“O regresso às raízes”

Publicado por: Milu  :  Categoria: "O regresso às raízes", ISLÃO

“Apesar de tudo eu ainda acredito na bondade humana”

Anne Frank

Este post, intitulado “O regresso às raízes”, também título de um capítulo do livro de onde foram retirados os excertos abaixo transcritos, consiste numa pálida descrição das tensões geradas no que diz respeito à questão do mundo muçulmano e das suas problemáticas relações com Ocidente. Nos anos 70, o nacionalismo e socialismo árabe viram-se desacreditados pela derrota frente a Israel na guerra de 1967, além do fracasso económico e da corrupção dos governos. Foi este sentimento de humilhação e de desonra que abriu as portas para uma ideologia revolucionária que se espalharia pelo mundo islâmico. Os líderes deste novo movimento argumentavam que o Islão tomara o caminho errado, quando adoptara leis e costumes dos infiéis. Portanto, era preciso implantar regimes que seguissem uma interpretação extrema da lei islâmica.

“A característica mais importante desta nova era foi o afastamento progressivo em termos de hegemonia e de identificação ideológica, dos movimentos, partidos e líderes nacionalistas, seculares e revolucionários, vindos do exército e da burocracia estatal. Os movimentos que agora ascendiam inspiravam-se na identidade religiosa e tendiam para a radicalização, para o fundamentalismo, entendido como rigorismo meta-histórico e literalmente coerente na interpretação dos textos sagrados – do Corão e dos Hadith. Estes movimentos, se bem que não sincronizados nem necessariamente paralelos, formaram uma vaga de fundo que ia ser a matriz, não só de alguns Estados ou poderes nos Estados, mas também de formações activistas clandestinas que passaram a ocupar a linha da frente no combate contra cristãos, judeus e pagãos e, sobretudo, contra aqueles que, no mundo muçulmano, consideram cúmplices dos «ímpios». (…). Eugene Rogan dava conta desta mudança:

Considerando a proeminência actual do Islão na vida pública por todo o mundo árabe, é fácil esquecer quão secularizado estava o Médio Oriente em 1981. Por toda a parte, com exclusão dos Estados mais conservadores do Golfo, as modas ocidentais eram preferidas às vestimentas tradicionais. Muitas pessoas bebiam álcool abertamente, sem se importarem com a proibição islâmica. Homens e mulheres conviviam à vontade em lugares públicos e nos locais de trabalho, na medida em que cada vez mais mulheres acediam à educação superior e à vida profissional

As ideias e valores ditos «fundamentalistas» ou «integristas» tiveram, neste tempo do Islão, duas origens: uma foi a tradição wahabita, profundamente aliada e ligada , desde o século XVIII, à Casa de Saud. Os wahabitas* defendem como dogma o poder infinito de Deus, a predestinação, a obediência cega aos chefes da comunidade e ao poder legal (mesmo que este seja imoral ou ímpio) e rejeitam toda e qualquer interferência da razão humana na interpretação e consideração da fé. Convém notar que este purismo representa, para alguns estudiosos, uma ruptura com o Islão clássico e com as suas escolas teológico-jurídicas, que sempre tinham integrado as heranças culturais persas, greco-romanas e bizantinas. Era também uma ruptura com os costumes urbanos e com as hierarquias sociais complexas das grandes civilizações mesopotâmicas” (PINTO, 2015: 104-106).

O wahabismo nasceu no isolamento, no meio do deserto da Arábia, fruto da reflexão crispada e literal dos textos sagrados da Sunna e dos Hadith, cuja letra não era discutida, nem interpretada, nem alterada, mas pura e simplesmente cumprida. A outra fonte do islamismo integrista, essa renovada modernamente, eram os Irmãos Muçulmanos, um movimento fundado por Hassan al-Banna em 1928 e continuado pelo seu discípulo Sayyid Qutb” (PINTO, 2015:106).

