O estigma de mau aluno
“O mestre disse a um dos seus alunos: Yu, queres saber em que consiste o conhecimento? Consiste em ter consciência tanto de conhecer uma coisa quanto de não a conhecer. Este é o conhecimento…”
Confúcio
Apontamentos retirados durante a minha leitura do livro “Educação e Sociedade de Risco” da autora Maria Manuela Machado da Silva.
“A inevitável correlação entre a qualidade dos resultados escolares e os contextos situacionais dos alunos surge a marcar negativamente os precocemente excluídos do sistema de ensino e mostra-se indissociável de estigmatizações conducentes ao desvio e em especial à população com quem os tribunais frequentemente lidam” (p. 9).
“Os efeitos negativos dos veredictos escolares, que agem como estigmatizações no círculo vicioso do fracasso ou da exclusão social, são sanções negativas, sobretudo, se se aplicam a adolescentes. Os adolescentes que ficam pelo caminho, logo no início do ano escolar, engrossando as fileiras dos perdedores, constituem um substrato educativo com alguns elementos caracterizadores comuns. Não raras são as vezes que as únicas vias de sobrevivência que se lhes oferecem para seguir são aquelas que conduzem ao risco social. Na generalidade dos casos pertencem a uma destas três categorias: a) sujeitos oriundos de estratos sociais dos mais desfavorecidos economicamente; b) Sujeitos de origem sócio-cultural minoritária, geralmente imigrantes e seus descendentes e refugiados; c) sujeitos cujas condições económicas de origem não foram das mais precárias, mas por factores sociais, em especial, os que afetam a família nuclear, se encontram em situação de precariedade ou sem suporte familiar. Perante o espaço escolar apresentam em comum elevadas taxas de abandono, de absentismo, falta de interesse pelas matérias e o rótulo de produção frequente de conflitos nas salas de aula e nos espaços de recreio” (p. 11).
“(…). São os excluídos por motivo da sua agressividade ou da sua passividade ou simplesmente pela sua inadaptação. Quando deixam a escola, encontram-se numa fase de socialização que os confronta com problemas novos e problemas de sobrevivência prioritários e de um imediatismo crítico. Quaisquer que tenham sido as circunstâncias que os levaram a sair ou a abandonar a escola, sendo não escolarizados, ou com níveis escolares desvalorizados, as oportunidades que se lhes oferecem de encontrar trabalho são diminutas ou inexistentes. De entre as alternativas que têm para sobreviver, acumulam-se ainda dificuldades familiares, sociais e culturais, e não serão certamente as socialmente aceites as mais disponíveis. Numa espécie de vazio, tornam-se numa atracção notória para as redes de marginais adultos e facilmente se encaminham para «casos sociais»” (p. 13).
“(…) Remobilizar o sistema educativo para a redução dos contingentes anuais dos «excluídos» e «desvalorizados». Atribuir a estruturas técnico-pedagógicas do ensino básico a utilização esclarecida da informação tecnicamente adequada à prevenção primária contra a toxicodependência, de forma a integrá-la na progressão dos níveis cognitivos das crianças e dos adolescentes, evitando os «efeitos perversos» das campanhas e dos programas vulgarmente em marcha. Ressocializar «os menos equipados» através de processos «não estigmatizantes», em espaços pós escolares mas em interacção com a escola” (p. 14).
“O meio humano transformou-se rapidamente, sob o efeito de várias revoluções que incidiram sobre vários domínios como a ciência, a técnica, a economia, a demografia, a relação política e as instituições sociais. Os sistemas educativos também têm sido objeto de transformações e têm-no sido de maneira acelerada. Mas isso não tem acontecido com a dinâmica suficiente, de forma a permitir-lhes acompanhar o ritmo das transformações que se verificaram, e continuam a verificar, em todos aqueles domínios. A diferença de ritmo de mudança dos sistemas educativos em relação a esses domínios, diferença traduzida sob múltiplas formas e disparidades marcantes, está, seguramente no cenário de crise” (p. 22).
“(…) Desequilíbrio e a desatualização entre o ensino e o mundo do trabalho, assim como as graves desigualdades em relação às oportunidades de acesso e às possibilidades de desempenho escolar entre os diversos grupos sociais” (p. 22).
“Em 1990, realizou-se na Tailândia uma Conferência mundial, organizada conjuntamente pelo Banco Mundial, UNESCO e UNICEF, entre outros organismos, à qual assistiram delegados de 155 Governos, representantes de um grande número de instituições e de organizações não-governamentais, assim como, peritos de educação de todo o mundo. Independentemente da acuidade da renovação do comprometimento para que a educação seja, de facto, um direito de todos, a chamada «educação de base» foi o tema principal e esteve em análise em todas as componentes constitutivas do quadro da actual conjuntura. A «Declaração Mundial de educação para Todos», adotada por esta conferência, compreende uma dimensão de tal ordem alargada da educação elementar universal e obrigatória que, na hipótese de ela poder um dia vir a ser concretizada iria alterar por completo o figurino dos nossos estabelecimentos de ensino básico. A definição aí aceite, sublinhando que a educação básica não pode mais ser sinónimo de restrita escolarização, envolve desde as creches e jardins de infância, ao ensino primário ou aos programas que o substituam, à alfabetização, à formação profissional, aos programas escolares e extra-escolares, formais e não formais, destinados a jovens ou a adultos, compreendendo domínios como a saúde, a ciência, a tecnologia, o ambiente, entre outros temas e problemas da sociedade, como na área da Comunicação e da Informação” (p. 35).
