Os males da Mulher
“O mais escandaloso dos escândalos é que nos habituamos a eles.”
Simone de Beauvoir
Desde sempre que a mulher tem vindo a ser associada ao mal. De acordo com o Génesis, o primeiro ser humano a ser tentado e a sucumbir à tentação foi uma mulher. Pois… Tinha de ser…
De então para cá, pobre mulher, saco de porrada, que és culpada de tudo. Mas esta situação pode sofrer uma transformação:
quando as mulheres lograrem perceber o que causa este estado de coisas.
Porque é a causa do mal que tem de ser combatida.
Para tal, aconselho a leitura do excerto que se segue, que foi retirado do livro “Alteridades Feridas”, da autoria de Laura Ferreira dos Santos, doutorada em Filosofia da Educação, pela Universidade do Minho.
“O mal no feminino”
“Durante séculos, a reflexão filosófica (e teológica) ocidentais sobre o mal, quando não quis passar à margem do que hoje qualificamos de questões de género – faltaria saber se o conseguiu ou não, mesmo querendo-o -, tendeu muitas vezes a enveredar por discursos que, de um modo mais ou menos explícito, apontavam as mulheres como lugares especiais de existência ou de proliferação do “mal“, ou, pelo menos, de determinado tipo de males (…). Seja como for, por omissão ou não, este contexto teórico, condicionando a vida social mas sendo também, por sua vez, condicionado por ela, não possibilitou a emergência da afirmação da igualdade de direitos e dignidade entre homens e mulheres. Mais, ou pior ainda, este contexto teórico (e “cultural”) impediu que se tomasse consciência da grande manifestação de “mal” existente no interior da própria relação mulher-homem, ao ponto de Ivone Gebara escrever que
“O que constitui a humanidade, a diferença criativa entre os sexos, aparece como um dos lugares privilegiados em que o mal mostra as suas obras” (Santos, 2002: 51-52).
(…)
“Através desta narrativa, Gebara pretende assim chamar a atenção para «a particularidade do mal vivido pelas mulheres», o que significa introduzir assumida e conscientemente a mediação da categoria de género na antiga reflexão sobre o mal, utilizando-a de modo a perceber melhor os desequilíbrios ou males existentes no relacionamento entre mulheres e homens.
Na sua perspectiva, é na abertura notória da diferença entre os seres humanos que passa pela diferença de género que o mal se aloja de uma forma particularmente profunda, embora se possa também acrescentar que de uma forma quase naturalizada, como se o mal estivesse lá mas poucas pessoas o vissem, numa naturalização ou imperceptibilidade que reforçam necessariamente o carácter insidioso desse mal. Pois que é um mal que poucos e poucas vêem, sobretudo aqueles e aquelas que possuem alguma forma de intervenção transformadora do mundo? Obviamente, também um mal que poucos e poucas combatem, um mal que se traveste nas formas de um destino contra o qual nada há a fazer” Santos, 2002: 52-53).
(…).
“Obviamente, só tomando consciência da amplitude deste mal poderemos depois procurar meios que facilitem uma vivência diferente da alteridade homem-mulher. Nas palabras de Gebara, “Trata-se de um trabalho de cura e de educação das nossas relações“, relações de género, é certo, mas relações que também podemos dizer que as extravasam, pretendendo-se uma relacionalidade diferente entre as pessoas e das pessoas com a natureza e com deus, para quem nele acredita.
Neste contexto, há algumas temáticas desenvolvidas por Ivone Gebara que se revelam a meu ver extremamente elucidativas para situar a questão do mal vivido pelas mulheres. Inicialmente, servindo-se sobretudo de obras literárias escritas por mulheres, em geral pertencentes à América Latina, Gebara focaliza a sua atenção nalguns tipos específicos de mal que as afectam: o mal que experienciam por terem um nulo ou muito reduzido acesso ao ter, ao poder e ao saber, e o mal que também se abate sobre elas por serem encaradas como valendo pouco, sobretudo se não têm a cor da pele considerada mais importante. Muito resumidamente, irei tentar explicitar cada um destes pontos, embora se deve dizer desde já que toda esta enumeração de males só artificialmente pode ser diferenciada, atendendo ao seu entrelaçamento inevitável. Embora a autora faça ainda um esforço por apresentá-los de um modo separado, acaba por ser ela própria a reconhecer que o mal de não-ter arrasta consigo os males de não-poder e de não-valer – a que bem poderia acrescentar o mal de não-saber – todos eles se conjugando para desembocar “no mal antropológico de ser mulher, e, mais ainda, no mistério do mal humano” (Santos, 2002: 54).
