O olhar que não vê

Publicado por: Milu  :  Categoria: O olhar que não vê, PARA PENSAR

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“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.”

Paulo Freire

 

Para os mais atentos, não tem passado despercebido, que são cada vez mais as vozes que se alteiam para afirmar, categoricamente, da necessidade de uma revolução na educação escolar. Em primeiro lugar porque se tornou por demais evidente, que  uma escola regida pelo modelo cartesiano, que tão bem serviu às necessidades surgidas da Revolução Industrial, não se adequa às demandas da sociedade contemporânea, palco de transformações sociais causadas pela  globalização e progressos tecnológicos.

Mudar a estrutura da escola e a sua forma de ensino é, por conseguinte, uma urgência que se impõe. A mudança, a grande mudança, verificar-se-á, certamente, quando os alunos gostarem tanto, ou mais, de estar na escola do que na sua própria casa.

É indecente que a escola continue a lidar com as crianças e jovens como se todos fossem iguais, como se todos tivessem o mesmo ritmo de aprendizagem, como se todos tivessem as mesmas aptidões, as mesmas motivações e apetências.

A este propósito concordo plenamente com  o psicólogo e psicanalista, Eduardo Sá, quando afirma que ““É estranho que não se acarinhe o erro, porque uma criança que não pode livremente errar ganha uma imunodeficiência adquirida ao erro e à dor”. O que tem como consequência, advertiu, “tornarem-se competitivos e presunçosos, quando diante do conhecimento deviam ser rebeldes”.

É indecente que algumas escolas continuem a ter o chamado “quadro de honra” que fomenta a competição ao invés de incentivar a cooperação entre os alunos. Acaso a competição é saudável??

Não seria mais bonito, mais proveitoso, a escola  ensinar aos alunos que apreenderam melhor as matérias, ou uma determinada matéria, a darem a mão ao colega que ficou para trás, em vez de cada um fazer por si, como agora se ensina e privilegia, ou de se arvorarem em mais inteligentes do que os outros (eu é que sou o maior)?  Não seria este espírito de inter-ajuda mais construtivo e por isso formador de consciências verdadeiramente  solidárias?

Mais ainda: o aluno que figura no quadro de honra  nem sempre é o mais capacitado, mas aquele que teve acesso a mais e melhores recursos. Como exemplo temos os filhos de pais de classe média, que por reconhecerem a importância dos estudos, se empenham em esforços para facultarem aos filhos todos os materiais necessários para uma boa aprendizagem, incluindo a contratação de professores explicadores.

Ao contrário destes, existem os outros alunos, que para além de não lhes terem sido  proporcionadas todas estas vantagens, ainda têm de ajudar os pais, quer nos trabalhos domésticos, quer cuidando de um irmão ou irmãos mais novos. Uma criança nestas condições é penalizada de todas as maneiras: por não ter os mesmos recursos de outros alunos não consegue optimizar o seu trabalho, e a escola que permanece cega a estas situações não valoriza devidamente os esforços destes alunos. Assim, estes desafortunados alunos nunca terão a surpresa de ver o seu nome figurar no “quadro de honra”. Para todos os efeitos, e se bem vistas as coisas, serão então “os sem honra”, permitam-me a figura de retórica…

É indecente que ainda se continue a avaliar os conhecimentos adquiridos pelo aluno através dos tradicionais e dinossauricos testes, sabendo-se que o copianço está transformado numa instituição. Assim, premeia-se o mais esperto. Assim, fomenta-se desde tenra idade a tendência para o chico espertismo. Muitos destes alunos obtêm com estas “artes”  nota suficiente para irem passando as disciplinas. Já os  mais habilidosos conseguem o artifício de obter notas francamente elevadas. Visto por este prisma, não nos podemos alhear da evidência de que o teste é um convite para a desonestidade. Por outro lado, o aluno que não copiou, sujeita-se não só a obter uma nota mais humilde, mas também, ironia das ironias, a ser olhado pelos seus pares como um pobre tanso. E é com este quadro de valores que as crianças e jovens têm vindo a ser educadas para a vida.

Infelizmente não estou a exagerar.  Para atestar de que o acto de copiar durante as provas ou testes é algo corriqueiro, temos um caso que foi bastante badalado nos jornais nacionais. Quando o copianço é o modus operandi desta elite… o que se há de esperar da ralé, por assim dizer. E desengane-se quem pensa que  foi apenas um acidente de percurso… ou uma vez sem exemplo. Podem ter a certeza de que para estes excelsos indivíduos, esta forma de se comportar nos testes se vem arrastando desde os primeiros bancos de escola. Porque só o hábito dá lugar ao descaramento.