“Qutb passara pelos Estados Unidos, cujo materialismo e sede de concorrência considerava odiosos, e enfrentara, com os seus companheiros, os governos laicos e autoritários do nasserismo; com eles fora perseguido, encarcerado e torturado e vira muitos dos seus irmãos condenados à morte. O próprio Qutb acabaria por ser também enforcado em 1966, seguindo o destino dos seu mestre Hassan al-Banna, assassinado em 1949. (…). Os Irmãos suscitaram a desconfiança e a repressão dos regimes laicos progressistas e militares do tipo nasserista e também dos nacionalistas do Baath sírio e iraquiano. O antagonismo entre estas orientações – as religiosas contra as seculares – marcam uma das grandes fracturas ideológicas do mundo árabe e da História do moderno Médio Oriente. Além do Egipto, outro crucial exemplo vinha da Síria” (PINTO, 2015:106-107).

“A Síria pós-Segunda Guerra Mundial era um Estado independente, cuja população, em termos de orientação religiosa, era constituída por 90% de muçulmanos e 10% de cristãos. Dos muçulmanos, cerca de 57% eram sunitas e 10% pertenciam a um ramo xiita, os alouitas. Esta minoria alouita dominava o Partido Baath e as Forças Armadas. A partir de 1970 e depois da sangrenta luta nas cúpulas político-militares, o poder estava nas mãos de Hafez al-Assad, o chefe de Estado-Maior da Força Aérea, que ganhara a liderança do país com um golpe militar, a 16 de Novembro de 1970” (PINTO, 2015:107).

(…)

“Foram dois dias de horror, os que se seguiram à explosão da bomba que matara Bashir. Cerca de 1000 a 2000 pessoas foram executadas, com requintes de ferocidade” (PINTO, 2015:110).

(…). Em 1982, 1983 e nos anos seguintes, vão multiplicar-se estes atentados suicidas, marcando um novo estilo que irá também caracterizar um novo modelo de terror internacional. Os seus perpetradores no Líbano pertenciam à comunidade xiita e eram apoiados ou mandatados pelo Irão e pela Síria. Entre eles, Imad Mughniyeh, um jovem religioso próximo dos iranianos e ligado aos atentados de 1983 contra a Força Internacional Franco-Americana em Beirute. O Hezbollah, «Partido de Deus», de que Mughniyeh era um dos fundadores, teve origem entre os estudantes de teologia de Balbeck, no Líbano. Surgiu a seguir à invasão israelita, inspirou-se no Irão de Khomeini e o seu secretário-geral foi Hassan Nasrallah” (PINTO, 2015:110-111).

“Mas nesses anos 80, também as mudanças de direcção nas super-potênciasEstados Unidos e União Soviética – iam influenciar profundamente a situação no mundo islâmico e no Médio Oriente. A revolução iraniana, logo de início, diaboliza os Estados Unidos, acusados pelos novos governantes de Teerão de serem, entre muitas outras coisas, os grandes protectores e aliados do Xá. A América era o «novo Satã» e, em represália, a sua embaixada em Teerão era ocupada e os diplomatas tomados como reféns. Ao mesmo tempo, os grupos religiosos xiitas começam a envolver-se , encorajados e apoiados pelo Irão, em ataques a pessoas e interesses norte-americanos e ocidentais, especialmente em sequestros, a fim de afastarem do Médio Oriente os estrangeiros indesejáveis” (PINTO, 2015:111).

“Para a opinião americana, a crise dos reféns e a caótica operação de resgate Desert One eram uma prova de debilidade da liderança de Jimmy Carter e dos democratas. Também por isso, em Novembro de 1980, a escolha dos eleitores recaía num presidente republicano e nacional-conservador, Ronald Reagan. Reagan vai lançar-se numa política de reafirmação do poder dos Estados Unidos. À frente da CIA, com a experiência do OSS, onde se ocupara da guerra económica contra a Alemanha hitleriana e da coordenação das redes da resistência nos territórios ocupados pelo Reich, Casey tinha uma agenda revolucionária: queria lançar uma ofensiva contra a União Soviética, que Reagan apelidava de «Império do Mal». Para combater esse Império do Mal, Wasshington, o «Império do Bem», executou vários projectos, operações e acções. Desde a Iniciativa de Defesa Estratégica, vulgo Guerra das Estrelas, até ao encorajamento, abastecimento e apoio das resistências armadas nas áreas de expansão soviética, na Ásia, na África e na América Central” (PINTO, 2015:111-112).