“Quanto ao mal de não-ter, Gebara assinala sobretudo a situação de grande pobreza económica em que vivem milhões de mulheres, impossibilitando-as de experimentarem um quotidiano alternativo que possa ser fonte de singularização. E embora Gebara tenha por ponto de referência das suas reflexões as sociedades mais pobres, é fácil alargar esse ponto de referência às sociedades economicamente mais desenvolvidas da contemporaneidade, captando que, mesmo aí, as mulheres possuem menos acesso ao ter do que os homens. Algo de semelhante pode ser dito em relação ao poder. Por variadas razões, foi-se instaurando o que Bourdieu designou de «sociodiceia masculina», ou seja, uma legitimação da sociedade e das vivências sociais em termos masculinos. Por isso mesmo, ao longo da história as mulheres foram sendo retiradas do exercício do poder, mesmo naqueles casos em que alguma vez tinham acedido a ele. À semelhança do que foi dito para a questão do ter, também nas sociedades contemporâneas economicamente mais desenvolvidas as mulheres podem menos do que os homens.
Por outro lado, ao mal de não-ter e de não-poder junta-se o mal de não-saber. Neste ponto concreto, Ivone Gebara refere o exemplo da Irmã Juana Inés de la Cruz, mexicana do século XVII, objecto de um estudo de Octavio Paz (Paz, 1987), que a considera a primeira feminista da América Latina. Desejosa de saber mais, Juana entra num convento. Mas as «leis de género» abatem-se sobre ela, tornando-a suspeita de transgredir a natureza ao querer ocupar-se de uma área masculina como era a do conhecimento. Por isso, teve os livros queimados e teve de renunciar ao saber, num movimento que, na perspectiva de Octavio Paz e de Ivone Gebara, nada se assemelhava a um acto de humildade, mas era antes um acto de humilhação «imposto pelas autoridades eclesiásticas responsáveis pela Inquisição na Nova Espanha. Como é sabido, o conhecimento intelectual foi durante séculos um monopólio masculino, julgando-se que as mulheres não tinham capacidade suficiente para aceder a ele, por não estar de acordo com a sua «natureza», ou que deviam limitar-se a adquirir os conhecimentos que ajudariam a governar melhor uma casa. Ainda hoje, como se sabe, a distribuição entre os géneros do conhecimento socialmente prestigiante ou valorizado é algo de bastante desigual.
Finalmente, Ivone Gebara incide a sua atenção no mal de não-valer. Como escreve, em muitas sociedades,
«uma menina não vale por si mesma. Vale quando é submissa ao pai e à mãe, ao seu marido ou simplesmente à sua família. Vale pela sua beleza, pelos serviços domésticos que pode oferecer, pela sua capacidade de ser uma mãe excelente e uma excelente dona de casa. Os homens, sim, os homens valem por si mesmos, pelos seus esforços de autonomia, pelo seu combate para se tornarem pessoas de bem e socialmente reconhecidas».
Pior ainda se a menina ou mulher, para além de não ter o sexo normativo, não tem tão-pouco a cor da pele normativa, que é a branca. Como nos informa Gebara, no nordeste brasileiro era habitual as crianças negras (decerto tanto meninas como meninos, subentende-se) não serem aceites para irem vestidas de anjo (a) nas festividades religiosas católicas, sobretudo nas que diziam respeito a Maria. Por outro lado, como nos alerta Gebara, sabe-se que há poucas bonecas negras no mercado, que as mulheres negras, em particular as mulatas, ainda mais do que as outras mulheres, são sobretudo vistas como um objecto sexual, e que muitas crianças negras anseiam ter traços de crianças brancas, como aquela menina negra que rezava todos os dias para ter os olhos azuis” (Santos, 2002: 55-56).
