há momentos históricos em que gerações inteiras, grandes movimentos tentam juntar-se às raízes profundas do ser para reencontrarem a espontaneidade e a simplicidade perdida. Foi o que fizeram os Franciscanos no século XIII, e depois muitos outros movimentos religiosos e filosóficos.

E o que fizeram há trinta anos os filhos das flores, que rejeitaram a sociedade moderna, o sucesso, a competitividade, o dinheiro. Para reencontrar o sentido da natureza, a vida simples, o amor, e um alargamento místico da consciência. Explosões luxuriantes e criativas, sonhos colectivos que marcam épocas de viragem.

Mas este tipo de renovamento profundo acontece também no indivíduo. Não podemos fazer nada de belo e de grande na arte, na ciência, na vida se não atingirmos estas energias. Se não nos libertamos dos hábitos, das regras, dos medos que nos prendem e embotam  a nossa mente. Se não fizermos emergir o desejo, a motivação autêntica, a vocação escondida no fundo do nosso espírito.

Cada criação é uma revolta, uma transgressão, um despertar, um renascimento.

Então a vida flui cheia de força. Aquilo que pesava em nós, que nos esgotava não eram as regras em si, mas sim as regras separadas das suas fontes. Decerto, liberto, o impulso transforma-se milagrosamente em forma, em ordem. A vocação para a dança leva-nos naturalmente a moldar os músculos e o corpo até serem capazes de fazer gestos, perfeitos, harmónicos. O artista, obcecado pela sua criação, não é nada indulgente consigo mesmo.

O apaixonado acha leve qualquer cansaço, qualquer prova para o seu amor.

Bibliografia

ALBERONI, Francesco. (2000). Tenham Coragem. Bertrand Editora. Venda Nova. pp. 66-67.