“Além destas iniciativas operacionais, Casey vai entender-se com os sauditas para, através da arbitragem nos mercados petrolíferos, provocarem uma baixa do preço do crude, de modo a agravar a situação económica da União Soviética, muito dependente das vendas de petróleo e gás ao exterior. Estas políticas da nova administração norte-americana tiveram particular importância no Médio Oriente e no mundo islâmico. O apoio aos mujahedin afegãos, decidido ainda na administração Carter, mas muito reforçado por Casey, foi uma delas – e ia ter resultados inesperados” (PINTO, 2015:112).

“Os soviéticos estavam a braços com uma sublevação em alta escala no Afeganistão, desde a invasão de 1979. Os «soldados de Deus», como lhes chamou Robert Kagan, não lhes davam quartel. Foi uma guerra que, por algum tempo, os media se esforçaram por ignorar: não era admissível que os progressistas, os comunistas soviéticos, ajudassem ali um governo isolado e impopular a impor um programa político e social que pretendia fazer a Reforma Agrária, a secularização, a ocidentalização forçada dos costumes, que o povo rejeitava. A brutalidade da repressão era incomensurável: enquanto os mujahedin eram impiedosos com os combatentes mas poupavam os civis, os soviéticos introduziam o terror sistemático, massacrando as populações das aldeias, queimando vivas mulheres e crianças dentro de mesquitas, violando raparigas e bombardeando tudo. Não faltaram os My Lai** no Afeganistão, mas poucos no Ocidente ouviam falar deles. As histórias que desmistificavam os ventos da História não eram populares” (PINTO, 2015:112-113).

“A partir dos anos 80 as coisas começaram a mudar, graças a Casey, ao seu entendimento com os sauditas e a Charles Wilson, uma personagem depois recordada num best-seller de George Crile e numa fita de Mike Nichols. Charles Wilson era um democrata texano que se apaixonara pela causa dos afegãos e viajara várias vezes ao Paquistão, onde conheceu o Presidente, o general Zila. Os paquistaneses, através da Inter-Services Intelligense (ISI) ajudavam os afegãos, embora conduzissem também a sua própria política de selecção, privilegiando alguns entre os vários grupos de guerrilha” (PINTO, 2015:113).

*Islamismo – Os termos Wahabismo, Salafismo, Jihadismo constituem algumas das correntes que povoam o universo islamista. Têm em comum o facto de todas apelarem ao regresso da pureza do Islão inicial.

**May Lai – é o nome da aldeia vietnamita onde em 16 de Março de 1968 centenas de civis sul-vietnamitas, na maioria mulheres e crianças, foram executados por soldados do exército dos Estados Unidos no maior massacre de civis cometido por tropas americanas durante a Guerra do Vietname.

Bibliografia

PINTO. Nogueira, Jaime. (2015). O Islão e o Ocidente. A Grande Discórdia. D. Quixote. Alfragide.

O Ouro Negro

Publicado por: Milu  :  Categoria: ISLÃO, O Ouro Negro

Não há nenhum caminho tranquilizador à nossa espera. Se o queremos, teremos de construí-lo com as nossas mãos.”

J. Saramago

Prosseguindo o desenvolvimento da recém criada categoria dedicada ao estudo do Islão, pode-se dizer que o post de hoje vem mesmo a propósito, uma vez que tem como protagonista principal o Ouro Negro, mais precisamente o petróleo. Numa altura, em que o nosso país está no limiar de uma crise energética, devido à ameaça de greve dos motoristas que transportam materiais perigosos, faz todo o sentido publicar um post que demonstra a importância do petróleo. É confrangedor constatar que, apesar de todos os avanços da ciência e da tecnologia, continuamos actualmente tão vulneráveis a uma crise dos combustíveis como se era no século passado.

Porém, é do Islão que se pretende falar, por isso este post apenas incidirá na importância do petróleo do Médio Oriente, nomeadamente para a hegemonia americana. Como todos bem sabemos, os recursos naturais sempre tiveram um papel importantíssimo para o crescimento das nações, mas no que diz respeito ao petróleo, este transformou-se na fonte de energia primária mais importante, o combustível do capitalismo. Assim sendo, o acesso e controle das principais reservas de petróleo do mundo tem implicado uma tenebrosa disputa pelo poder à escala internacional. O Médio Oriente concentra mais de 60% das reservas totais do mundo, facto que torna a região um alvo de constante e intenso interesse da política de segurança energética.

