O Eldorado
“O espírito que nos anima pode assumir as mais diversas formas: tornar-nos semelhantes a anjos, a demónios ou a bestas. A cada um a sua escolha.”
Henry Miller
De vez em quando sinto necessidade de tornar a ler livros que já li há muito. Alguns, lidos na minha juventude. É como revisitar os lugares onde fui feliz.
Desta feita, calhou ao grande Henry Miller.
Numa altura em que os Estados Unidos da América andam na boca do mundo, nomeadamente na figura do seu presidente Donald Trump, eis que chego a uma descrição deste país, através de Henry Miller, na sua obra “Pesadelo em ar condicionado“, que é no mínimo curiosa. Este livro foi escrito na década de 40 do século passado, mais precisamente em 1945. Quando o li na minha juventude, provavelmente a minha atenção não se quedou nesta descrição. Era muito jovem para me perder nestes detalhes. Talvez eu quisesse saber outras coisas. Mas agora que reli à luz dos acontecimentos da actualidade, não pude deixar de ficar pensativa. Por momentos, recordei um ex colega e a sua experiência nos USA, onde trabalhou uma temporada, que uma vez me disse “aquilo é o puro capitalismo, o capitalismo puro e duro!”. E eu ouvi isto e fiquei absorta, a tentar imaginar, em vão, como teriam sido as suas vivências.
Miller, um americano nascido em New York, fala assim do seu próprio país:
“New Hope é uma das colónias de arte da América. Recordo-me vivamente do meu estado de espírito ao deixá-la, o qual se pode resumir no seguinte: Não há esperança para o artista! Os únicos artistas que não levavam uma vida de cão eram os comerciais; tinham belas casas, belos pincéis, belos modelos. Os outros viviam como condenados a prisão perpétua. Esta impressão foi confirmada e tornou-se mais profunda durante o resto da viagem.
A América não é país para um artista – porque um artista é considerado moralmente um leproso, uma pessoa economicamente desajustada, socialmente passiva. Um suíno alimentado com cereais leva vida melhor que um criador, seja ele escritor, pintor ou músico. Um coelho desfruta ainda de melhores regalias” (Miller, 1971: 14-15).
“A América é povoada, como todos sabemos, por pessoas, ou seus descendentes, que fugiram de situações tão desagradáveis. A América é a terra par excellence dos expatriados, dos fugitivos, dos renegados, para usar uma palavra mais forte. Poderíamos ter construído um mundo maravilhoso neste novo continente, se tivéssemos realmente rejeitado os nossos semelhantes da Europa, da Ásia e da África. A América ter-se-ia tornado um admirável mundo novo, se tivéssemos tido coragem de voltar costas ao antigo para construir a partir do nada, aproveitando apenas o solo, a fim de eliminarmos os venenos que se acumularam através de séculos de amargas rivalidades, invejas e profundos conflitos.
Um mundo novo não se constrói procurando esquecer o antigo.
Um mundo novo alicerça-se num espírito novo, em novos valores. O nosso mundo poderia ter começado daquela maneira, mas hoje é somente uma caricatura.
O nosso mundo é um mundo de coisas.
É todo ele constituído por comodidades e luxos, ou então pelo desejo de os alcançar. O que mais tememos, ao encarar o débâcie iminente, é sermos obrigados a abandonar as nossas futilidades, as nossas engenhocas, todos os pequenos objectos cómodos que nos tornaram tão desconsolados. Não há nada de admirável e de cavalheiresco, de heróico ou de magnânimo, nas nossas atitudes. Não somos almas tranquilas; somos presunçosos, tímidos, demasiado escrupulosos, enfastiados e instáveis” (Miller, 1971: 15-16).
“Tive de percorrer cerca de quinze mil quilómetros até conseguir a necessária inspiração para escrever a primeira linha do meu livro. Podia contar num máximo de trinta páginas tudo o que se me afigurava digno de ser dito sobre a vida americana. Topograficamente, o país é magnífico… e aterrador. Aterrador porquê? Porque em nenhum outro ponto do mundo é tão absoluto o divórcio entre o homem e a Natureza. Em parte alguma encontrei estrutura de vida tão insípida e monótona como na América. Aqui, o aborrecimento, a sensaboria atingem o seu ponto mais alto.
Estamos habituados a supor-nos um povo emancipado; declaramos que somos democráticos, amantes da liberdade, isentos de preconceitos, que não sentimos ódios. Este é o crisol de uma grande experiência humana. Belas palavras, eivadas de um nobre e idealístico sentimento. Porém, constituímos uma casta vulgar de videirinhos, cujas paixões são facilmente mobilizadas pelos demagogos, pelos jornalistas, pelos charlatães das diversas seitas religiosas, pelos agitadores e por outra gente do mesmo jaez.
Chamar a isto uma sociedade de pessoas livres é blasfémia.
Que temos para oferecer ao mundo além da superabundância de excedentes, daquilo que pilhamos brutalmente à terra, com a ilusão maníaca de que esta actividade insana representa progresso e iluminação? A terra da oportunidade transformou-se na terra da labuta insensata e da luta porfiada. Os objectivos de todos os nossos esforços foram há muito esquecidos. Já não desejamos auxiliar os oprimidos e os indigentes; não há lugar nesta enorme terra vazia para os que, como os nossos avós, procuram agora refúgio. Milhões de homens e mulheres estão, ou estiveram até muito recentemente, a ser socorridos pela assistência pública, condenados como cobaias a uma vida de inacção ou preguiça forçada. O mundo entretanto fixa-nos com um desespero jamais conhecido. Onde está o espírito democrático? Onde estão os dirigentes?” (Miller, 1971: 18-19).
Bibliografia
MILLER, Henry. (1971). Pesadelo em ar condicionado. Editorial Estampa. Lisboa.