Portugalidades

Publicado por: Milu  :  Categoria: PARA PENSAR, Portugalidades

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“Nunca viajo sem o meu diário. É preciso ter sempre algo extraordinário para ler no comboio.”

 

Oscar Wilde

 

Tal como vem sendo hábito, aqui partilho mais uma das minhas leituras. Desta feita, trago-vos algumas notas colhidas no livro do filósofo José Gil intitulado “Portugal. Hoje – O medo de existir”. Ter lido este livro, foi para mim, como levar com um balde de água gelada… Ressalvo que o tempo da pobreza franciscana,  do «pobrete mas alegrete» e da ignorância profunda está representado neste livro com uma fidelidade impressionante! Passava-se fome para se pouparem uns trocos…

(…)

“(…) a partir do fim dos anos oitenta – a afectividade social de antigamente e o familiarismo sofreram golpes decisivos com a desestruturação da família e com um acontecimento único, talvez, na história de Portugal, o enriquecimento súbito, possível, para uma grande parte dos cidadãos, e a saída definitiva da situação geral de pobreza em que o país vivera durante séculos. Ainda que a pobreza continue a atingir, hoje, mais ou menos dois milhões de portugueses…

Para compreendermos melhor este último factor de transformação das mentalidades, num processo ainda em curso de abandono da pequenez e da conquista de uma outra dimensão, consideremos um pequeno exemplo, a modificação brusca de uma economia familiar de poupança para uma economia de consumo desenfreado.

O corte operou-se com o cavaquismo, e com a torrente de dinheiro que choveu sobre Portugal vinda da Comunidade Europeia. «Enriquecei!» eis a palavra de ordem da política económica cavaquista, que ecoou aos ouvidos dos portugueses como uma libertação.

Libertação de quê? Se nos lembrarmos do que a economia de poupança salazarista tinha, durante muitos anos (reforçando hábitos ancestrais), produzido nos comportamentos das famílias, seremos capazes de formar uma ideia mais exata da profunda modificação que então começou.
A poupança não foi apenas uma técnica, por assim dizer, artesanal, de amealhar, nem, certamente para o povo, de «acumular capital». Foi uma estratégia de sobrevivência, entre as condições mínimas para subsistir «dignamente» enfrentando eventuais desgraças futuras (doenças, acidentes), aumentos de despesas (filhos, festas, etc.) num país em que não existiam praticamente segurança social e apoio à saúde, a ambição de se elevar a um nível de vida um pouco melhor. A poupança não se praticava unicamente nas classes médias.

Que significava poupar? Restringir o desejo ao mínimo indispensável para criar «um pé de meia». O que impressiona, hoje, é a obsessão, a continuidade obstinada, a paixão quase, com que se poupava. Poupava-se na comida, na roupa, na casa, nos divertimentos, nos prazeres da vida de toda a ordem. Umas calças podiam durar dez ou vinte anos mesmo, e os sapatos outros tantos; remendavam-se camisas, cerziam-se saias, guardavam-se os restos da véspera e da antevéspera para as refeições do dia seguinte. Aproveitavam-se as águas usadas da cozinha para as verter na sanita, economizando gastos da companhia. Não se deixavam inutilmente luzes acesas, etc, etc.
Economia familiar de medos e esperança, com os seus pequenos potlatchs nas celebrações cerimoniais, nascimentos, casamentos, festas do calendário religioso” (pp. 67-69).

(…)

“Por exemplo, vêem-se hoje casos deste tipo: um casal (de novos ricos, ainda há pouco de recursos modestos) manda construir uma grande vivenda e, ao lado, um quarto e uma cozinha de pequenas dimensões. Vivem nestes, e a grande casa fica vazia. Justificam o seu comportamento dizendo que «é para não sujar a casa»” (p.70).

(…)
“Às vezes basta que alguém manifeste em público satisfação, contentamento de si, uma ponta de orgulho (logo qualificada de arrogância) por qualquer coisa que tenha feito, para se tornar um alvo imediato de invejas” (p.96).
“Inveja-se uma pessoa porque ela ostenta algo (um dom, um bem, riqueza, beleza, coragem, inteligência, etc.) que falta ao sujeito e que este quereria possuir. (…). Interessa-nos mostrar dois aspectos do sistema das invejas:

1. Que a inveja pode adquirir paradoxalmente uma transcendência, ultrapassando a relação dual, e passando a circular em grupo, como uma realidade independente dos elementos do grupo.