“A figura dominante do pan-arabismo foi o coronel Gamal Abdel Nasser. Foi ele, com o general Naguib, quem liderou o comité de jovens oficiais revolucionários que derrubou o rei Faruk e instalou no Cairo o partido da União Nacional (inspirado na Constituição portuguesa de 1933)” (PINTO, 2015: 77).

“Nasser e o seu movimento representavam uma alternativa nacionalista e populista ao nacionalismo liberal e ocidentalizante do Wafd. Nasser encarnava o mito do Rais (chefe), do líder carismático, não só dos árabes, mas das massas muçulmanas e africanas que, por esses anos 50, entre a conferência de Bandung e a crise do Suez, desafiavam o ocidente europeu.” (PINTO, 2015: 77).

“Nasser foi o chefe mítico das massas árabes por quase 15 anos, desde esse 26 de Julho em que nacionalizou o Canal de Suez até à sua morte, em 1970. Foi o caudilho do mundo árabe, como Getúlio foi do Brasil nacionalista, Perón dos proletários argentinos, Lumumba da África radical, Castro e Che da revolução continental das Américas – e da «revolução cubana» imaginada pelos adolescentes das burguesias da Europa” (PINTO, 2015: 78).

“Nasser quis ser o Libertador, o Moisés, dos descendentes dos escravos dos Faraós, das multidões do Cairo e de Alexandria, habituadas a serem mandadas e enquadradas por ingleses coloniais, com a cumplicidade das grandes burguesias expatriadas ou apátridas da região. O nacionalismo árabe militar foi isso: quadros médios em uniforme, colectivos de oficiais que, aos poucos, se foram eliminado e saneando, até que ficassem Mubarak no Cairo, Saddam em Bagdad, Assad em Damasco, Kadhafi em Tripoli. Pelo meio, ou entre eles e os reis por eles derrubados ou assassinados, outros cadáveres de outros homens civis ou de uniforme foram cimentando o caminho. Dez ou vinte séculos depois, repetiam nos seus novos Estados as rotas de todos os tempos fundacionais – dos césares romanos ou das dinastias medievais, alçados ao poder por pretorianos insatisfeitos ou por feudais bárbaros e vorazes” (PINTO, 2015: 78).

“Por razão deles ou culpa nossa, estes revolucionários eram anti-ocidentais. Para eles, o Ocidente eram os estrangeiros que, no século XIX, tinham expulsado dos Balcãs e da Grécia os otomanos, que os tinham dominado com a artilharia naval ou com forças expedicionárias transportadas em barcos de ferro; ou que – pior ainda – os tinham arruinado e explorado, emprestando-lhes o capital para infra-estruturas modernas e talvez inúteis e usando depois o crédito para os pôr sob tutela. «Os Ocidentais» eram, sobretudo, os ingleses ou, na Síria e no Norte de África, os franceses. Mas o poder sufocante por excelência era o britânico: desde o tempo da derrota da frota de Bonaparte em Aboukir, pelo almirante Nelson, e das duas digressões pelo Mediterrâneo Oriental, até à compras das acções do Estado egípcio no Canal de Suez” (PINTO, 2015: 78-79). (…)

“Contra Nasser e as suas pretensões de liderança do mundo árabe, erguera-se, entretanto, a Arábia Saudita, numa dupla afirmação de tradicionalismo religioso e político. A partir do princípio do século XX, Ibn Saud, o refundador da família e o fundador do Reino, prosseguira uma política de hegemonia das tribos árabes, procurando fazer a unidade na Península, desde o Golfo Pérsico ao Mar Vermelho, do Índico ao Mediterrâneo. Livre dos turcos a seguir a 1918, vai conquistar aos Hachemitas o título de Guardião dos Lugares Santos, passando daí a controlar também as peregrinações a Meca, com as respectivas receitas. Em 1932, proclama-se rei da Arábia. Mas para a consolidação do seu poder, vai concorrer outro elemento decisivo” (PINTO, 2015: 79).

