A ordem das coisas

Publicado por: Milu  :  Categoria: A ordem das coisas, PARA PENSAR

dep

“Não eduques as crianças nas várias disciplinas recorrendo à força, mas como se fosse um jogo, para que também possas observar melhor qual a disposição natural de cada um.”

Platão

Este post contém um breve resumo da leitura que fiz ao livro “Porque é que os nossos filhos se tornam tiranos?” da autoria do psiquiatra alemão, especializado em pedopsiquiatria Michael Winterhoff. A todos aqueles que se interessam e desejam compreender os meandros da psique infantil, aconselho vivamente a leitura deste livro.

♠♠♠

(…)

“Todos os dias vejo no meu consultório crianças e jovens com as mais variadas perturbações. Ao longo da minha actividade de psiquiatra infantil, a análise das perturbações que foram aparecendo sofreu alterações tão sérias, que é motivo para as maiores preocupações acerca do futuro da sociedade em geral. Se não houver uma consciencialização acerca destas perturbações, a consequência será um cada vez menor número de jovens e adultos com capacidade de trabalho e relacionamento.

No que diz respeito a uma grande parte das crianças e jovens que causam problemas em todos os domínios da vida, estamos perante pessoas cujo grau de maturidade psíquica, segundo o modelo que desenvolvi ao longo de uma observação de largos anos, estagnou mais ou menos ao nível, no máximo, uma criança de três anos. Por outras palavras, estes jovens estão retidos na fase psíquica dos primeiros anos da infância, pelo que há uma grande diferença entre as suas idades física e psíquica. Não conseguem por isso, de forma alguma, construir uma relação com o seu ambiente que não tenha perturbações. Qualquer aproximação a estes indivíduos parece ter-se tornado impossível. Eles aterrorizam o ambiente à sua volta com o seu comportamento inaceitável e são absolutamente imunes a tentativas de controlo vindas do exterior.
A minha abordagem, considerando o desenvolvimento psíquico das crianças como o cerne da questão, é a única que possibilita analisar esta tendência de forma razoável e desenvolver estratégias que a possam contrariar de modo eficaz.

(…)

Encontramo-nos entretanto num estado de excepção, em que as crianças se tornaram educadoras dos pais, guiando-se por pura acção dos seus desejos, sem que lhes sejam mostrados limites. O motivo disto não se prende com uma maldade inata, mas com o facto de as crianças não estarem psiquicamente em condições de sentir que os seus comportamentos estão errados” (p. 10-11).

“As crianças que, devido a pressupostos psíquicos errados, não estão em condições de distinguir os comportamentos certos dos errados tornam-se precisamente naqueles tiranos e «monstros» que, com grande perplexidade, encontramos cada vez mais no nosso quotidiano.
A pedagogia, os conceitos educacionais, as maneiras de dar aulas na escola e na creche, bem como a educação diária em casa dos pais, tudo isto só pode ter um efeito completo, colocando as crianças no caminho certo, se ao mesmo tempo houver a preocupação de que o seu estado de desenvolvimento psíquico esteja a um nível adequado à idade.

No entanto, muitas pessoas responsáveis pela educação não incluem hoje esse facto no seu radar pessoal. Partem em muitos casos do princípio de que a psique é algo que se desenvolvem por si, quase em paralelo. As falhas no desenvolvimento psíquico são entendidas, numa perspectiva de demência, como doenças posteriores, influenciadas pelo meio exterior, e que, na maioria dos casos, podem ser ultrapassadas por via da análise e da eliminação das suas causas.

O mau comportamento gritante dos jovens quase nunca é encarado tomando em consideração a sua maturidade psíquica. Parece ser demasiado difícil imaginar que coisas relativamente inofensivas como a esporádica recusa de cumprir diversas tarefas diárias, bem como coisas pesadas como o roubo ou a violência, podem ser muito mais bem explicadas com base no processo de maturidade psíquica do que através de modelos que apenas vêem as influências sociais como factores” (p. 11-12).

23

(…)

“Quem, no seu círculo de pessoas conhecidas, tem professores, educadores de infância ou outras pessoas a trabalhar em áreas pedagógicas, conhece bem as queixas sobre a aparentemente desesperançada situação das crianças e jovens. Em grande parte, estes não parecem ter respeito nem qualquer orientação ao nível dos valores e normas que são de um modo geral obrigatórios. Em muitos casos, trata-se de crianças de famílias imaculadas, em relação às quais não se aplicam as explicações habituais, como «infância difícil», «família arruinada» ou «ambiente social adverso». As dificuldades atingem cada vez mais crianças e jovens cujos pais convivem com eles desde o primeiro dia com afecto, gratos por todas as recomendações bem-intencionadas em matéria de educação, e procurando pôr em prática conselhos pedagógicos inovadores” (p. 13).

