Marcas de uma vida

Publicado por: Milu  :  Categoria: Marcas de uma vida, PARA PENSAR

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“Só se nos detivermos a pensar nas pequenas coisas chegaremos a compreender as grandes.”

José Saramago

Poucos, pouquíssimos, foram os livros que  li mais do que uma vez. Porque para mim, um livro, uma vez lido – está lido. E, depois, com tanta oferta uma pessoa acaba mesmo por se dispersar. Quer abarcar tudo e o tempo escapa-se-lhe, sorrateiro.

Contudo, há uns tempos que tenho notado em mim uma mudança considerável na forma como vejo o mundo, na forma como vejo as coisas… Assim sendo, muitos dos livros já lidos afiguram-se-me hoje como uma nova realidade, trazem-me raciocínios e conexões novas, que antes fui incapaz de estabelecer… Só tenho a ganhar se os ler novamente. Foi exactamente isto que senti, quando um dia destes peguei e folheei alguns dos livros de José Saramago, que adquiri no ano de 1987, agora já um tanto amarelecidos, dando mostras de que o tempo faz das suas… E lá, neles, escrito por punho próprio, “Este livro pertence a… o meu nome completo… e a data 10/06/1987”. Não fossem eles desaparecerem-me de mãos!

Fui lendo uma coisa aqui, outra ali, puramente ao acaso. E não é que me senti em verdadeiro êxtase?? Tudo para mim faz sentido.

Tudo…

Nada do que José Saramago fala me é estranho, sou toda ouvidos ao que ele me diz, tudo sou capaz de visualizar, como se estivesse a acontecer no momento, num qualquer palco da vida.

Eis um desses momentos, num pequeno excerto do livro “Levantado do Chão”, uma paisagem bela mesmo na sua rudeza, que reflecte a triste condição dos desafortunados da vida, uns ainda mais desafortunados do que outros, se bem entendido. A fina e requintada crítica ao engodo da religião, que promete o céu. Não em qualquer canto por lá, mas num lugar ao lado direito de Deus,  ali colado a Ele, a quem se fartar de levar porrada e miséria neste pecaminoso mundo em que vivemos, etc, etc…

E os cavalos tratados e estimados como pessoas e as pessoas tratadas como se fossem animais…

Saramago não escreve, que isso muitos fazem, enrodilham palavras, emaranham frases com palavras enrodilhadas, como muitos escritores da nossa praça, num catchapum, catchapum, catchapum interminável, para os quais não tenho paciência –

Saramago faz mais do que isso:

Saramago diz coisas. E o que diz!…

Sem Título

 

“Agora João Mau-Tempo é o homem da casa, o mais velho. Morgado sem morgadio, dono de coisa nenhuma, pequena é a sombra que faz no chão. Arrasta os tamancos que sua mãe mandou fazer, mas os troços pesados caem-lhe dos pés, e ele inventa uns suspensórios toscos que passando por baixo do rasto se vão prender a uns buracos na bainha das calças.

É uma figura grotesca, de enxadão às costas, maior do que ele, que de madrugada se levanta da enxerga, na luz oleosa e fria da candeia, e tudo é tão confuso, tão espesso o sono, tão sem norte os gestos, que provavelmente já de enxadão às costas sai da enxerga, já de tamancos, maquineta primitiva de um só movimento, levantar o enxadão e deixar cair, onde estão as forças.

Sara da Conceição lhe disse, Meu filho, por esmola me deram trabalho para ti, para ganhares alguma coisita, pois a vida é uma carestia e não temos donde nos venha. E João Mau-Tempo, sabedor da vida, pergunta, Vou cavar, minha mãe. Sara da Conceição, pudesse ela, diria, Não vais, meu filho, tens só dez anos, não é trabalho para uma criança, mas que há-de ela fazer se neste latifúndio não sobram outros modos de viver e o ofício do pai defunto é mal-assombrado.