A Segunda Guerra Mundial provara que o petróleo passara a ser o recurso estratégico por excelência, e que parte da derrota de Hitler se devera às falhas de abastecimento energético da sua máquina militar. Ora, em 1936, em Hasa, no Nordeste da Arábia, tinham sido descobertas jazidas de petróleo; no entanto, a grande mudança de estatuto da Arábia Saudita só viria no dia 14 de Fevereiro de 1945, quando Ibn Saud e o quase moribundo F. D. Roosevelt assinaram um pacto de aliança, a bordo do cruzador Quincy. Meses antes, a sul do Cairo, Saud encontrara-se com Churchill, mas o velho monarca percebera os novos tempos e quem mandava. A partir daí, os Estados Unidos passaram a ter direitos quase monopolistas sobre o petróleo do Reino, a troco de protecção militar” (PINTO, 2015: 79-80).

“A equação energética vai assim entrar em força no Islão e no Médio Oriente. A república norte-americana liga o seu destino à casa de Saud, a cabeça e o bastião do tradicionalismo sunita e a protectora e aliada do rigorismo wahabita. Também os limites fronteiriços entre a Arábia Saudita e os seus vizinhos – Iraque, kuwait, Iémen, Omã, Abu Dhabi – vão ser condicionados pela repartição das áreas petrolíferas” (PINTO, 2015: 79-80).

“É a imensa riqueza energética da Arábia Saudita que lhe vai garantir progressiva importância na Liga Árabe e na OPEP. E é logo a seguir à guerra de Junho de 1967 que os produtores árabes decidem, como represália embargar os fornecimentos de petróleo aos Estados Unidos e à Grã-Bretanha e destinar 20% dos seus rendimentos à luta contra Israel” (PINTO, 2015: 79-80).

“(…). Os sucessivos choques petrolíferos, além de porem fim ao crescimento de longo prazo das economias ocidentais, alteraram os termos do poder entre conservadores e progressistas no bloco árabe. Os países produtores, entretanto reunidos na OPEP, também se deram conta da natureza ambígua da arma petrolífera: preços muito altos podiam ter – e tiveram – efeitos perversos para os seus interesses. Por um lado, encorajavam os importadores ocidentais a investir em energias alternativas; por outro, acima de certo preço, tornavam rentável a exploração de muitos dos poços que, nos Estados Unidos, estavam abandonados” (PINTO, 2015: 79-80-81). (…).

“O petróleo como arma política”

“Mas a 6 de Outubro de 1973 um acontecimento inesperado ia mudar esta situação, alterando a balança do poder na OPEP e na Liga Árabe. Era o «Yom Kippur», o Dia do Perdão, o dia mais sagrado do calendário judeu. Os crentes deviam cumprir 25 horas de jejum (do cair da noite do primeiro dia à mesma hora do segundo) e rituais de arrependimento e de contrição. As rádios e as televisões não emitiam, por respeito ao preceito, o que ia aumentar o efeito de surpresa da manobra. Às 14 horas, os exércitos do Egipto e da Síria atacavam Israel nas suas fronteiras da Guerra dos Seis Dias. Tropas da Arábia Saudita, da Jordânia, do Iraque, do Kuwait, , de Marrocos e da Tunísia estavam também mobilizadas. Antes do ataque, Sadat persuadira o rei Faiçal a apoiar o movimento” (PINTO, 2015: 84-85).

“Ao contrário do sucedido nos conflitos anteriores, os egípcios estavam bem preparados: passaram o canal, infligiram perdas sérias aos israelitas e prosseguiram durante três dias no Sinai. Os israelitas, depois de terem perdido um quarto da sua Força Aérea, com os aparelhos abatidos pelos SAM 6 egípcios, sofreram também grandes perdas de tanques. Oitenta mil egípcios atravessaram o canal” (PINTO, 2015: 85).

“O governo de Telavive, para atender à substituição de máquinas e munições, fez um apelo desesperado a Washington, pedindo uma linha de reabastecimento. Nesses dias do Outono de 1973, a situação na capital americana não era fácil: o vice-presidente Spiro Agnew acabara de renunciar ao cargo, através de um acordo judicial com a Procuradoria-Geral, para evitar o risco de prisão por actos fraudulentos cometidos quando governador de Maryland; e o próprio presidente Nixon estava sob fogo dos investidores, do Congresso e dos media, na sequência do Watergate. O secretário de Estado Kissinger e o secretário de Defesa Schlesinger decidiram autorizar e montar uma ponte aérea para Israel, utilizando como ponto de passagem os Açores. Desta ponte aérea, iniciada a 14 de Outubro pela USAF, faziam parte caças F-4 Phantom, helicópteros CH-53, tanques M60, centenas de viaturas militares e mísseis de todos os tipos para substituir os abatidos nos combates de Kippur” (PINTO, 2015: 85).

