Ser indefinido
“Cada um de nós faria mais coisas, se as julgasse menos impossíveis.”
François La Rochefoucauld
Alguns dos que vierem a ler este post, pensarão que o que nele está inscrito já são águas passadas, que a sociedade evoluiu e que actualmente já nada é assim, etc, etc. E têm razão. Felizmente. Muitos casais já não se casam e alguns nem sequer querem que a sua relação seja reconhecida como correspondendo à figura da união de facto. Querem sentir-se com um pé dentro e outro pronto a saltar fora, quando a coisa perder a graça.
Contudo, a mim, constatar que muitas mudanças foram operadas não me basta. Acima de tudo interessa-me perceber os mecanismos que regulam a sociedade e como foi possível ao longo dos séculos oprimir tanto as mulheres, estas que, mais coisa menos coisa, representam metade da humanidade. É o meu gosto pela sociologia que aqui se manifesta. Abençoado o momento em que eu percebi o que é, e para o que serve, esta ciência da Sociologia!… Tantas respostas para as minhas perguntas eu logrei descortinar através da Sociologia…e tanto mais esta conquista se me tornou importante, quanto mais certo é que, o que mais poderemos fazer é perguntas…
Recordo-me que, já na minha adolescência, eu reparava que a vida das mulheres casadas não era coisa que se desejasse. Apercebi-me, pelo que via, que a vida da mulher tinha vários estados. Ou seja, aprendi a julgar, a formar opinião, através daquilo que observava. E o que observava na vida das mulheres da minha condição, que não eram ricas, que tinham de trabalhar para ajudar no sustento da casa, não era propriamente um cenário risonho, algo que eu desejasse para mim. De maneira que, quando comecei a ver as raparigas da minha idade, que me eram próximas, a desejar o casamento e a concretizá-lo, no lugar de querer seguir-lhes o exemplo, de escolher o mesmo destino, pelo contrário, eu repudiava tal coisa! Para mim, pelo que observava da realidade que me era dada ver, o casamento era um altar do máximo sacrifício! Vade retro Satanás!
Como se pode desejar, afinal, uma vida em que a pessoa deixa praticamente de ter tempo para ela? E, mais importante ainda, deixa de ser ela, e passa a ser uma entidade, uma figura, cujo comportamento está previamente e minuciosamente definido, talhado, decidido? Mas era assim naquele tempo com a vasta maioria das mulheres… Hoje, que sou uma mulher esclarecida, instruída, informada, sinto um desmedido orgulho por já naquela altura, tão novinha, ter tido a coragem de ser diferente, de renegar o que à partida seria o meu destino… Diferença que, afinal, me adveio das minhas muitas leituras que empreendi desde tenra idade. Quem lê torna o seu mundo mais vasto, mais diversificado, é por isso mesmo capaz de ver para além da realidade circundante. É imperioso que retiremos as palas dos olhos, que nos agrilhoam, que tolhem a nossa liberdade e criatividade.
Seja o que você quiser, viva de acordo com as suas aspirações, de acordo com as suas tendências e gostos, sinta-se bem. Tenha a coragem de lutar por si. De mudar radicalmente, se for esse o caso. Não se preocupe com o que os outros disserem quando estranharem a sua nova postura: lembre-se que “os cães ladram e a caravana passa”. Case, se for esse o seu desejo, mas nunca se deixe sobrecarregar, não enverede por uma vida de escravatura encapotada. Esforce-se por conquistar e manter a sua independência económica, pois só assim terá margem de manobra para poder jogar o jogo da vida. Independência em qualquer circunstância , será sempre a tónica defendida neste blog.
Atentemos ao que nos diz Nathalie Heinich, socióloga, diretora de pesquisa no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique); membro do CRAL (Centre de recherches sur les arts et le langage da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris) e membro associada do LAHIC (Laboratoire d’anthropologie et d’histoire sur l’institution de la culture: CNRS, Ministère de la Culture, EHESS), na sua obra “Estados da Mulher”, e vejamos o quanto a sociedade oprime os indivíduos, particularmente as mulheres:
“ESTADOS DA MULHER”
“Porque razão a sociedade toma por lei sagrada o sacrifício da Mulher à Família?», interrogava-se Renée. Longe de ser acidental ou de se ver a funestas contingências, este sacrifício parece constitutivo do casamento na sua própria essência:
é a Mulher contra a Família, ou Germaine de Staël contra Bonald – esse desprezador do materialismo, do ateísmo e da democracia -, que os pais bem intencionados faziam ler às suas filhas à saída do convento:
«Enquanto tu lias Corina, eu lia Bonald, e eis todo o segredo da minha filosofia: tive uma aparição da Família santa e forte.»
