Fanfarronice, quanto custas…
“Há esperanças que é loucura ter. Pois eu digo-te que se não fossem essas já eu teria desistido da vida.”
José Saramago
É este o preço da masculinidade.
A masculinidade como um fardo difícil de carregar – Ser um homem é… demonstrar força e virilidade, mesmo quando se alberga em si um muito de menino.
A força. Mostra o que vales. Arreia!
“Gabam-se os trabalhadores das pontadas que apanharam nos trabalhos de arroteia. Cada uma delas é medalha para vanglórias de taberna, entre o casco e o copo, Já apanhei tantas ou tantas pontadas a arrotear para Berto e Humberto. Estes é que eram os trabalhadores bons, os que, em tempo de chicote, mostrariam envaidecidos os vergões encarnados, e se sangrarem melhor ainda, gabarolas iguais ao rebotalho das cidades que presumiam de virilidade tanto maior quanto mais cavalos duros ou cancros moles adquirissem no comércio da cama alugada.
Ah, povo conservado na banha ou no mel da ignorância, que nunca te faltaram ofensores. E trabalha, mata-te a trabalhar, rebenta de for preciso, que assim deixarás boa lembrança no feitor e no patrão, ai de ti se ganhas fama de malandro, nunca mais tens quem te queira. Podes ir pôr-te às portas das tabernas, com os teus companheiros de desfortuna, eles próprios te hão-de desprezar, e o feitor, ou o patrão, se lhe deu para isso, olhará para ti com nojo e tu só ficarás sem trabalho, para aprenderes.
(…)
Emenda-te, se ainda vais a tempo, jura que já tiveste vinte pontadas, crucifica-te, estende o braço para a sangria, abre as veias e diz, Este é o meu sangue, bebei, esta é a minha carne, comei, esta é a minha vida, tomai-a, com a bênção da igreja, a continência à bandeira, o desfile das tropas, a entrega das credenciais, o diploma da universidade, façam-se em mim as vossas vontades, assim na terra como nos céus.
(…)
Mas os brinquedos não acabaram. O último a chegar, se tem vergonha na cara, vai querer ser o primeiro a carregar, sempre é uma compensação. Está a armar-se o monte de lenha donde sairá feito o carvão, e tu dizes assim, depois de teres posto uma saca nas costas para não sentires tanto a dor que vem aí,
Levantem lá esse pau, que quem o leva sou eu.
Está o capataz a olhar, é preciso provar aos camaradas que és tão homem como eles, e além disso não podes ficar sem trabalho a semana que vem, tens os filhos, e então dois levantam o pau, não são os teus filhos mas é como se fossem, já eles gemem de esforço, e põem-to em cima dos ombros, tu baixaste-te como um camelo,
parece que já viste algum,
e quando sentes a carga vão-se-te os joelhos, mas fincas os dentes, retesas os rins e aos poucos vais-te aprumando, é um tronco enorme, uma pernada gigantesca, julgas até que tens aos ombros um sobreiro de cem anos, e dás o primeiro passo, que longe está o monte de lenha, os camaradas a olhar, o capataz,
Sempre quero ver se aguentas, se aguentares és um valente. É isso mesmo, ser um valente, aguentar o pau e as omoplatas que rangem, o coração, para ficar bem visto pelo capataz, que irá dizer a Adalberto,
Aquele Mau-Tempo, quem diz Mau-Tempo diz outro nome qualquer, é um valente, puseram-lhe o pau nas costas, e nem o patrão imagina, homem duma cana, foi uma acção bonita.
Será, mas por enquanto só destes três passos.
A tua vontade já é deitar a carga para o chão, mas isso pede-o o corpo violentado. A alma, se a tens direito, o espírito, se o pudeste parir dentro de ti, dizem-te que não podes, que preferirás rebentar a ficar mal visto na tua terra, fracalhote, tudo menos a vergonha. Grandes declamações se fazem desde há dois mil anos por ter levado Cristo a cruz ao Gólgota, e com ajudas do Cireneu, e deste cruxificado que aqui vai ninguém fala, ele que mal ceou ontem e quase nada comeu hoje, ainda com meio caminho por andar, já os olhos se lhe turvam, é uma agonia, senhores, toda a gente a ver, e gritam,
Ai que não é capaz, ai que não é capaz, e tu deixaste de ser tu, mas vá lá que não chegaste a animal, grande vantagem, porque este deixar-se-ia ir abaixo das pernas, ficaria deitado sob a carga, e tu não, tu és um homem, és o parceiro enganado de uma grande batota universal, brinca, que mais queres, o salário não dá para comer, mas a vida é este jogo alegre, Está quase, ouves dizer, e sentes-te como se não fosses deste mundo, um carrego assim, tenham piedade, dêem aqui uma ajuda, camaradas, todos juntos custará menos a cada um, mas não, não pode ser, é uma questão de honra, nem tu falarias nunca mais na vida a quem quisesse ajudar-te, a este ponto vai o engano de todos vós.
Largas para o chão a pernada no exacto sítio onde ela devia ficar, grande proeza, e os camaradas dão vivas, já não és o último, o capataz diz gravemente, Sim senhor, bonita acção.
As pernas tremem-te, estás aguado como mula que muito carregou, e custa-te a respirar, a pontada, meu Deus, a pontada, és um ignorante, o que tu tens é uma distensão, uma ruptura muscular, não sabes as palavras, pobre besta.”
Bibliografia
SARAMAGO, José. (1987). Levantado do Chão. Editora Caminho. 7º Edição. Lisboa. pp.73-76.