Tinham-se desatado as fúrias: o ministro saudita do Petróleo, Zaki Yamani, preveniu Washington de que a ponte aérea de reabastecimento de Israel levaria o governo saudita a cortar o fornecimento de petróleo aos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, os produtores do Golfo, incluindo o Irão, declararam um aumento de preço do barril de 3,01 para 3,63 dólares. Em seguida, Kadhafi quase duplicou o preço e declarou o embargo contra os Estados Unidos. Os sauditas subiram para 5,11 USD o barril. É o rei Faiçal quem vai declarar o embargo contra os Estados Unidos; logo a seguir, o Kuwait, o Qatar, o Bahrein e o Dubai juntam-se à Arábia Saudita, à Líbia, à Argélia e ao Abu Dhabi no boicote, fechando o círculo. De fora, só fica o Irão do xá Mohamed Reza Pahlevi, a derradeira esperança do amigo americano” (PINTO, 2015: 85-86).

“(…). O mercado do petróleo começara a alterar-se ainda antes da guerra do Kippur: os sauditas queriam condições contratuais mais favoráveis com a ARAMCO (Arabian-American Oil Company), o Inverno tinha sido rigoroso e o Xá endurecera as negociações com os consórcios petrolíferos. No Verão de 1973, na Casa Branca e no Capitólio, discutiam-se alternativas às possíveis represálias dos produtores do Médio Oriente perante o apoio norte-americano a Israel. E se os Árabes deixassem de vender petróleo aos Estados Unidos?” (PINTO, 2015: 86-87).

“A época de caça estava aberta: na Líbia, uma faixa de terra quase deserta entre o Sara oriental e o Mediterrâneo, com mais de um milhão de quilómetros quadrados mas menos de dois milhões de habitantes, o coronel Muammar al-Kadhafi, que derrubara em Setembro de 1969 o rei Idris, parecia disposto a usar politicamente os seus 2 300 000 barris diários. Tomava posições radicais, cancelava os acordos militares com os Estados Unidos, expulsava os expatriados italianos, apoiava generosamente a guerrilha palestiniana e, como o Xá, queria brinquedos militares novos: 114 caças-bombardeiros Mirage” (PINTO, 2015: 87).

“Kadhafi deitou mãos à obra a 1 de Setembro, anunciando a nacionalização de 51% das acções das companhias petrolíferas a operar no país; no mesmo dia, soube-se que o presidente Sadat do Egipto conseguira do rei Faiçal da Arábia Saudita a promessa de cortar a produção de petróleo do Reino aos Estados Unidos se estes não mudassem a sua política pró-Israel” (PINTO, 2015: 87).

“A situação agravava-se: os Estados Unidos consumiam cerca de 24 milhões de barris/dia e produziam apenas 11 milhões. O que fazer se, de um dia para o outro, os fornecedores do Golfo decidissem parar a exportação de crude para a América? Directa ou indirectamente, os governos conservadores da região, como o Irão, a Arábia Saudita e a Jordânia, e a própria União Soviética tinham feito saber a Washington que Sadat estava a preparar-se para atacar Israel. Os israelitas negavam essa possibilidade. O ministro dos Estrangeiros de Telavive, Abba Eban, dissera a Kissinger que os egípcios não tinham recursos nem capacidade militar para semelhante ataque” (PINTO, 2015: 87-88).

“Afinal tinham. Em 6 de Outubro, sírios por um lado, egípcios pelo outro, avançaram, abalando as defesas de Israel. A 20 de Outubro, o rei Faiçal declarava o corte total de fornecimento de petróleo aos Estados Unidos; a Líbia, a Argélia e Abu Dhabi já o tinham feito; depois, fora a vez do Kuwait, do Qatar, do Bahrein e do Dubai. O boicote era total. Tudo isto enquanto, em Washington, corria o Watergate, com Nixon debaixo de fogo. Mas, perante a ameaça, kissinger e Schlesinger puseram as Forças Armadas americanas em DEFCON 3 (Defense condition 3, um status intermédio entre a paz, DEFCON 5, e a guerra , DEFCON 1), enviaram três porta-aviões a toda a velocidade para o Mediterrâneo Oriental e a 82ª Divisão Aerotransportada entrou em alerta. Foi o Xá, ao continuar os fornecimentos de crude , quem impediu que os americanos, desesperados com a falta de petróleo para a Sexta Esquadra, ocupassem um dos sultanatos do Golfo” (PINTO, 2015: 88).