“Indícios de que a maioria dos 137 auditores que estão no Centro de Estudos Judiciários (CEJ) a formarem-se para serem juízes ou procuradores copiaram num teste levou à anulação do exame. Face à impossibilidade de encontrar uma data para repetir o teste, a direcção da instituição decidiu anulá-lo e atribuir nota 10 a todos os futuros magistrados.”

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Para melhor elucidar os meus leitores sobre o quanto a escola deve ser alterada, posto aqui um vídeo do professor José Pacheco. Todo ele foi uma delícia para os meus ouvidos. Todo ele vem de encontro aos meus pensamentos, às minhas ideias. Peço-vos para repararem  nos  momentos finais do vídeo, com o professor a contar-nos a história da mosca e a lição que nela está contida, ou seja: nada, nada, é definitivo. Tudo, tudo, pode ser posto em causa. Tudo pode ser contestado. E devemos fazê-lo. E, já agora, fazer outra coisa deveras importante:

  • parar para pensar.

 

Mas,  ao jeito de complemento do discurso de José Pacheco, a minha chamada de atenção para a rábula da mosca tem uma finalidade especial… Referir mais uma vez o sempre meu,

eternamente meu,

José Saramago.

Que também nos conta sobre a mosca doméstica, em termos ligeiramente diferentes, mas com o mesmo espírito. Ei-lo, José Saramago:

“Aqui, neste escritório onde a verdade não pode ser mais do que uma cara sobreposta às infinitas máscaras variantes, estão os costumados  dicionários da língua e vocabulários, os Morais e Aurélios, os Morenos e Torrinhas, algumas gramáticas, o Manual do Perfeito Revisor, vademeco de ofício, mas também estão as histórias da Arte, do Mundo em geral, dos Romanos, dos Persas, dos Gregos, dos Chineses, dos Árabes, dos Eslavos, dos Portugueses, enfim, de quase tudo o que é povo e nação particular, e as histórias da Ciência, das Literaturas, da Música, das Religiões, da Filosofia, das Civilizações, o Larousse pequeno, o Quillet resumido, o Robert conciso, a Enciclopédia Política, a Luso-Brasileira, a Britânica, incompleta, o Dicionário de História e Geografia, um Atlas Universal destas matérias, o de João Soares, antigo, os Anuários Históricos, o Dicionário dos Contemporâneos, a Biografia Universal, o Manual do Livreiro, o Dicionário da Fábula, a Biografia Mitológica, a Biblioteca Lusitana, o Dicionário de Geografia Comparada, Antiga, Medieval e Moderna, o Atlas Histórico dos Estudos Contemporâneos, o Dicionário Geral das Letras, das Belas-Artes e das Ciências Morais e Políticas, e, para terminar, não o inventário geral, mas o que mais à vista está, o Dicionário Geral de Biografia e de História, de Mitologia, de Geografia Antiga e Moderna, das Antiguidades e das Instituições Gregas, Romanas, Francesas e Estrangeiras, sem esquecer o Dicionário de Raridades, Inverosimilhanças e Curiosidades, onde, admirável coincidência que vem a matar neste aventuroso relato, se dá como exemplo de erro a afirmação do sábio Aristóteles de que a mosca doméstica comum tem quatro patas, redução aritmética que os autores seguintes vieram repetindo por séculos e séculos, quando já as crianças sabiam, por crueldade e experimentação, que são seis as patas da mosca, pois desde Aristóteles as vinham arrancando, voluptuosamente contando, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, mas essas mesmas crianças, quando cresciam e iam ler o sábio grego, diziam umas para as outras, A mosca tem quatro patas, tanto pode a autoridade magistral, tanto sofre a verdade com a lição dela que sempre nos vão dando” (Saramago, 1989: 26-27).

Grandioso! Grande Saramago. Grande a tua verdade: Porque é tão difícil vermos o que está à vista?

“(…) mas essas mesmas crianças, quando cresciam e iam ler o sábio grego, diziam umas para as outras, A mosca tem quatro patas, tanto pode a autoridade magistral, tanto sofre a verdade com a lição dela que sempre nos vão dando.”

Sem Título

Bibliografia

SARAMAGO, José. (1989). História do Cerco de Lisboa. Caminho. Lisboa. pp. 26-27.

2 Comentarios to “O olhar que não vê”

  1. Jose Rosa Diz:

    Simplesmente brilhante esse post. Talvez o melhor que li neste espaço. Parabéns Miluzinha, juntar num só post José Pacheco e José Saramago foi genial. Quisera eu que todos os meus conterrâneos brasileiros lessem isso, em especial aqueles que labutam em Educação.
    Um beijo,
    José Rosa.

  2. Milu Diz:

    Obrigada José Rosa. Nem imagina o quanto prezo a sua opinião. Foi um elogio, uma alegria para mim, ter gostado deste post.

    Beijo

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