Insidiosa e corrosiva

Publicado por: Milu  :  Categoria: FLAGRANTES DA VIDA, Insidiosa e Corrosiva

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“Não é só o medo, a burocracia, o apego a privilégios e hábitos antigos, que entravam o movimento e a dinâmica da sociedade portuguesa. Outros factores, às vezes imperceptíveis mas não menos eficazes, retiram energias e forças aos indivíduos e aos grupos sociais” (Gil, 2005: 90).

(…)

“Inveja-se uma pessoa porque ela ostenta algo (um dom, um bem, riqueza, beleza, coragem, inteligência, etc.) que falta ao sujeito e que este quereria possuir. (…). Interessa-nos mostrar dois aspectos do sistema das invejas: 1. Que a inveja pode adquirir paradoxalmente uma transcendência, ultrapassando a relação dual, e passando a circular em grupo, como uma realidade independente dos elementos do grupo. 2. Que o sistema de não-inscrição¹, convém particularmente bem ao desenvolvimento do sistema de invejas.

Que existem grupos de inveja que funcionam com invejas, no regime da inveja (captura, nivelamento, entropia), na obsessão da inveja – decorre quase automaticamente das condições sociais propícias à eclosão e à proliferação das invejas.
Primeira condição, o fechamento do grupo. Voltado para si próprio, sem «fora», o seu ar estagna e a sua atmosfera homogeneiza os comportamentos latentes, prontos para o ressentimento e a agressividade. A diversidade, o imprevisto e o acaso desaparecem. Enquanto nada da hostilidade subterrânea transparece senão indirectamente, instala-se em cada indivíduo um desassossego que o torna cada vez mais vulnerável.
A atmosfera é, nestes casos, essencial à circulação da inveja.

(…). A constituição do grupo de inveja não resulta unicamente da generalização a todos os elementos do grupo de uma relação entre dois indivíduos (sucedendo isso, amiúde, por contágio, em atmosferas fechadas e deletérias). Mais finamente, a própria possibilidade da extrapolação da inveja ao grupo inteiro está já contida na relação a dois. Porque a inveja opera sub rosa, ao abrigo dos olhares e das consciências, ela encerra em si, virtualmente, e paradoxalmente, uma espécie de autonomia prestes a formar-se em campo «aberto» (se bem que fechado e clandestino tem a liberdade da clandestinidade e da transgressão). Ao projectar-se sobre o outro, a inveja produz sempre uma espécie de efeito de ricochete, como se o invejoso ficasse também minimamente prisioneiro da inveja que lançou. Esta volta-se, pois, contra o seu agente (ao ponto de vir assombrá-lo nos sonhos), adquirindo um começo de autonomia que a atmosfera contagiante acaba por perfazer, dando-lhe um aspecto transcendente. O grupo ganha uma atmosfera específica (com as características próprias da densidade, viscosidade, velocidade de partículas, vectores de fluxos) que permite denomina-lo grupo de invejas. Existindo na atmosfera, agora a inveja subsiste por si, evolui por si, ataca por si. Como um vírus.

Por conseguinte, passou a ter uma existência social. Um dos seus efeitos possíveis imediatos é a paralisação de toda a dinâmica do novo. O que surge como diferente aparece como uma ameaça à igualdade que a inveja protege. Igualmente niveladora por baixo, como vimos, porque impede a expressão da singularidade: toda e qualquer manifestação de originalidade é considerada superior, e rejeitada. O rumor, a calúnia, as estratégias múltiplas de exclusão que se desenvolvem no quadro de funcionamento do grupo acabam por vencer e eliminar o elemento novo que irrompia” (Gil, 2005: 96-98).

¹- José Gil, filósofo português, define o conceito da não inscrição pela constatação de que os acontecimentos que aconteceram, que até poderão ter sido especialmente marcantes, estranhamente, parece que não aconteceram! Tudo se esquece, tudo fica envolto pela bruma do tempo e da indiferença. Daí, José Gil, dizer na mesma obra aqui citada, o seguinte: “Tal ministro que se aproveita ilegalmente de uma lei para escapar ao fisco demite-se para voltar à tona incólume, meses ou anos depois; o escândalo que mancha a acção de um governante, longe de o afastar definitivamente da política, pode ser mesmo a ocasião para começar uma carreira com um futuro ainda mais brilhante (um posto mais bem remunerado ou com prestígio internacional, etc). Nada tem realmente importância, nada é irremediável, nada se inscreve” (Gil, 2005: 18).

GIL, José. (2005). Portugal, Hoje o Medo de Existir. 5ª Edição. Relógio D ‘Água. Lisboa.

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2 Comentarios to “Insidiosa e corrosiva”

  1. lino Diz:

    Não sou grande fã do Gil, pois acho-o demasiado palavroso e pouco profundo.
    Beijinho

  2. Milu Diz:

    Olá 🙂

    Mas eu acho o Gil observador, acutilante. Em muitas coisas não tenho qualquer dificuldade em concordar com ele. Mas também não conheço dele o suficiente para dar uma opinião segura. Um beijinho 🙂

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