(…)

“Neste contexto, são lançadas fortes acusações à chamada geração de 68, ou seja, todos aqueles que, à conta de uma muito particular experiência geracional, a saber, a libertação das amarras da educação e da disciplina, sentidas como demasiado apertadas, parecem ter criado uma virtude: conceitos de educação anti-autoritária e, acima de tudo, uma condenação aparentemente absoluta da noção de autoridade constituíram durante muito tempo consenso entre todos aqueles que trabalhavam na área da pedagogia. Também os pais preferiam muitas vezes adoptar a «rédea solta», de modo a não cometer os mesmos erros com que os pais deles os haviam marcado.

Hoje observa-se em muitos casos uma mudança radical. Ao nível da educação, é cada vez mais aconselhada uma maior rigidez e responsabilização, a famosa palmada no rabo voltou a poder ser discutida, sendo que a actual tendência parte frequentemente do princípio de que tal «nunca fez mal a ninguém». Trata-se de uma afirmação hoje absolutamente aceitável em público e que, independentemente de estar certa ou errada, teria suscitado grande indignação não há muito tempo atrás” (p. 13-14).

LIJ1

(…)

“(…) é importante referir mais uma vez que nenhum destes exemplos visa desacreditar qualquer grupo de pessoas. As culpas não devem ser apontadas às crianças, nem aos educadores nem aos pais. Não pretendo conduzir aqui qualquer discussão sobre culpa, que acabe por dividir ainda mais a sociedade, desviando o olhar da verdadeira problemática. Trata-se antes de compreender que os diferentes sintomas de crianças e jovens aparentemente resistentes à educação podem ser reduzidos a uma só coisa, a saber, a falta de maturidade psíquica. Só quando os adultos aprenderem a reflectir criticamente sobre o seu próprio comportamento com base neste tipo de constatação será possível colocar as crianças no lugar a que têm direito na sociedade. Isso quer dizer que as crianças devem de ser vistas como crianças. Chegámos actualmente ao ponto em que as encaramos como pequenos adultos, em pé de igualdade connosco, e desse modo esperamos sempre demasiado delas” (p. 15).

(…)

“Os direitos das crianças são um tema forte. Veja-se por exemplo, a nível local, a introdução do chamado parlamento das crianças em muitos municípios, onde as crianças, à semelhança dos adultos, e num processo parlamentar onde são definidas posições, são chamadas a desenvolver uma opinião sobre opções a nível local, opinião essa que acaba por ter influência na tomada de decisão da câmara municipal.
A criança em si aparece-nos hoje como um autêntico salvador, efeito acentuado pela falta de crianças na sociedade moderna. O facto de nas últimas décadas terem nascido cada vez menos crianças torna-as, como no contexto de uma economia de mercado, um bem raro e consequentemente desejável e valioso, devendo ser tratado de modo privilegiado.
Deste modo, as crianças são forçadas a um papel que não se lhes adequa, uma vez que lhes faltam todas as qualidades psíquicas para poderem desempenhar esse papel. O papel que lhes é atribuído é o de parceiro dos adultos.
Quando encontramos pais que conversam sobre os filhos que andam na creche ou nos primeiros anos de escola, ouvimos muitas vezes frases como «o meu filho tem uma vontade muito forte, e impõe-se porque sabe o que quer». Com descrições como esta, é atribuída à criança uma personalidade própria que, num estado tão inicial da sua vida, não lhe é de todo possível ter, uma vez que o desenvolvimento da personalidade só começa no oitavo ou nono ano de vida” (p.25).

chefe-lider

(…)

“Logo que a criança gatinha e anda, ela examina as funções de todas as coisas que existem à sua volta, sentindo os contornos, metendo o dedo ou lambendo. Uma cadeira, por exemplo, é primeiro percebida como algo que serve para empurrar, e depois como objecto para trepar. A função enquanto peça de mobiliário para uma pessoa se sentar só muito tarde é entendida por uma criança pequena.
Também as pessoas que se relacionam de perto com a criança são examinadas desse modo. É neste contexto que a criança na fase narcisista da primeira infância, dos dez aos dezasseis meses de vida, padece da ideia de que pode controlar e determinar tudo e todos, e de que goza de absoluta autonomia.
Até ao terceiro ano de vida dá-se então a descoberta, em passos subsequentes, de que tanto a criança como o adulto são pessoas individuais. A criança consegue nessa altura perceber também que um adulto é maior, mais forte e mais poderoso. A partir deste momento, a criança pequena reage ao adulto em situações de conflito, ou para utilizar a formulação clássica, «a criança ouve». Uma vez completada esta fase, a criança alcançou maturidade para entrar na creche, reagindo a intervenções pedagógicas da parte do adulto.