Bibliografia

PINTO. Nogueira, Jaime. (2015). O Islão e o Ocidente. D. Quixote. Alfragide.

A Palestina

Publicado por: Milu  :  Categoria: A Palestina, ISLÃO

Tornou-se chocantemente óbvio que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade.” (Einstein)

Prosseguindo nesta minha iniciativa de elaborar um trabalho que denominei de mini curso sobre o Islão, apresento-vos hoje um excerto sobre a Palestina. Através dele são introduzidos novos termos, como o sionismo, a Diáspora e o anti-semitismo. Neste pequeno excerto também podemos constatar a maldita cobiça, na sede sempre presente pelo imperialismo, (política de expansão e domínio territorial, cultural e económico de uma nação dominante sobre outras). Esta prática da formação de impérios que se desenvolveram e, em muitos casos, foram dissolvidos ou substituídos por outros, está registada na história da humanidade. Boas leituras!

“O caso mais complicado do novo xadrez imperial britânico no Médio Oriente era o mandato sobre a Palestina, atingido desde o princípio por uma agenda contraditória, que por um lado prescrevia a criação de uma «Casa nacional para o povo judeu» e por outro queria salvaguardar os direitos políticos e económicos das comunidades não judaicas – árabes e cristãs – que ali existiam. O sinonismo moderno é uma forma de nacionalismo judaico, aparecida nos finais do século XIX, que defende a criação de um Estado no território de origem do povo judeu – a Palestina. Tirou o nome da ideia messiânica do regresso a Jerusalém (Sião, na versão bíblica tradicional). Note-se que muitos judeus ortodoxos são violentamente contrários ao sionismo e defendem a permanência da Diáspora*, como modo e lugar ideal de viver o judaísmo” (PINTO, 2015: 67).

O movimento teve causas directas, como o recrudescimento do anti-semitismo** na Rússia, na Europa Oriental e em França, e teve como textos de referência obras como «O Estado Judeu», de Theodor Herzl, que, em 1897, tinha promovido em Basileia o primeiro congresso da Organização Mundial Sionista” (PINTO, 2015: 68).

A Declaração Balfour, pela qual Londres se comprometia com a fundação na Palestina de um «lar para o povo judeu», abria passo a um reforço da imigração judaica, como colonatos apoiados pelos Rotschild. Os sionistas também se dividiam em relação aos árabes e às políticas restritivas de Londres: enquanto um núcleo, chefiado por David Ben-Gurion, advogava uma posição moderada, negociadora, perante palestinianos e ingleses, outro, liderado pelo jornalista e activista Vladimir Jabotinsky, preconizava a criação de um Estado judaico por quaisquer meios” (PINTO, 2015: 68).

Graças aos fortes propósitos do movimento sionista de retornar a Israel, nas vésperas da Grande Guerra haveria já, na Palestina, cerca de 85 000 judeus. Depois da Declaração Balfour (1917), esta migração de judeus para a Palestina, acompanhada da aquisição de terras pelo Jewish National Fund, foi dando origem a um ciclo de confronto: em 1935, os nacionalistas palestinianos passavam à luta armada contra os ingleses e os colonatos judaicos, inaugurando um tempo de violência que dura até hoje” (PINTO, 2015: 68).

Em 1937, a Peel Commission, uma comissão nomeada pelo gabinete de Londres, reconhecia que entre os cerca de um milhão de árabes e 400 000 judeus que estavam na Palestina não havia comunidade nem entendimento possíveis e que, assim sendo, a partilha territorial era o caminho a seguir. Só que a partilha territorial então preconizada não era propriamente equitativa: das terras da Palestina, os judeus recebiam a melhor parte – quer em localização geográfica, quer em riqueza agrícola. A agravar as coisas, a Peel Commission previa ainda transferências populacionais para fazer coincidir as zonas atribuídas com as comunidades étnicas. Finalmente, os árabes não iam ter direito a um Estado palestiniano, ficando com as suas áreas adstritas à suserania de Abdllah, rei da Jordânia” (PINTO, 2015: 68-69).