Noite ainda fechada se levanta pois João Mau-Tempo e por sorte sua o caminho para a herdade da Pedra Grande passa pela Ponte Cava, lugar ainda assim de bem-aventurança como ficou demonstrado no episódio anterior, onde se salvaram os pobres da ira de Domingos Mau-Tempo, lugar duas vezes bem aventurado porque, mesmo suicidado de tão bruta maneira, e não obstante os seus muitos pecados, não há misericórdia se o sapateiro não estiver a esta hora sentado à mão direita do Pai Deus.

Domingos Mau-Tempo foi um triste homem desgraçado, não o condenem as boas almas. Vai pois o filho a passar no lusco-fusco de um sol ainda longe, sai-lhe ao caminho  a mulher do Picanço, e diz-lhe, Então, João, para onde vás. Responde o dos olhos claros, Ora, vou para a Pedra Grande arrancar mato. E a Picança, Ai coitadinho, tu não podes com o enxadão e o mato é tão grande. Facilmente se vê que é uma conversa de pobres, entre uma mulher feita e um homem no princípio, e falam destas coisas de pouca substância e nenhum voto espiritual, porque já se viu que tudo isto é gente rude, sem letras que iluminem, ou, se as há, aos poucos se vão apagando.

João Mau-Tempo sabe que resposta dará, ninguém lha ensinou, mas outra certamente estaria fora do tempo e do lugar, Seja o que Deus quiser, vou experimentar para ajudar a minha mãe, coitadinha, porque a nossa vida é o que vocemecê sabe, e o meu irmão Anselmo vai pedir uma esmola, pelo amor de Deus para depois me levar alguma coisita aonde eu ando a trabalhar, porque minha mãe não tem dinheiro para comprar o avio.

Diz a Picança, Então, vais sem farnel, menino de Deus. Responde o menino de Deus esquecido, Sim senhora, vou.

Aqui seria ocasião de clamar o coro grego os seus espantos para criar a atmosfera dramática propícia aos grandes rasgos generosos. A melhor esmola, ainda assim, é a do pobre, ao menos fica tudo entre iguais. Estava o Picanço a trabalhar na azenha e a mulher chamou-o, Ó marido, anda cá. Veio o moleiro, Olha o João. Tornaram-se a dizer as palavras já ditas, e tudo visto e pensado, ficou João Mau-Tempo naquela casa pelos dias que trabalhou na herdade da Pedra Grande, e a mulher do Picanço aviava-lhe a alcofinha como santa criatura que era. Também está à mão direita do Pai, decerto em boa conversa com Domingos Mau-Tempo, a tentarem saber os dois porque é a desgraça tanta e o prémio tão pequeno.

João Mau-Tempo ganhava dois tostões, salário de homem feito quatro anos antes, mas hoje mísera paga, de tal maneira a vida encarecera. Beneficiava das boas graças do capataz, ainda parente, que fazia de contas que não reparava na pobre luta do moço contra as raízes das moitas, rijas de mais para se deixarem cortar por aquela debilidade. O dia inteiro, horas e horas de enfiada, quase escondido entre o sarçal, moendo à pancada as raízes com o enxadão, mas as crianças, senhor, porque lhes dais tanta dor. Aquele moço, ó capataz, que anda ele a fazer aí, rendimento não dá nenhum, dizia Lamberto de passagem. E o outro, É uma esmola que se faz, o pai era Domingos Mau-Tempo, uma miséria.

Bem, rematou Lamberto, e entrou na estrebaria a visitar os cavalos, cujos muito estimava.

Estava quente ali e cheiroso de palha,

Este chama-se Sultão, este Delicado, este Tributo, esta Camarinha, e este poldro que ainda não tem nome vai chamar-se Bom-Tempo.”

Bibliografia

SARAMAGO, José. (1986). Levantado do Chão. Editorial Caminho. 7ª edição. Lisboa. pp. 51-53.

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