(…).
“Por outras palavras, poder-se-ia dizer que, ao longo da história mulheres e homens têm estado colocados em posições excessivas ou extremadas, os homens num excesso de ter, poder, saber e valer, as mulheres num excesso de carência desse mesmo ter, poder, saber e valer” (Santos, 2002: 57).
♦♦♦
“Esconde esse absorvente
Essas espinhas
Arranca esses pêlos
Da um jeito nesse seu cabelo duro
Mal cuidada
Porca
Feche esse sorriso
Sua mãe não te ensinou
Sobre o perigo de andar sorrindo na rua?
Abaixa essa cabeça
Para de encarar
Você esta chamando atenção
Assim vão achar que você esta dando mole
Delicia
Gostosa
Oh la em casa
Fecha essa boca e não reclama
Saiu de casa de saia curta
Camisa decotada
Maquiagem
Sem um homem
Tem que aguentar
Como assim não sabe cozinhar?
Você é mulher
Tem que cuidar do lar
Como assim não quer engravidar?
Você é mulher
Tem que engravidar
Faculdade? Viagem?
Mas você é mãe
Tem que cuidar
Abriu as pernas, agora não adianta
Largar na creche
Irresponsável
Mãe solteira?
O pai foi embora?
Não sabe quem é o pai?
Transou sem camisinha
Vai ter que aguentar
Vadia
Esse roxo ai
Tenho certeza que apanhou
Que teu marido te bateu
Mas você mereceu
Provocou ele
Você sabe que não pode se levantar
Mulher tem que ser submissa
O homem é que comanda o lar
Ah, mas que criança linda
É uma menina?
Toma aqui esse vestidinho rosa
Essa coberta de florzinhas
Pinta o quarto de rosa
Um rosa bem bonito
Porquê mulher é monocromática durante a infância
Ih, chegou a menarca
Essa vai dar trabalho
Ensina pra ela a se valorizar
Mulher tem que se dar ao respeito
Fala pra ela não deixar ninguém ver esse absorvente
Esse sangue sujo
Vai ter que começar a usar sutiã
Os mamilos estão aparecendo pela camisa
Que coisa horrível
Adolescente descuidada
A mãe dessa ai não ensinou nada
Foi estuprada?
Morreu no processo?
Devia estar pedindo
Sem sutiã, andava sozinha
Aquele batom vermelho
Aquela bunda enorme
Não sabe que menina tem que ficar em casa?
Deu sorte pro azar
Não foi educada
A mãe era solteira
O pai estava é certo de ir embora
Se ela era assim com a filha, imagine com o marido
Não foi respeitada
Opressão?
Imagine
Olha lá a mãe dela
Na beira do caixão
Olhando pro rosto da filha
Sem cor, sem vida
Um futuro morto antes mesmo do nascimento
Filha de mãe solteira
Sem pai, sem respeito
Morreu tão jovem
Aos 17
Uma menina tão linda
Maldita sociedade
Espero que a mãe dela aprenda a lição
E não tenha mais filhos
Suicídio?
Mas ela poderia ter começado uma vida nova
Agora que tinha perdido a filha
Poderia terminar a faculdade
Arrumar um emprego
Mas era uma fraca
Era mulher
O destino, a vida, as possibilidades
As pessoas
Cavaram a cova e jogaram ela lá dentro
Vitimismo? Preconceito?
Abuso? Agressão?
Cala essa boca e vai lavar uma louça
Você tem uma delegacia só sua
Tem seus direitos
Não luta na vida
(Mas luta na rua)
Não morre na guerra
(Mas morre em casa)
Cintia Duarte Montilla
Bibliografia
SANTOS, F. Laura. (2002). Alteridades Feridas. Ensaio Filosofia. Angelus Novus. Coimbra.