O resultado foi a revolta armada – com atentados contra os militares e funcionários ingleses e contra colonos judeus. Estes ataques e assassínios causaram, por sua vez, uma violenta repressão. Foram 25 000 os soldados e polícias britânicos que dela se encarregaram, destruindo casas de suspeitos, internando em campos de concentração cerca de 10 000 activistas e simpatizantes da revolta e fazendo 5000 mortos” (PINTO, 2015: 69).

A resistência palestiniana e o começo da guerra na Europa levaram Londres a esquecer o relatório Peel e a publicar uma nova norma (o White Paper), com recomendações para uma solução mais equitativa: limites à emigração judaica (um tecto de 15 000/ano) deviam conduzir a um maior equilíbrio entre as comunidades, ficando os judeus com um terço da população total; previa-se também a criação, em dez anos, de um Estado palestiniano sob um governo misto de árabes e judeus” (PINTO, 2015: 69).

De acordo com as disposições de Sykes-Picot, na partilha dos domínios otomanos do Levante, à França cabiam o Líbano e a Síria, mais um pedaço da Anatólia. Faiçal, o filho de Hussein, fora proclamado rei da Síria pelo Congresso Sírio, reunido em Damasco, em Março de 1920, mas a Conferência Aliada decidira outra coisa, com o apoio da Liga das Nações, reconhecendo o mandato francês sobre a Síria e o Líbano. Era um velho sonho colonial de Paris, que vinha das Cruzadas e se repetira com Napoleão, tendo por base demográfica as comunidades cristãs orientais do Líbano e da Síria” (PINTO, 2015: 69).

Assim, entre 1920 e 1930, os árabes e os muçulmanos do globo estavam ou ficavam sob tutela dos europeus. No Médio Oriente, tinham trocado o domínio turco – exercido pelos seus correligionários religiosos – por um condomínio de «poderes cristãos», os imperialismos laicos e económicos de Londres e Paris. No resto do mundo, o controlo estendia-se ao Índico e ao Pacífico, à Índia britânica e à Indonésia, onde existiam grandes comunidades islâmicas, também dominadas pelos ingleses e pelos holandeses (PINTO, 2015: 69-70).

Geralmente, as potências europeias exerciam o poder ou directamente, colonialmente, ou em regime de mandato ou tutela, apoiados em potentados locais, como os Hachemitas no Levante ou os sultanatos e emiratos do Golfo Pérsico. De qualquer modo, para comunidades com uma longa tradição civilizacional, com cidades, cultura, negócios, elites sofisticadas, esta perda da independência política era humilhante” (PINTO, 2015: 70).

*Diáspora: A palavra Diáspora deriva do hebraico e significa dispersão, expulsão e exílio. É o termo que define as migrações do povo judeu – quase sempre por expulsão. Assim, acabaram por se espalhar pelo mundo. As consequências directas da Diáspora estão na formação das comunidades judaicas. É prevista na Bíblia e define a busca do povo pela terra prometida. O Egipto e a Babilónia foram os destinos dos judeus nos dois principais movimentos de Diáspora a partir do século 6 a.C. Embora tenham sido escravizados, o movimento permitiu a troca de informações culturais, linguísticas e religiosas, reforçando a identidade dos povos. No exílio, o povo judeu manteve a tradição de disseminação das escrituras por meio dos centros de estudos judaicos.

**Anti-semitismo: Preconceito contra ou ódio aos judeus. O Holocausto é o exemplo mais radical de anti-semitismo na história. (Semita: termo criado pelo orientalista alemão August Ludwig Schlözer, utilizando o nome de um dos filhos de Noé, Sem, e servia para designar as línguas cujo parentesco foi estabelecido na Idade Média pelos eruditos judeus: o hebraico, o aramaico e o árabe. Actualmente os povos chamados de semitas são essencialmente judeus e árabes, mas na antiguidade também havia assírios, babilónios, arameus, cananeus e fenícios).

Bibliografia

PINTO. N. Jaime. (2015). O Islão e o Ocidente. A Grande Discódia. Dom Quixote. Alfragide.