Ser ou não ser selvagem

Publicado por: Milu  :  Categoria: PARA PENSAR, Ser ou não ser...

tribo

Imagem retirada daqui

Depois de ler o seguinte excerto retirado do livro “O Consolo da Filosofia”, capítulo “Do Desajustamento Cultural”, da autoria de Alain De Botton, é justo que se pergunte:

 

Quem eram, afinal, os verdadeiros selvagens?

 


 

“Na sexta feira, dia 12 de Outubro de 1492, quarenta e um anos antes de Montaigne nascer, Cristóvão Colombo chegava a uma das ilhas do arquipélago das Baamas, à entrada do golfo da Florida, e contactava com alguns índios da tribo dos Guanahanis, que nunca tinham ouvido falar de Jesus e costumavam andar sem roupa.

Montaigne interessou-se avidamente por este assunto. Na biblioteca circular existiam vários livros sobre a vida das tribos índias da América, entre eles Historia general de las Indias y conquista de México, de Francisco López de Gómara, Historia del mondo nuovo, de Girolamo Benzoni, e Histoire d’an voyage fait en la terra di Brésil, de Jena de Léry.

Montaigne sabia que na América do Sul as pessoas gostavam de comer aranhas, gafanhotos, formigas, lagartos e morcegos: “Cozinham-nos e servem-nos com vários molhos.” Havia tribos americanas em que as virgens exibiam abertamente as suas partes pudicas, as noivas faziam orgias nas suas noites de casamento, os homens podiam casar uns com os outros e os mortos eram fervidos, triturados, misturados com vinho e bebidos pelos seus familiares em animadas festas.

Em certos países, as mulheres urinavam de pé e os homens agachados, os homens deixavam crescer os cabelos e pêlos da frente e rapavam os de trás. Em certos países os homens eram circuncidados, enquanto noutros tinham horror que o extremo do pénis visse sequer a luz do dia, de modo que “puxavam cuidadosamente a pele para cima até o taparem, atando-o depois com pequenos fios”. Nalgumas nações cumprimentavam-se as pessoas voltando-lhes as costas e noutras, quando o rei cuspia, o favorito da corte estendia-lhe a mão e, quando ele esvaziava os intestinos, “as suas fezes eram recolhidas num pano de linho” pelos criados.

Com Jean de Léry, Montaigne aprendeu que os Tupis do Brasil andavam nus como no Paraíso, sem mostrar qualquer vestígio de vergonha (de facto quando os Europeus tentaram oferecer roupas às mulheres tupis elas puseram-se aos risinhos e rejeitaram-nas, sem perceber como é que alguém podia querer andar carregado com coisas tão desconfortáveis). (…).

Os homens rapavam a cabeça e as mulheres usavam os cabelos compridos, em tranças atadas com lindas fitas vermelhas. Os Tupis adoravam lavar-se; sempre que encontravam um rio, pulavam lá para dentro e esfregavam-se uns aos outros. Chegavam a tomar banho doze vezes ao dia. (…). A vida dos Tupis era tão bem organizada que era frequente chegarem aos cem anos e os velhos nunca ficavam com o cabelo branco ou grisalho. Eram, também, extremamente hospitaleiros. Quando um forasteiro chegava à aldeia, as mulheres cobriam o rosto, começavam a chorar e exclamavam: “Como estão? Deram-se a tanto trabalho para nos visitarem!” Imediatamente lhes ofereciam a bebida preferida dos Tupis, feita com a raiz de uma determinada planta e da cor do clarete, de gosto amargo mas excelente para o estômago.

Os homens tupis podiam ter mais de uma mulher e dizia-se que eram muito dedicados a todas. “Todo o seu sistema ético resume-se a dois artigos apenas: valentia nas batalhas e amor pelas mulheres”, relatou Montaigne. E as esposas pareciam felizes com a junção, não mostrando ciúme.”

Alain De Botton

“Merece destaque uma agradável caraterística dos casamentos deles: assim como as nossas mulheres se empenham zelosamente em impedir que dediquemos o nosso amor e carinho a outras, as daqui empenham-se com o mesmo zelo em conseguir convencer-nos do contrário. Mais preocupadas com a reputação dos maridos do que com outra coisa qualquer, esforçam-se por obter o maior número possível de colegas, visto isso atestar o valor dos seus homens.”

Montaigne

“Original, sem dúvida. Mas Montaigne não encontrava nisso nada de anormal.

(…). Pouco depois da descoberta de Colombo, os colonos espanhóis e portugueses vindos da Europa para explorar as novas terras acharam os indígenas pouco melhor do que animais. O cavaleiro católico Villegagnon descreveu-os como “bichos com rosto humano”; o sacerdote calvinista Richer afirmou que eles não possuíam sentido da moral; e o médico Laurent Joubert, depois de examinar cinco mulheres brasileiras, assegurou que elas não tinham o período e por conseguinte não podiam de modo algum pertencer à raça humana.