A situação actual, conforme entretanto se revela no meu trabalho diário, mostra que estamos no caminho ideal para gerar cada vez menos crianças capazes de completar um adequado desenvolvimento infantil. Devo para além disso acrescentar que há cada vez menos crianças a formar funções psíquicas a um nível satisfatório. Como consequência disso, os últimos quinze anos, mostram um enorme aumento nos tipos de perturbações em crianças e jovens. E as perturbações das crianças que me são apresentadas não podiam ser mais variadas” (p. 32-33).

(…)

“A conduta social de muitas crianças é altamente problemática. No seu ambiente, são autênticos tiranos em ponto pequeno. Comportam-se com extrema agressividade física e verbal com crianças da mesma idade, e em certa medida não se mostram em condições de se integrarem num grupo. Mas não é só com outras crianças e jovens que estas crianças demonstram um comportamento problemático. O seu egoísmo não conhece também limites na relação com os próprios pais e avós, e com as pessoas ligadas à educação, como educadoras ou professores” (p. 34-35).

(…)

“Um professor pode inclusivamente examinar na sua própria escola se as crianças com perturbações são casos isolados ou se, pelo contrário, passaram com o tempo a constituir um número significativo. Para tal, bastar-lhe-á entrar na aula no início da lição e dizer aos alunos que tirem um determinado livro. A reacção da turma será deveras reveladora e irá confirmar a já mencionada impressão. Quase nenhuma criança irá seguir imediatamente esta indicação clara e facilmente compreensível. Para a maioria será necessário pelo menos um segundo, ou até um terceiro pedido. E muitas crianças simplesmente não irão tirar o livro das suas mochilas.
Não são apenas os professores da escola primária, como nos exemplos que acabámos de dar, que se encontram perante esta situação. As perturbações têm efeitos em toda a vida social das crianças, tanto na esfera privada como na esfera social. Este livro não poderia ter sido escrito há alguns anos atrás, pois os desenvolvimentos aqui descritos não eram considerados patológicos, mas sim aceites como uma consequência normal e desejável da educação das crianças, que assim se tornavam indivíduos autónomos” (p. 41).

interna3

(…)

“A tendência de uma criança de cinco anos para manipular a mãe seria, por comparação, deixada para segundo plano e considerada pouco importante. Os princípios deste desenvolvimento encontram-se nos conceitos educacionais dos anos 70 e 80, os quais, baseados nos conceitos sociais da geração de 68, viam como sua tarefa principal cortar com a noção de autoridade. Educar no sentido de controlar e dirigir era visto com bastante suspeição. Em larga medida, a geração da guerra era olhada como tendo aparentemente recuperado noções educacionais do tempo do fascismo, voltando de novo a utilizá-las” (p. 41-42).

(…)

“As crianças não deveriam mais ouvir da parte dos adultos o que era bom ou mau para elas, algo frequentemente interpretado como uma doutrinação inadmissível. Ao invés, deveriam desenvolver-se livremente, coleccionar experiências, deixar-se influenciar o menos possível pelos adultos, e deste modo tornar-se indivíduos livres e auto-determinados. Entretanto, os da geração de 68 já passaram a idade da revolução, criaram os seus filhos, e há décadas que trabalham nas suas profissões, muitos deles donos de empresas ou gestores de companhias, tendo responsabilidades na selecção e direcção de pessoal. E de repente reparam no que fizeram os espíritos por si invocados” (p. 42).

(…)

“Aquilo que antes era considerado patológico e, por conseguinte, necessitando de tratamento, ganhou hoje em parte o estatuto de normal. Isto funciona segundo o princípio da maioria: quanto mais crianças apresentam uma perturbação que antes era diagnosticada como deficiência de desenvolvimento, mais cedo essa perturbação será aos poucos encarada como aceitável e não tão má assim, e até, em dado momento, vista como um comportamento normal” (p. 48).

(…)

“A menção à alteração da situação escolar é interessante no que diz respeito à referida nova avaliação dos comportamentos problemáticos. Vem demonstrar, mais uma vez, que tanto o maior nível de ruído como traços de vandalismo, renitência da parte dos alunos e um baixo nível geral de formação são considerados, hoje, normais. É possível então tirar a conclusão, suportada por observações feitas no mundo real, de que a escola corre o perigo de simplesmente se ajustar à alteração da situação e de se orientar segundo as exigências do novo comportamento dos alunos. Há uma mudança nos padrões de exigência de aproveitamento e comportamento social, e essa é uma mudança no sentido de um permanente nivelamento por baixo. Tal não é porém concluído nem alegremente transmitido numa qualquer conferência escolar. Acontece sim de uma forma subtil, mal se notando no exterior, caso não se observe o panorama geral e se viva apenas no momento presente, como é hoje o caso da maioria das pessoas. Isto representa um grande perigo para as crianças, e os pais não percebem isso. Nem a criança tem apoio e exigência de acordo com a sua idade, nem os pais dispõem de orientação e padrões realistas: vivem todos embalados na certeza e segurança de que está tudo em absoluta ordem” (p. 49).