2. Que o sistema de não-inscrição, convém particularmente bem ao desenvolvimento do sistema de invejas.

Que existem grupos de inveja que funcionam com invejas, no regime da inveja (captura, nivelamento, entropia), na obsessão da inveja – decorre quase automaticamente das condições sociais propícias à eclosão e à proliferação das invejas.
Primeira condição, o fechamento do grupo. Voltado para si próprio, sem «fora», o seu ar estagna e a sua atmosfera homogeneiza os comportamentos latentes, prontos para o ressentimento e a agressividade. A diversidade, o imprevisto e o acaso desaparecem. Enquanto nada da hostilidade subterrânea transparece senão indirectamente, instala-se em cada indivíduo um desassossego que o torna cada vez mais vulnerável.
A atmosfera é, nestes casos, essencial à circulação da inveja.

(…). A constituição do grupo de inveja não resulta unicamente da generalização a todos os elementos do grupo de uma relação entre dois indivíduos (sucedendo isso, amiúde, por contágio, em atmosferas fechadas e deletérias). Mais finamente, a própria possibilidade da extrapolação da inveja ao grupo inteiro está já contida na relação a dois. Porque a inveja opera sub rosa, ao abrigo dos olhares e das consciências, ela encerra em si, virtualmente, e paradoxalmente, uma espécie de autonomia prestes a formar-se em campo «aberto» (se bem que fechado e clandestino tem a liberdade da clandestinidade e da transgressão). Ao projectar-se sobre o outro, a inveja produz sempre uma espécie de efeito de ricochete, como se o invejoso ficasse também minimamente prisioneiro da inveja que lançou. Esta volta-se, pois, contra o seu agente (ao ponto de vir assombrá-lo nos sonhos), adquirindo um começo de autonomia que a atmosfera contagiante acaba por perfazer, dando-lhe um aspecto transcendente. O grupo ganha uma atmosfera específica (com as características próprias da densidade, viscosidade, velocidade de partículas, vectores de fluxos) que permite denomina-lo grupo de invejas.

Existindo na atmosfera, agora a inveja subsiste por si, evolui por si, ataca por si. Como um vírus.
Por conseguinte, passou a ter uma existência social. Um dos seus efeitos possíveis imediatos é a paralisação de toda a dinâmica do novo. O que surge como diferente aparece como uma ameaça à igualdade que a inveja protege. Igualmente niveladora por baixo, como vimos, porque impede a expressão da singularidade: toda e qualquer manifestação de originalidade é considerada superior, e rejeitada. O rumor, a calúnia, as estratégias múltiplas de exclusão que se desenvolvem no quadro de funcionamento do grupo acabam por vencer e eliminar o elemento novo que irrompia” (pp. 96-98).

(…)

“Tal ministro que se aproveita ilegalmente de uma lei para escapar ao fisco demite-se para voltar à tona incólume, meses ou anos depois; o escândalo que mancha a acção de um governante, longe de o afastar definitivamente da política, pode ser mesmo a ocasião para começar uma carreira com um futuro ainda mais brilhante (um posto mais bem remunerado ou com prestígio internacional, etc). Nada tem realmente importância, nada é irremediável, nada se inscreve (p. 128).

Descaramento sem vergonha, que reduz ao mínimo aquele muro de decência e de moral que tem regulado o comportamento dos políticos, sem que haja uma regra que delimite claramente a zona do que é permitido politicamente e a zona em que a moralidade (quer dizer, a dignidade pessoal, a correcção, o respeito pelos concidadãos, numa palavra, a civilização) impede certo tipo de atitudes” (p. 132).

“Ao aceitarmos o descaramento com que certas medidas são tomadas, estamos a aceitar o desaparecimento de toda a ética da vida política. E estamos a deixar que novamente o nevoeiro nos envolva e que o terreno propício para a não inscrição se desenvolva. Estamos a aceitar que este se estratifique no nosso inconsciente, e assim se justifique o declínio da democracia (p.  133).

“De certo modo, o salazarismo foi uma espécie de sida da existência social” (p. 137).

Bibliografia

GIL, José. (2005). “Portugal. Hoje – O medo de existir”. Relógio D’Água. Lisboa.

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