Fardos Femininos
“A verdade te libertará. Mas primeiro ela vai te enfurecer.”
Gloria Steinem
Agora, que um novo ano se inicia, este blog vai continuar a imprimir o seu cunho e faz saber que persiste na saga de desconstrução da ordem social estabelecida, com mais um post, desta feita com Nietzsche, num momento de tréguas na sua misoginia, que nos revela o quão pesado tem sido o fardo que é nascer mulher.
“Apeteceu-me gritar”, foi o que disse Simone de Beauvoir, tal foi a sua indignação, perante a descoberta das opiniões misóginas que alguns conceituados autores antigos mostraram ter sobre a mulher, numa altura da sua vida em que viveu mergulhada nas bibliotecas, nas suas pesquisas em busca de material para escrever o livro o “Segundo Sexo”. No livro no qual li isto mesmo, que relata a vida de Simone, não estava nenhuma nota de quem seriam esses autores exactamente, mas eu sei que são muitos, alguns deles bem antigos e que estudamos no Ensino Secundário e Superior. No entanto, num livro da autoria de Benoîte Groult, intitulado «Assim seja (Ela)», podemos encontrar alguns exemplos, dos quais registo aqui apenas dois, que considero suficientes para avaliar sobre a indignação que terá acometido Simone. Eis um pequeno excerto retirado da obra acima citada, que contém estas pérolas:
«Devemos alimentá-las bem e vesti-las bem», respondia em eco o delicado poeta Byron, «mas não as meter na sociedade. E não devem ler senão livros de piedade e de cozinha.» É também isto que recomendava Baudelaire, grande amador de mulheres, como a maior parte dos misóginos. Chegou mesmo a admirar-se que lhes fosse permitida a entrada nas igrejas. Cada coisa no seu lugar: «o das mulheres era na cozinha ou no bordel» (Groult, 1976: 36).
Já Nietzsche teve a distinta lata de atirar às urtigas o rigor científico, quando pretendeu classificar todas as mulheres de acordo com a impressão que lhe foi conferida pela própria mãe, tal como demonstra nesta sua declaração, transferindo deste modo a responsabilidade para a mulher de todas as desventuras de que ela mesma possa sofrer. Assim, se uma mulher é maltratada pelo seu marido, a culpa é da mãe dele. A mulher como a grande culpada de todos os males da humanidade, pelos vistos! Ouçam-no:
“Herança materna: Todo o homem traz em si uma imagem da mulher que lhe vem da mãe: é ela que o determina [???]a respeitar as mulheres em geral, a desprezá-las, ou a não sentir por elas senão indiferença” in (Santos, 2002: 150).
É ela, a mãe, que o determina. A desculpabilização do homem, se bem analisadas as coisas. Ele não tem culpa, ele é o que a mãe fez dele. Que grande “lata”!
Prestemos agora atenção ao que nos diz Groult e esforcemo-nos por interiorizar esta sua mensagem. É importante, imperioso, que a incorporemos na nossa forma de pensar:
“Toda esta tragicomédia da superioridade do macho na espécie humana, que se encontra no mais alto expoente nas sociedades muçulmanas, sejam quais forem as vantagens marginais que os homens daí possam retirar, terá apenas conduzido a um único resultado: anular o potencial humano de metade da população e privar cada país de cinquenta por cento das suas forças vivas” (Groult, 1976: 19).
“É preciso curarmo-nos de ser mulheres. Não de ter nascido mulheres, mas de ter sido educadas como mulheres num universo de homens, de ter vivido cada etapa e cada acto da nossa vida de olhos postos nos homens e conforme os critérios dos homens. E não é continuando a ler os livros dos homens, a ouvir o que eles dizem em nosso nome ou para nosso bem durante tantos séculos que poderemos curar-nos” (Groult, 1976: 20).
Vejamos então a trégua de Nietzsche na sua misoginia, nestes excertos retirados da obra “Alteridades Feridas”, um Ensaio de Filosofia, da autoria de Laura Ferreira dos Santos, doutorada em Filosofia da Educação, pela Universidade do Minho.
Para compreender o espírito de Nietzsche neste excerto é imprescindível remetermo-nos ao tempo em que as mulheres eram educadas sob uma forte repressão sexual, e que não está tão longe assim, que condenava o sexo antes do casamento, a convivência despreocupada com o sexo oposto, etc.
