Quando o muito enjoa
“Nunca desencoraje ninguém que continuamente faz progresso, não importa quão devagar.”
PLATÃO
Um dia destes, numa das minhas incursões pela Internet, dei de caras aqui, com um artigo de opinião da autoria de Ricardo Araújo Pereira, publicado na Visão, nº 728, p.113, com o título “Coisas com sabor a outras coisas”, que para além de me provocar um sorriso, teve o mérito de me trazer à memória algumas reminiscências alimentares dos meus tempos de criança. Dizia Ricardo Araújo Pereira no seu artigo, que actualmente “é quase impossível comprar um pacote de batatas fritas que saibam a batatas fritas”, visto que estas têm vindo a ser gradualmente substituídas pelas versões com “sabor a queijo, a presunto, a cebola, a alho, a ervas aromáticas e a churrasco.” Portanto, as batatas com sabor a batatas estão em vias de extinção. Há ainda o café, que pode ser encontrado no mercado com os sabores “a anis, a baunilha ou a canela.” Mas a água também não ficou fora da demanda, os que não gostam da triste e desenxabida água, podem desfrutar deste precioso e vital líquido nos mais diversos e frescos sabores: “a limão, a morango, a pêssego, a framboesa ou a jinseng.”
Mas, entretanto, no domínio das águas, surgiu mais uma inovação, que a meu ver, visa explorar um nicho de mercado tendencialmente crescente, constituído pelas pessoas com excesso de peso, já que estas águas têm na sua composição as fibras, tão afamadas como essenciais nos tratamentos de emagrecimento, pois ao serem ingeridas dão a sensação de saciedade. Contudo, julgo que esta necessidade de experimentar e consumir estes produtos tão pouco naturais, está radicada no facto de dispormos actualmente de uma franca abundância, apesar do tanto que já existe, ainda assim, parece haver uma inevitável saturação, que nos leva a procurar o novo e o diferente.
Mas, tempos houve em que o cenário era completamente diferente, quem não gostasse do que havia para comer, fosse no almoço ou no jantar, não comia mais nada, pois nem frigorífico havia para dele sacar de um iogurte ou de um pouco de fiambre para compor uma sandes. Nos meus tempos de escola, muitos foram os dias em que chegada a casa para almoçar nem sequer o chegava a fazer, porque ao destapar a panela de imediato ficava enjoada, como sempre a sopa era de feijão com couves, à qual se adicionava uma pouca de massa, outras vezes um punhado de arroz, que por abrir demasiado durante a cozedura absorvia todo o caldo, emprestando à sopa o aspecto de um monte de entulho. E como os olhos são os primeiros a comer, escusado será dizer que ficava logo de barriga cheia, mal espreitava para dentro da panela! E era assim, sem nada comer, que retornava à escola.
Para melhor compreensão dos factos, julgo ser pertinente dizer que, quando estas situações aconteciam, os meus pais encontravam-se no emprego, logo não me podiam acudir improvisando outro alimento que fosse mais convidativo. Não é que aquelas sopas de feijão que a minha mãe fazia não fossem extremamente saborosas, acho até que o eram, visto que as fazia tão amiúde que terá ficado especializada na confecção destas sopas. O grande problema é que o feijão é um alimento demasiado forte para o paladar delicado de uma criança, ainda para mais se o vê pela frente todos os dias. Por vezes, à hora das refeições instalava-se uma acesa discussão, com a minha mãe a insistir para que comêssemos a sopa e nós, os filhos, incapazes de lhe fazer a vontade, por não conseguirmos mais tragar aqueles alimentos sem graça. Preocupada com o fastio dos filhos, costumava falar nisso ao médico de família, que nos receitava um xarope para nos estimular o apetite, que por ser doce e gostoso logo eu e os meus irmãos o despachávamos de uma avezada. Quando a minha mãe ia por ele, para nos dar uma colherzinha antes da sopa de feijão, já só via o frasco vazio e abandonado a um canto. Dessem-nos batatas fritas com salsichas ou carne, e logo veriam desaparecer-nos o malfadado fastio!
E por falar em batatas… Quando eram fritas era um aviar de batatas que até fazia impressão, ainda para mais quando sabiam ao molho da carne, que essa era sempre pouca, mas suficiente para deixar o gosto. O meu pai não achava graça nenhuma à nossa empreitada de fazer sumir assim tantas batatas, por vezes repreendia a minha mãe por as fritar, por achar que desta maneira iríamos comer todas as batatas em menos de um fósforo, que ele mesmo cultivava para consumo da família. Porém, a minha mãe fazia-lhe ouvidos de mercador, no que procedia muito bem. Esta agora! Poupar sim, mas tanto não!
Era tudo tão pobre naquele tempo, que até tenho bastante interesse em contar-vos o que se passou comigo e com uma prima minha, quando experimentámos saborear o nosso primeiro iogurte. Não posso precisar que idade eu teria, mas talvez perto dos doze anos. Deram-me um iogurte, que me lembro ser daqueles num potinho de vidro e em cor rosa, talvez por isso com aroma de morango. À primeira colherada levei um choque – estava azedo – desalentada, ainda assim continuei a comer, um pouco a medo, já a prever a inevitável revolta intestinal que se lhe seguiria, mas tinha a certeza que a pessoa que me tinha oferecido o iogurte desconhecia que este não estava em condições. Pensei que seria uma vergonha para esta pessoa, se lhe dissesse o que se passava. Para lhe poupar o vexame lá comi o iogurte.
Há uns tempos atrás contei este episódio à minha prima, que não me fez esperar pela demora e logo me contou a sua experiência, por sinal, bastante similar à minha. Havia ido com a mãe às compras, quando ao passar defronte da vitrina dos iogurtes, a mãe lhe perguntou se queria levar alguma coisa dali, pelo que a filha deitou mão a duas embalagens das mais apelativas, já que eram decoradas com flores, por isso se convenceu que seriam os mais deliciosos, contudo, sem o saber, havia optado pelo sabor natural, que para além de lhe ter sabido extremamente a azedo, nem sequer eram doces. Mas toca de os comer! Pois não! Quando a fartura não abunda não se alimentam esquisitices. Quando a mãe lhe perguntou se tinha gostado, e se aquilo era bom, a filha respondeu-lhe: – Deviam ser bons, estavam era estragados!…
Novembro 24th, 2011 as 20:34
Engraçado, apesar de serem grandes os seus textos, eu gosto muito de os ler. Parabéns :).
Novembro 25th, 2011 as 6:25
Olá Ricardo 🙂
Muito obrigada por ter sido tão simpático. 🙂