“Ao contrário de outras instituições sociais, que vão perdendo importância no desempenho de muitas das funções que tradicionalmente lhes competiam, a Escola protagoniza uma importância cada vez mais significativa «na transformação das crianças e dos adolescentes» na sociedade contemporânea. A transferência para esta instituição da esfera de outros agentes educativos, como a Família, as instituições religiosas, espaços profissionais e outros espaços significativos, confere-lhe uma nova dimensão crítica” (p. 37).
“A par dos adolescentes que têm aproveitamento escolar, que atingem as «marcas competitivas», há aqueles que ficam pelo caminho. São muitos os que engrossam as fileiras dos perdedores de uma sociedade meritocrática” (p. 39).
“O corolário da obrigatoriedade e do prolongamento da escolaridade básica, da sua universalidade, e da importância progressiva do modelo meritocrático imposto ao conjunto dos grupos sociais, parece não poder deixar de ser o de que, qualquer estratégia social, tanto para a manutenção social de origem, como para o alcance de uma trajetória profissional e social ascendente, terá de passar por títulos escolares, quando não, pela sua acumulação, independentemente de outras componentes intervenientes no processo. O esquema lógico desta interpretação, será, então, negar toda a possibilidade de expressão a outro qualquer tipo de formulação estratégica que não passe pela escola. Assim, todas as crianças que fracassam nas aprendizagens de base e que, por dificuldades de ordem diversa, sejam excluídas do sistema escolar, terão inevitavelmente, de o ser também socialmente. Fora do aparelho escolar não há dimensão social para as crianças vítimas da depreciação e da desvalorização de todos os outros modelos de socialização. Por outro lado, quando a escola e a socialização através dela obtida se tornam dominantes, os sujeitos que por ela não passam, ou que foram relegados para percursos que fornecem compensações menos rentáveis económica e socialmente, estão antecipadamente limitados nas suas estratégias” (p. 40 – 41).
“As famílias mais dotadas em relação ao meio socioeconómico e cultural permitem mais facilmente, a algumas das fações dos jovens com baixos níveis de escolarização, trajetórias sociais e profissionais ascendentes ou, pelo menos, não descendentes, enquanto que os jovens, acumulando dificuldades familiares, sociais, culturais e escolares, estão à partida limitados nas trajetórias profissionais” (p. 43).
“Na cultura ocidental, o conceito de adolescência e a sua problematização são relativamente recentes. Surgiram já no século XX e apenas depois de ter sido caracterizada fase de vida anterior, a infância, conceptualização alcançada em pleno, também, só neste século” (p. 61).
“São as alterações qualitativas que o processo cognitivo passa na adolescência e as novas estruturas do conhecimento então adquiridas que permitem ao indivíduo dar forma à consciência de si mesmo. Nesta matriz de interpretação, as mudanças verificadas são consideradas como inerentes ao processo psicogenático e à diferenciação de expectativas relacionais que têm lugar durante a adolescência. As capacidades cognitivas que são alcançadas nesta fase da vida dominam o processo de comparação social que o adolescente faz de si e dos outros, a sua auto-avaliação e a aquisição de perspetivas, sublinhando a diferenciação em múltiplos domínios, funções e papéis. Desta diferenciação, isto é, da forma como a comparação é realizada, podem resultar confusões e conflitos para o adolescente”(p. 87).
“Da cadeia de efeitos existente resulta que a auto-estima tem um papel funcional, dado o seu efeito na afetividade do adolescente e o subsequente efeito na sua energia e motivação. O vasto campo teórico na atualidade sobre esta temática confirma sem dificuldade de consenso que uma baixa auto-estima e auto-atributos negativos no adolescente são correlativos de depresão e aparecem como percursores de comportamentos associais” (p. 95).
O espaço escolar:
“A Maria de Fátima foi à escola e frequentou-a até «à 5ª classe». Repetiu e acabou por abandoná-la. Deixava-se dormir muitas vezes e assim «acabava sempre por perder por faltas». Não fala da escola espontaneamente nem manifesta qualquer interesse em voltar a frequentá-la. Apenas, ao ser solicitada para dizer alguma coisa que se tivesse passado enquanto a frequentou, descreveu um episódio que disse, «ainda se lembrava muito bem», e que se referia à mãe de uma colega. Um dia, à saída, chovia muito. Quando veio a mãe dessa colega com uma sombrinha para a filha, também a levou debaixo da sombrinha dela, «quis tapá-la da chuva»” (p. 106).
“Se a Escola se tornou teoricamente no agente de socialização hegemónico, a questão dos conteúdos e dos fins do ensino não pode ignorar as contradições que estão inscritas numa instituição pensada para servir interesses tão diferentes, quando não antagónicos, exigências opostas, fins propostos e limitações de meios para os alcançar. Se os fins que presidiram à universalização da escolaridade básica ou elementar não foram ainda alcançados, essa universalização, ou obrigatoriedade, fez surgir uma categoria social nova. Um efeito «perverso», que se caracteriza por subconjuntos relativamente homogéneos em relação a variáveis familiares, escolares e sociais. Nestas variáveis estão maciçamente representados os problemas identificativos de situações familiares problemáticas com incidência direta em acidentes biográficos, uma escolaridade e inacabada com a inerente exclusão das fileiras da competição, e a vulnerabilidade ao desemprego. Agravadas pelas situações socioeconómicas das famílias de origem, estas variáveis conduzem, não poucas vezes, às únicas vias de escolha possível e «forçada» onde os expedientes de sobrevivência têm, naturalmente, várias modalidades de acesso e etapas que não excluem o risco e o itinerário da marginalização social. A droga, a prostituição e outros comportamentos problemáticos estão na visibilidade das trajetórias frequentes” (p. 129).
Bibliografia
SILVA, Maria. Manuela. Machado. (1993). Educação e Sociedade de Risco. Gradiva. Lisboa.