Depois de lhe retirarem toda a humanidade, os Espanhóis começaram a chaciná-los como se fossem animais. Em 1534, quarenta e dois anos após a chegada de Colombo, os impérios dos Incas e Astecas já tinham sido destruídos e os respetivos povos feitos escravos ou assassinados. Montaigne ficou ao corrente da barbaridade através da obra de Bartolomé de Las Casas Brevíssima relación de la destrucción de las Indias (publicada em Sevilha em 1552, traduzida em Francês em 1580 por Jacques de Miggrode com o título Histoire admirable des horribles insolences, cruautés et tyrannies exercées por les Espagnols ès Indes occidentales, brièvement décrites en langue castillane).

Os Índios foram dizimados pela sua própria hospitalidade e pela inferioridade das suas armas. Abriram as suas aldeias e cidades aos Espanhóis para depois verem os seus hóspedes voltarem-se contra eles, quando menos o esperavam. As suas armas primitivas não estavam à altura dos canhões e das espadas dos Espanhóis e os conquistadores não mostravam qualquer misericórdia em relação às sua vítimas.

Matavam crianças, abriam à facada as barrigas das grávidas, arrancavam olhos, assavam vivas famílias inteiras e incendiavam as aldeias durante a noite.  Treinavam cães para penetrarem nas selvas onde os índios se tinham refugiado e esfacelá-los.

Os homens eram obrigados a trabalhar nas minas de ouro e prata, presos à mesma corrente com coleiras de ferro. Quando um homem morria, o seu corpo era cortado da corrente enquanto os seus companheiros continuavam a trabalhar. A maioria dos índios não aguentou mais do que três semanas de trabalho nas minas. Quanto às mulheres, eram violadas e desfiguradas em frente dos maridos. A forma de mutilação preferida era decepar queixos e narizes. Las Casas contou que uma mulher, vendo que as tropas espanholas se aproximavam com os respetivos cães, se enforcou com o filho. Um soldado chegou, cortou a criança ao meio com a espada, deu uma metade aos cães e pediu a um frade que ministrasse a extrema-unção para que a criança tivesse lugar garantido no céu de Cristo.

Os Espanhóis tinham aniquilado os Índios de consciência tranquila, movidos pela certeza de que sabiam o que era um ser humano normal. A razão dizia-lhes que era alguém que usasse calças, tivesse uma só esposa, não comesse aranhas e dormisse numa cama. (…).

Por detrás do massacre houve muita confusão mental. Distinguir o normal do anormal é um procedimento típico de uma forma de lógica indutiva através da qual inferimos uma lei geral partindo de instâncias particulares (…).

Montaigne lamentou a arrogância intelectual aí em jogo. Havia com efeito selvagens na América do Sul; só que não eram os que comiam aranhas.”

Alain De Botton

“Os homens consideram bárbaro tudo aquilo a que não estão habituados; não dispomos de outro critério para a verdade ou a virtude que não o exemplo e a forma das opiniões e dos costumes do nosso próprio país. É nele que encontramos sempre a religião perfeita, a forma mais perfeita e avançada de fazer seja o que for!”

Montaigne

“Montaigne não pretendia acabar com a distinção entre bárbaro e civilizado; havia diferenças apreciáveis entre os hábitos de cada país (apesar do relativismo cultural ser tão cruel como o nacionalismo). Queria era corrigir a forma como fazemos a distinção. O nosso país pode ter muitas virtudes, mas elas não existem por ele ser o nosso país. Um país estrangeiro pode ter muitos defeitos, mas estes não advêm do simples facto de os seus costumes serem invulgares. A nacionalidade e a familiaridade eram critérios absurdos para decidir o que é bom. (…).

Talvez seja bom recordar que as acusações de anormalidade têm uma raiz regional e histórica. Para nos libertarmos delas, basta expormo-nos à diversidade dos costumes ao longo do tempo e do espaço. O que é considerado anormal no seio de um grupo em determinado momento pode não ser, ou nem sempre ser, assim classificado. Podemos atravessar as nossas fronteiras mentais. Montaigne encheu a sua biblioteca com livros que o ajudaram a atravessar as fronteiras do preconceito.”

Alain De Botton 

5 Comentarios to “Ser ou não ser selvagem”

  1. lino Diz:

    Ainda hoje o chamado “ocidental” (gringos sobretudos)julga-se o maior onde quer que chegue.
    Beijinho

  2. Milu Diz:

    Olá Lino 🙂

    Já vi gente que se tem por muito bem formada a deixar transparecer preconceitos intoleráveis, facto que denuncia o profundo desconhecimento da disciplina de Antropologia.
    Beijinho 🙂

  3. José Rosa Diz:

    Excelente esse texto. Peço permissão para postá-lo no meu blog, citando logicamente a fonte.
    Como sabe, das três etnias que compuseram o povo brasileiro a indígena é a que mais me encanta.
    Descobri com esse texto porque tomo de 5 a 6 banhos diariamente aqui na Bahia. Não é só por causa do calor. É também por causa do meu sangue índio!
    Um bj e obrigado por esse texto.
    José Rosa

  4. Milu Diz:

    Olá José Rosa,

    Permissão concedida 🙂
    Um beijo

  5. Ser ou não ser selvagem | ZÉducando Diz:

    […] excelente post eu li no blog de uma grande amiga portuguesa, Maria de Lurdes. Vale a pena a reflexão, em especial pelos […]

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