(…)

“O nível dos alunos diminuiu e a escola adequa-se a isso. Existem linhas de orientação oficiais que prescrevem o número máximo de alunos que podem ficar abaixo da média no âmbito de um trabalho de turma. Os professores orientam-se por isso e sobem automaticamente a média, de modo a valorizar os trabalhos de turma” (p. 51).

Image267

(…).

“As deficiências no desenvolvimento psíquico não são palpáveis e, num mundo que só acredita no que vê, também não são aceites como feridas. Daqui decorre a ideia de que a psique se desenvolve quase por si própria, que todas as pessoas têm uma psique e que podem naturalmente dispor, consoante a faixa etária, de determinadas funcionalidades. Isso é falso, pois as funções psíquicas positivas, que são as que aqui me interessam, só se formam durante a infância. Não são de todo automáticas e imunes à influência do meio, bem pelo contrário. A psique infantil é, antes de mais e acima de tudo, formada pela percepção que a criança tem da contraparte adulta enquanto limite da sua própria individualidade. (…). Com a idade, torna-se cada vez mais importante que o limite seja substituído pelo exemplo, e que as crianças reconheçam funções psíquicas, por exemplo, nos pais, e que possam deixar que essas funções amadureçam dentro de si, mediante treino constante” (p. 60).

(…)

“Concretamente falando, isso quer dizer que eu me devo mostrar claramente contente com um comportamento positivo do meu filho e, da mesmíssima forma, claramente zangado com um comportamento negativo, acrescentando também, por exemplo, um determinado tom de voz. A este nível, é sempre de respeitar o princípio de que a pessoa de relacionamento da criança deve ser, se possível, constante e inequívoca, de modo a que a criança aprenda melhor e mais depressa com o reflexo. Um efeito lateral positivo, que quase ocorre automaticamente, é o facto de eu com isso transmitir também segurança à criança, ao passo que se a minha forma de reagir mudar muito, isso pode levar à sua perplexidade, tendo como consequência uma deficiente activação das funções psíquicas adequadas” (p. 62).

(…)

“Uma observação extensiva no contexto de um enquadramento psíquico revela com precisão os precipícios para os quais a sociedade caminha, já que esta vai baixando sempre cada vez mais os padrões de avaliação do comportamento humano e das relações entre as pessoas, encontrando inclusivamente explicação para claras deficiências de comportamento que, no entanto, não fazem qualquer sentido face à situação global” (p. 71).

(…)

“As pessoas envolvidas na actividade pedagógica tendem muitas vezes a observar e diagnosticar, em vez de confrontar e avaliar as crianças à luz dos seus comportamentos (ainda que estes sejam na verdade o elemento fundamental), de modo a dar à imatura psique da criança pequena, através de permanente repetição, a possibilidade de levar a cabo constantemente processos de amadurecimento e assim construir funções psíquicas. O ponto principal é a continuação do desenvolvimento da criança. Por outras palavras, a investigação das causas do mau comportamento infantil não deve de ser a prioridade. Não obstante, é naturalmente importante que os educadores reflictam sobre o que possa estar na base desse comportamento em particular.

Porém, uma criança agressiva, que atira cadeiras por todo o lado, tem de ser, antes de tudo, confrontada com o seu comportamento. Em vez disso, acontece que muitas vezes se procuram problemas no ambiente em redor da criança: talvez ciúmes de um irmãozinho ou possíveis problemas dos pais. Uma vez estabelecido o diagnóstico adequado, segue-se a transferência para os terapeutas apropriados, e o problema é nesses casos delegado, em vez de enfrentado e solucionado. Há o perigo de que, através deste comportamento do adulto, seja recusado à criança o seu natural direito à orientação e contenção, a ser assegurado pela sua pessoa de relacionamento.

A criança é considerada patológica sem mais discussão e transferida para o circuito de terapias e medicamentos. A falta de uma resposta adequada à carência de orientação, que se exprime através de atitudes agressivas, tem porém geralmente como efeito a criança continuar a testar os limites neste sentido. A criança continua a protagonizar investidas agressivas, porventura mais violentas até, que são com efeito absolutamente incompreensíveis para o adulto, à luz da terapia iniciada” (p. 84-85).

Bibliografia

WINTERHOFF, Michael. (2011). Porque é que os nossos filhos se tornam tiranos?. Lua de Papel (Leya). Alfragide.