Com um prato de queijos nas mãos!
«Não é a nossa condição social, mas a qualidade da nossa alma que nos torna felizes».
VOLTAIRE
Cá estou para vos contar uma das minhas diatribes de criança! Noutros tempos que já lá vão, aqui esta miúda era um caso sério, para mal de alguns vizinhos, bem entendido!
Desde os meus mais verdes anos que me lembro de um casal meu vizinho, vastamente reconhecido nas redondezas mormente uma desalmada sovinice de que eram ambos detentores. Eram um casal de meia-idade, bem remediado com teres e haveres, sem filhos e que moravam muito perto de mim, razão pela qual frequentemente lhes invadia a casa, sempre que me encontrava sozinha e necessitada de calor humano. A senhora, a partir de determinada altura estabeleceu o hábito de me pedir para lhe fazer recados, os quais por norma eram alvos de gratificação que, apesar de nunca ser grande coisa, servia, pelo menos, para me manter na expectativa. Assim que era chamada para lhe fazer um recado e ouvia pronunciar o termo “convite”, toda eu estremecia de emoção! Aos meus ouvidos a palavra “convite” soava como uma palavra mágica, comprazia-me verdadeiramente em deitar-me a adivinhar o que teria para me ofertar. A preferência era, como não poderia deixar de ser, o pilim, algo que tilintasse, que neste caso não ia além de 50 centavos, isto num dia de sorte, sempre que isso acontecia corria logo à mercearia para comprar uma mão-cheia de rebuçados de meio-tostão! Por vezes o “convite” podia ser um brinquedo de plástico, daqueles que costumavam ser oferecidos como brinde nas embalagens de detergente para a roupa, ou um saco de maçãs tocadas cuja sentença era lida assim que lhe pegava, no caminho para casa, triste e revoltada, atirava para dentro de um qualquer silvado que avistasse na berma da estrada, as malditas e bichocas maçãs! Um dos recados habituais, que de tempos a tempos me cabia em sorte era percorrer cerca de dois quilómetros, para ir a casa de uma senhora que tinha um rebanho de cabras e que, por isso, vendia queijos para fora.
Na viagem de regresso tinha de fazer mais dois quilómetros, de prato raso nas mãozitas, carregado com uma dúzia de tentadores queijos frescos, mesmo debaixo dos meus queixos. Na primeira vez portei-me bem, mas assim que verifiquei, que ao entregar os queijos à senhora, ela, nem ao menos se dignava a dar-me um pedaço decidi que, nas próximas vezes, havia de me prevenir no caminho. Por isso, quando me apanhava com o prato de queijos na mão, não me fazia rogada, içava-o à boca, assentava-lhe os beiços e toca a beber sôfrega, o soro que dos queijos se desprendia! Quando já não havia mais aguadilha para sorver, pegava nos queijos, um a um e lambia-os por baixo e por cima, lambia até me cansar! Os pobres queijos andavam numa autêntica fona, os que antes estavam por cima, estavam agora por baixo e vice-versa!
Como o caminho era longo e a fome era a mesma, tinha de me valer de outros estratagemas, aprendi, então, a fazer outra malandrice, retirava o cincho ao queijo que ao libertar-se descaía um pouco, metia-lhe, então, novamente o cincho, coladas a este sobravam umas farripas que logo aproveitava para finalmente mastigar! Mais uma vez os queijos mudavam de lugar, os que antes se encontravam por baixo encontravam-se agora por cima e vice-versa. À força de tanto pegar nos queijos com as mãos, sujas, como seria de esperar, já que eu era apenas uma criança, ficavam com uma tonalidade amarelada, pelo que antes de os entregar à senhora tinha o cuidado de os passar pelo jacto de água da torneira do meu quintal, aproveitava a ocasião para lhes colocar por cima um pequeno montículo de sal grosso, tal como tinha visto fazer. Finalmente dirigia-me a casa da senhora a quem entregava o prato dos já tão emagrecidos queijos!
Se por acaso me deixavam ficar a ver televisão ainda experimentava um ligeiro estremecimento de receio quando via a senhora a colocar na mesa para o jantar, um pires com dois dos inditosos. A minha consciência nessa altura dava sinais de vida mas não era por arrependimento, era por medo, temia que descobrissem a marosca! No fundo eles bem o mereciam! De vez em quando também se desforravam! Numa das vezes em que me deixaram ficar por ali a rebolar em casa deles, à hora do jantar convidaram-me para comer um prato de canja de perdiz. Pensava que ia jantar à mesa com eles mas acabei por o fazer na cozinha, arrumada à pedra de mármore da lareira. Coitados, tinham-se como gente de fina casta, que não come à mesa junto com a ralé, para não lhes conspurcar a nobre e ditosa refeição! A senhora deu-me então um prato de canja de perdiz onde boiavam uns pequenos ossos dizendo-me que os acabasse de rapar porque o marido não tinha conseguido! Pobres de espírito! Só por isto, abençoados queijos! Não tenho memória do que fazia aos ossos mal rapados, mas a canja engolia-a eu, sôfrega, sempre escorregava melhor do que a espessa sopa de feijões com couves que me esperava em casa!
Fevereiro 17th, 2009 as 0:01
Estou parvo. O que vale é que os crimes estão prescritos. De qq modo, fica uma absolvição com efeitos retroactivos. E uma penitência: comer um queijo fresco num momento em que não tenha apetite para nada, ou esteja bem enfardada.
Sua malandra! Isso faz-se?
Fevereiro 17th, 2009 as 0:28
Você fez-me rir! 😀
Não imagina o que esta cabecinha era capaz de engendrar! Era uma criança muito só! Enquanto os meus pais trabalhavam durante o dia não tinha ninguém que cuidasse de mim, por isso, dedicava-me a imaginar tropelias! Tenho muitas histórias com este casal! Já morreram! Nunca foram importantes para ninguém! Viveram só para eles, indiferentes aos problemas de quem os rodeava!
Fevereiro 17th, 2009 as 16:16
Todos temos histórias da infância. Nem todos as partilham como faz a Milu.
Fevereiro 17th, 2009 as 16:49
Gosto de partilhar as minhas histórias de infância e sem ser! Sou daquelas pessoas que se riem de si mesmas! Também tenho outras histórias, de quando já era mais crescidinha, tão “cabeludas”, que essas nem às paredes confesso! Vão comigo para a cova! Apenas me arrependo de não ter aproveitado ainda mais a bem-aventurança e o milagre da vida! Agora já é tarde, porque me falta o espírito! Pouco mais quero do que papas e descanso! De vez em quando arrebito, infelizmente, é sol de pouca dura!