Silêncio redentor
“Quando um homem tem dentro de si uma verdade que quer ouvidos, até peixes lhe servem para auditório. Santo António que o diga..”
Miguel Torga
“O processo criativo é constituído por duas fases opostas. Uma de abertura, na qual nós duvidamos de tudo, absorvemos tudo e assimilamos tudo. Tornamo-nos numa espécie de casa sem portas e sem janelas na qual o vento entra livremente. Na segunda fase, pelo contrário, as portas e janelas estão trancadas e temos de recorrer a uma energia profunda que está dentro de nós.
A aprendizagem é a abertura. Se quisermos compreender um novo país, não devemos manter-nos sempre com os nossos compatriotas. Não devemos criticar e afastar tudo o que é diferente e estranho. Mas sim deixarmo-nos penetrar, impregnar pela diferença. Também quando sentimos a diferença de uma forma quase ofensiva, dolorosa. O mesmo acontece quando começamos a estudar uma língua nova. É inútil procurar comparações com as palavras que já conhecemos, usar só as expressões mais parecidas com as nossas. Devemos abandonar-nos totalmente, mergulhar nela. Com efeito, fala-se de «full immersion».
No exército, o objectivo da instrução militar, com as suas provas duras e humilhantes, é precisamente o de deitar abaixo a personalidade anterior. E as perseguições e partidas a que é sujeito o recruta por parte dos mais velhos têm esse mesmo significado. Deitar fora o passado, fazer um lugar para o novo.
Também quando começamos uma nova investigação científica devemos pôr em dúvida todas as nossas teorias, as nossas convicções anteriores. Partir do pressuposto de que até agora errámos sempre. Não procurar a confirmação das nossas ideias, mas aquilo que as contradiz, que as desmente.
Porém, quando a nossa mente se dispõe a criar o novo, a dada altura começa a fechar-se. Concentra-se num problema, anda continuamente, obcecadamente, à sua volta. Enquanto antes estávamos ávidos de estímulos, agora andamos à procura das informações que nos sejam úteis. É como se nos encontrássemos diante de um puzzle. Observamos os fragmentos apenas para descobrirmos o seu desenho geral e para encontrarmos os que encaixam no lugar certo. Os outros pomo-los de parte.
Até que chega a altura em que temos de fechar as portas exteriores e abrir as interiores, as que dão acesso à misteriosa energia que temos em nós.
O mundo exterior nada nos pode dar.
Nem mesmo os livros. Até na escola há o período dos exames depois do período de estudo.
O estudante está sozinho.
É para todos o momento da solidão, do afastamento do mundo.
Os romancistas, os músicos, os cientistas, os filósofos encerram-se num quarto ou mantém-se levantados de noite quando ninguém os perturba.
Outros procuram um refúgio no campo,
num lugar solitário. (…).
Então, quando já criámos o silêncio e o vazio, o caminho revela-se à nossa mente. Vislumbramo-lo, perdemo-lo, reencontramo-lo.
Só temos de saber ouvir o misterioso guia interno
que nos diz se o passo que temos de dar é o correcto. Nos Antigos esta impressão era tão forte que invocavam a inspiração de um deus ou das musas. Dante faz-se conduzir por Virgílio.
Mas também na nossa época, até a pessoa mais desencantada tem a impressão de não ser ela a procurar, a pensar, a encontrar. Mas sim que os pensamentos lhe vêm sozinhos. E que aquilo que alcança não foi construído por ela, foi-lhe desvendado como uma graça.
O criador é o primeiro a ficar estupefacto com a sua descoberta, com a sua obra.
Bibliografia
ALBERONI, Francesco. (2000). Tenham Coragem. Bertrand Editora. Venda Nova. pp. 32-33.