“Quanto ao segundo comentário que prometera fazer quanto às observações de Nietzsche sobre as mulheres, tem que ver com as (poucas) partes da obra de Nietzsche em que ele reconhece as condições sociais extremamente pesadas que pesam sobre as mulheres. Por exemplo, no ponto 71 da «Gaia Ciência» sobre «A castidade das mulheres», segue um raciocínio neste aspecto muito parecido com o de Freud, quando este fala do modo como a mulher experiencia o casamento, ela que sempre fora educada para a castidade e para a assexualidade, e que de repente tem de aprender a sobreviver num território que lhe era tão estranho” (Santos, 2002: 150).
“Nietzsche afirma que as mulheres pertencentes às classes sociais mais elevadas e cultas sentem no casamento uma contradição enorme entre o amor e o pudor, atendendo ao facto de terem sido mantidas na ignorância «in eroticis». Nessa altura – e o mais provável é Nietzsche estar aqui a referir-se à primeira relação sexual – há nelas um choque enorme entre sentimentos contraditórios, provocados sobretudo pelo facto de o homem, espécie de deus, lhes parecer afinal tão perto da besta animal. E Nietzsche considera este choque tão grande que é nele que vai alicerçar o que designa de extremo cepticismo da mulher” (Santos, 2002: 150-151).
“Mas ainda mais explícito sobre estas condições sociais pesadas em que vivem as mulheres é o ponto 68 da «Gaia Ciência», intitulado “Vontade e docilidade, que merece ser citado na sua íntegra:
Um jovem foi levado a um homem sábio a quem disseram: «Vê! Aqui está um que se deixa corromper pelas mulheres!» O sábio abanou a cabeça e sorriu:
«São os homens que corrompem as mulheres. E todas as faltas cometidas pelas mulheres devem ser expiadas e redimidas pelos homens; porque é o homem que cria para si a imagem da mulher e a mulher formada segundo essa imagem.»
«Tu és demasiado tolerante para com as mulheres», disse um dos circunstantes.
«Tu não as conheces.»
O homem sábio respondeu: «A natureza do homem é a vontade, a da mulher é a docilidade. É esta, na verdade, a lei dos sexos, uma lei dura para as mulheres! Todos os seres humanos são inocentes relativamente à sua existência, mas as mulheres são-no duplamente. Quem poderia ter por elas suficiente unção e caridade?»
«Qual unção, qual caridade!», exclamou outro dos presentes. «O que é preciso é educar melhor as mulheres!»
«O que é preciso é educar melhor os homens», disse o sábio e fez sinal ao jovem para que o seguisse, mas o jovem não o seguiu“ (Santos, 2002: 151).
(…) “talvez possamos dizer pelo menos que Nietzsche, na sua postura sobre a mulher, parece ter-se visto confrontado com três linhas de inspiração: por um lado, o sexismo da sua sociedade e da tradição filosófica ocidental; por outro, o seu «fatum» espiritual, em que as más relações com a mãe e a irmã devem ter pesado demasiadamente em desfavor das mulheres; finalmente, quando conseguia libertar-se um pouco do seu «fatum» e tradição, o reconhecimento de que sobre as mulheres pesava de um modo excessivo a autoridade de uma sociedade patriarcal que não podia senão ser considerada injusta em relação a elas. No entanto, porque esta última linha de inspiração foi a que pesou menos na sua vida, a sua obra debate-se mais com a acusação de misoginia, pois é esse tipo de textos que se encontra mais presente no seu pensamento, não obstante o dito de Nietzsche de que, afinal, os próprios misóginos se odeiam a si mesmos, como escreve no livro IV de «Aurora»:
Inimigos das mulheres. «A mulher é nossa inimiga» – pela voz daquele que, como homem, fala assim aos homens, exprime-se o instinto indomado que não apenas se odeia a si mesmo, mas também odeia os seus meios” (Santos, 2002: 153).
Vá lá, que lhe fugiu a boca para a verdade! “Os misóginos odeiam-se a si mesmos”…
Bibliografia
GROULT, Benoîte. (1976). Assim seja (Ela). Bertrand. Amadora.
SANTOS, F. Laura. (2002). Alteridades Feridas. Ensaio Filosofia. Angelus Novus. Coimbra.