De um lado, portanto, a mulher como pessoa a todos os títulos, dotada de uma personalidade autónoma e de aspirações específicas;
do outro, a mulher como esposa, elo indispensável de uma comunidade familiar, mas substituível nas suas funções, tendo por nome apenas o do seu marido, apenas os interesses da sua linhagem, existindo apenas pelo lugar que lhe está atribuído numa configuração que a precede e que lhe sobreviverá – aquela, temporal, de uma genealogia, e aquela, espacial, de uma casa.
Eis aqui toda a ambiguidade do estatuto da primeira enquanto membro e representante dessa família «santa e forte»: soberana no seu lugar, inteiramente submetida à ordem matrimonial que lho outorga. «Casada, deixa de ser dona de si própria, é rainha e escrava do lar», escrevia Balzac em “A Mulher de Trinta Anos” (1832)” (Heinich, 1998:121).
“A esposa, nos meios privilegiados onde, segundo Veblen, o lazer é uma medida de fortuna, tem por função ser um porta-bandeira do marido e da família no seu conjunto. Sinal exterior de riqueza, consumidora ostentatória de dinheiro, de tempo e de lazer, ela tem tanto o encargo como o privilégio de ser uma montra de jóias, peles, fortuna, relações, lazer e mesmo cultura, quando reina nesses salões mundanos (…)” (Heinich, 1998:121).
“Que seja vivida como uma redução a interesses exteriores à pessoa, ou como engrandecimento por associação a uma comunidade mais poderosa que o indivíduo isolado, a entrada numa família pela instituição do casamento é portadora de uma ambivalência fundamental. Uma vez que, por um lado, a esposa tem vantagem em não ficar sozinha: tal como o seu nascimento, o seu casamento inscreve-a numa linhagem, numa família, associando o seu destino a interesses colectivos.
Mas terá de o pagar com a dependência em relação ao seu marido e, por vezes, aos seus parentes bem como, mais tarde, aos seus filhos, entraves à autonomia. Esta dependência pode ser esperada e mesmo desejada (…), mas pode também ser vivida como um fardo, recusada e rejeitada como uma alienação, como atentado identitário que reduz a pessoa a um indivíduo substituível, definido como membro de um colectivo familiar em relação ao qual ela se sente intimamente estranha, mesmo que não se sinta por ele excluída” (Heinich, 1998:122).
“Esta ambivalência está tão profundamente inscrita que se encontra no próprio coração da língua, na conotação contraditória associada a «laço» ou «nó», que tanto amarra como liga, ou no «apego», que tanto entrava como permite a afeição; ou o adjectivo «isolada» que tanto remete para solitária como para protegida“(Heinich, 1998:122).
(…).
“A esse sinal exterior de riqueza que pode representar o casamento, opõe-se a interioridade da vida pessoal, na qual a mulher deixa de ser definida pela pertença a uma «outra» comunidade – que portanto a «aliena» no significado primeiro do termo -, mas é definida por certas propriedades que lhe são específicas, fazendo dela um ser autónomo, insubstituível: uma pessoa a todos os títulos. O casamento levanta, por definição, obstáculos a este estatuto: «Antes eu era uma pessoa, e agora sou uma coisa!» queixa-se Renée após as suas núpcias.
Louise, pelo contrário, vangloria-se da assunção do seu «eu», ou seja da sua identidade pessoal, que procurou manter inteira num casamento [que contrariamente aos costumes e ditames da sociedade da época] não foi de conveniência, sujeito ao interesse familiar, mas de amor, quer dizer de escolha individual:
«Este triunfo inebria o orgulho, a vaidade, o amor próprio, enfim, todos os sentimentos do eu.»“ (Heinich, 1998:123).
Bibliografia
HEINICH, Nathalie. (1998). Estados da Mulher. A identidade feminina na ficção ocidental. Editorial Estampa. Lisboa. pp. 121-123.